A Última Pegada

O abismo estava em tudo: nos olhos das pessoas, no reflexo da janela, no silêncio esmagador da noite. Mas, para Rafael, o abismo tinha nome. Chamava-se Vera.

Ele nunca deveria ter feito aquilo. Mas fez. Num instante de raiva surda, um lampejo de fúria, tudo se tornou inevitável. Ela estava ali, na frente do carro, e ele simplesmente acelerou. O impacto foi instantâneo, o som—aquilo—um estalo que ainda vibrava em sua mente como um trovão distante. Quando desceu do carro naquela noite, viu o corpo de Vera imóvel na rua. O poodle de Dona Odete, a vizinha idosa e gentil, não era mais do que um amontoado de pelo e carne no asfalto.

Poderia ter parado ali. Poderia ter contado à vizinha, enfrentado as consequências. Mas ele não contou. Enterrou Vera no quintal sob a luz da lua, com mãos trêmulas e um nó na garganta. O que lhe parecia uma decisão simples — evitar o escândalo — logo revelou ser algo monstruoso.

Dona Odete veio perguntar no dia seguinte. “Você viu minha cachorrinha?” A voz dela era fina e carregada de esperança. Rafael balançou a cabeça, desviando o olhar. “Não, Dona Odete. Não vi.”

Os dias se arrastaram como um sonho febril. No começo, ele tentava se convencer de que era coisa da sua mente. O som das unhas raspando na porta. Um latido baixo vindo do corredor. Mas, na segunda semana, quando encontrou a coleira de Vera em sua cozinha — limpo o objeto, reluzente como novo — ele soube que algo estava muito errado.

“Você está me ouvindo?”, Dona Odete perguntou, dias depois, ao vê-lo regar as plantas com o olhar distante. “Ando ouvindo latidos estranhos. Quase parece que minha Vera voltou.” Ela riu, uma risada que o cortou mais do que qualquer acusação. Ele murmurou algo e voltou para dentro.

À noite, Vera apareceu pela primeira vez.

Sentada no canto da sala, o pelo branco manchado de terra, os olhos brilhando com um verde impossível. Ela não latia; apenas o encarava, imóvel, um monumento de ódio silencioso. Rafael tentou falar, mas o som ficou preso na garganta. “Não pode ser real. Você está morta!” Ele fechou os olhos, mas ao abrir, Vera tinha desaparecido.

Depois disso, Rafael começou a se perder. O cachorro aparecia nos reflexos do espelho, na penumbra do corredor, nas sombras da rua. Uma vez, ao sair para o quintal, viu marcas de patas indo da terra até a varanda, impressas como feridas na madeira. Dona Odete continuava perguntando sobre Vera. “Sinto como se ela ainda estivesse por perto”, ela dizia, a voz baixa e trêmula.

Rafael não aguentava mais. Decidiu cavar o quintal naquela mesma noite. Estava cansado de viver no terror, na incerteza. Pegou uma pá e começou a escavar. O suor escorria pelo rosto, os braços doíam, mas ele não parava. Quando finalmente alcançou o local onde deveria estar o corpo, encontrou... nada. Apenas terra, úmida e pesada.

“Você não me enterrou, Rafael. Eu estou aqui”, a voz ecoou atrás dele. Ele girou rapidamente, mas não havia ninguém. Apenas o som crescente de um rosnado, vindo de todas as direções.

Na manhã seguinte, Dona Odete não apareceu para cuidar do jardim. A casa dela parecia vazia. O silêncio era ensurdecedor. Rafael sabia que algo estava terrivelmente errado.

Quando decidiu entrar na casa, encontrou um horror. Dona Odete estava caída no chão da sala, os olhos abertos e vidrados, os lábios torcidos em um sorriso grotesco. Ao lado dela, escrito na parede em algo vermelho e pegajoso, estava uma única palavra: “ABISMO.”

Vera estava sentada perto do corpo, o pelo limpo, impecável, como se nunca tivesse saído dali. Ela olhou para Rafael, os olhos brilhando com aquele ódio impossível, e latiu uma única vez.

Rafael tentou correr, mas era como se seus pés estivessem presos ao chão. A sala começou a escurecer, como se uma sombra viva estivesse se espalhando, engolindo tudo ao redor. “Você me destruiu, Rafael. Agora é sua vez de cair.”

O último som que ele ouviu foi o de patas ecoando pelo piso de madeira, antes que o mundo ao seu redor desmoronasse em uma escuridão total.

DaniCezario
Enviado por DaniCezario em 10/12/2024
Código do texto: T8216152
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