CARCAÇAS - Parte 1: Salomão e o bezerro doente - CLTS29

 

CARCAÇAS

 

 

 

PARTE I: SALOMÃO E O BEZERRO DOENTE

 

 

Na margem oeste do Rio dos Bois, bem onde ele deságua no Rio Paranaíba, ficava a Fazenda Fonseca. O proprietário era um homem chamado Salomão, cuja aparência era imprecisa, pois quase ninguém o via. As raras aparições geravam ainda mais incerteza, os mais antigos o apresentavam como um senhor negro de setenta anos, mais ou menos. Os mais jovens discordavam: — setenta o quê? Já vi ele por aí… chutando alto, tem uns cinquenta.

 

Devido a discordância convencionou-se a dizer: Salomão pai e Salomão filho. Mas ninguém sabia ao certo quem morava ali e nem mesmo se eram de fato dois. Os funcionários eram sempre forasteiros, chegavam, sabe-se lá de onde e sumiam, sabe-se lá por quê. Nas raras idas ao povoado mais próximo, se algum curioso lhes perguntasse algo sobre a fazenda, a resposta era ríspida: “Pra que cê quer saber?”

 

Se a curiosidade fosse tanta a ponto de alguém se arriscar a fazer uma visita, na pior das hipóteses, poderia até mesmo ser recebido na bala, mas geralmente se resumia a um peão dizendo de maneira grossa que o patrão não estava em casa.

 

O que se ouvia a respeito daquela fazenda e seu proprietário eram apenas boatos. Diziam que ele era um feiticeiro e havia enganado o tinhoso, após terem feito um acordo, por isso vivia ali recluso, para que nenhuma alma o encontrasse. Quanto à confusão feita a respeito de sua aparência, supostamente se devia a um ritual, no qual ele se apossava de outro corpo.

 

Quem chegava na região, a princípio ficava intrigado com as lendas contadas, mas logo, sem novas informações, esqueciam o caso e assim o tal Salomão seguia vivendo naquela fazenda sem nenhum contato com o povo local.

 

Hoje em dia, a única pessoa que ainda comenta sobre o assunto é seu Geraldo, um senhor de quase oitenta anos, muito polido nos modos e na fala. Quando jovem, ele trabalhava como açougueiro e hoje vive em um abrigo de idosos em Quirinópolis. Uma mesma enfermeira o acompanhou por mais de uma década e, a partir dos vários relatos do velhinho contados a ela, podia dizer o que sabia a respeito do tal feiticeiro e de sua propriedade.

 

A fazenda era pequena, cerca de quinze alqueires goianos, a casa era uma construção simples, porém grande, circundada em três lados por alpendres. À direita, avistava-se o pomar; à frente, o barracão e os casebres dos funcionários. Entre eles passava a estrada de acesso, essa percorria à margem esquerda da residência do patrão e chegava até o curral e o estábulo, que ficavam aos fundos.

 

Numa manhã fria de junho, o sol ainda ensaiava a entrada, Salomão tomando seu café, se incomodou com um berro de bezerro que não cessava. Apressou-se em ir ao curral, com a expressão sisuda que lhe parecia típica. Lá, encontrou Aprígio, um de seus funcionários. Ele coçava a cabeça enquanto olhava para um bezerro deitado.

 

— Ê seu Salomão, não sei se esse bezerro escapa não, hein!

 

— Quê que foi?

 

— Uai, e eu sei lá! Cheguei aqui hoje e achei ele assim.

 

— Ô, mas que desgraça! Esse bezerro é fi de vaca boa. Cê vai ter que ir lá no Quirinópi pra chamar o veterinário.

 

E Aprígio assim fez, arreou o cavalo e partiu. Corriam as horas, o bezerro berrava em constante agonia e nada de Aprígio aparecer com o especialista. Já estava anoitecendo quando Zezão, o outro funcionário, chegava da roça para se recolher em seu barraco. Ao passar ao lado do curral, viu o patrão apoiado nas tábuas do cercado, olhando o animal deitado lá dentro.

 

— Boa noite, seu Salomão!

 

— Boa noite, Zezão! Cê viu se o Aprígio chegou?

 

— Uai, nem sabia que ele num tava aqui! Eu passei o dia inteiro arando lá pros lado da gameleira, como o sinhô mandou. Ele não tá aí não?

 

— Mandei ele ir na cidade pra ver se achava um veterinário. Esse bezerro tá pra morrer e o infeliz sumiu.

 

— Ah, seu Salomão, o sinhô sabe como é o Aprígio, né? Ele lá no Quirinópi, certeza que vai passar no cabaré. — Zezão sorri, enquanto bate o dorso de uma mão na palma da outra.

 

— Marrapaz, eu mando o excomungado ir na cidade resolver problema da fazenda e esse vagabundo vai pra raparigagem!

 

— Ah, patrão! Aquilo ali é sem-vergonha de fazer medo. Inclusive aquele povo lá dos Gouveia tá ameaçando ele de morte, viu. Bolinou com a fia do Coroné. Até onde eu sei, eles só não vieram aqui pegar ele por respeito ao sinhô, ou medo né.

 

Salomão não sairia por nada atrás de Aprígio e do veterinário. O bezerro que aguentasse. Ele não tinha apreço nem pela vida humana, quem dirá por bicho. Pensava apenas na questão financeira, mas preferia o prejuízo do que a exposição. Recolheu-se e tentou dormir, mesmo com os berros do pobre animal.

 

Quando já estava quase se acostumando com aquele som e lentamente adormecia, Salomão percebeu uma mudança súbita no padrão do urro, antes lento, tornou-se rápido. O animal que antes sofria as dores da doença, agora parecia estar assustado. Salomão levantou-se disposto a dar fim àquilo, mais pela raiva por não conseguir dormir do que por pena do bichinho. Pegou sua espingarda, a lanterna e sua capanga de couro inseparável e encaminhou-se ao curral.

 

Abriu a porta dos fundos, olhou para um lado, para outro, e seguiu. Ele caminhava com cautela. Não temia nada, mas a noite escondia riscos que ele não queria correr e criaturas que não se mostravam à luz do dia.

 

A cada berro do bezerro, ele dava um passo e gritava: “Quieeeta”!

Mais um passo, mais um berro, mais um grito: “Quieeeta, sô!”

 

A noite sem luar era tão escura que só se via até onde a luz da lanterna alcançava. O silêncio só era interrompido pelo som do capim sendo amassado sob as botas, o mugido do animal e o grito logo em seguida: “Quieeeta!”

 

Pouco a pouco ele se aproximava, até que a luz clareou a porteira, mais alguns passos e chegou até ela. A luz já iluminava, lá dentro do curral, as patas brancas no chão que pareciam parcialmente encobertas com um pano escuro.

 

— Que diabeísso? — Salomão fala baixinho consigo — Será que o Zezão botou alguma coisa pra cobrir esse bezerro?

 

Ele iluminou o trinco da porteira para abri-lo, enquanto o animal berrava mais uma vez: “Bééé!”

 

— Quieeeta, sô!

 

— Quieto naaada — ecoou uma voz lenta e trêmula vinda do curral.

 

— Quem tá aí? — perguntou Salomão com os olhos arregalados e mirando o bezerro com a lanterna, enquanto empunhava a espingarda. O pano se moveu descobrindo toda a pelagem branca e o vulto de uma bota chutou a cabeça do bezerro que, aos berros, contorcia-se de dor.

 

— Quem tá aí em cima do bezerro? — Salomão gritou raivoso, mas não obteve resposta. — É ocê Aprigio?

 

— Não tem nenhum Aprígio aqui — a voz ressoou ainda mais tenebrosa.

 

— Quem é ocê?

 

— Eu sou eu. E você é o Feiticeiro Salomão.

 

— Que cê quer aqui?

 

— Eu vim pra te buscar

 

— Buscar pra onde, sô? — Salomão agravou a voz, engolindo seco.

 

— Pra onde você já devia ter ido a muito tempo, mas fica se escondendo aqui nessa fazenda. Esqueceu o acordo?

 

Salomão moveu o feixe de luz na tentativa de encontrar a fonte da voz, mas o vulto se afastou ligeiramente, mantendo-se na escuridão.

 

— E eu lá fiz acordo cocê?

 

— Seja homem, Salomão! Cumpra com o combinado.

 

— Eu só fiz um acordo, mas se ocê fosse meu cobrador, esse curral ia tá só o cheiro de enxofre.

 

— Ah, então é verdade que você deve pra ele, né?

 

— E pra que cê quer saber?

 

— Pra eu contar pra ele onde você está — gargalhava o ser na escuridão.

 

— Que cê ganha com isso?

 

— Um corpo. Eu estou vagando a muito tempo. Achei esse corpo hoje, mas ele vai apodrecer.

 

 

— Isso eu consigo te arrumar.

 

— Que conversa fiada! Vai me arrumar corpo onde?

 

— Tá vendo esse bezerro aí? — Salomão focou a luz no animal, que ainda se debatia.

 

— Claro que sim, mas eu quero corpo de gente.

 

— Eu te dou o meu e cê se vira com o capeta. É só ocê deixar eu ir aí e passar meu isprito pro corpo do bezerro.

 

— Você já mentiu até para o pai da mentira. Como vai fazer isso?

 

— Se ocê sabe do meu acordo, ocê também sabe que eu sou feiticeiro e que eu sei encarnar e desencarnar, quem eu quiser, onde eu quiser. Oia esse corpo que eu tô aqui — Salomão abriu os braços e deu uma volta —, roubei de um funcionário meu. Antes eu tava no corpo do véio que era dono dessa fazenda.

 

— E você vai entrar no corpo de um bezerro a troco de quê?

 

— Amanhã quando amanhecer, ocê vai ser o Salomão. É só mandar o funcionário levar o bicho pro açougueiro do Quirinópi, aí cê manda junto um vinho de cortesia — Salomão abriu a boca da capanga e apontou para uma garrafa que trazia dentro —, é o vinho que eu uso pra fazer o feitiço. Quando ele matar o bezerro, o meu isprito vai se soltar. Eu fico de tocaia, até ele beber o vinho, e aí eu tomo o corpo dele.

 

A voz ae calou. Ouvia-se apenas as fungadas medonhas no breu e o som dos cascos do bezerro esfregando no chão.

 

— E aí? É pegar ou largar — intimou Salomão, erguendo a cabeça e desfranzindo a testa.

 

— Trato feito! Pode vir. — ordenou a voz.

 

Salomão se aproximou lentamente e aos poucos a luz da lanterna foi clareando a silhueta do homem. Era o corpo de Aprígio, ele estava pálido como nuvem, furado de balas até na testa e a roupa era só vermelho-marrom de sangue e terra.

 

— Como é que a gente faz?

 

— É só ocê agachar ali, olhando pro bezerro. — Salomão apontou para o animal, mantendo os olhos fixos no morto-vivo.

 

A criatura sentou com um olhar eufórico como uma criança prestes a ganhar um presente. Ele olhou para o bezerro...… — Vamos logo com isso — e ao voltar o olhar para Salomão, encarou o cano da espingarda a dez centímetros de sua testa.

 

—Nããão!

 

Dessa vez, o disparo lhe arrebentou a cabeça, mas o corpo ainda se debatia. Salomão soltou a espingarda, mantendo-a presa a ele pela bandoleira, tirou a garrafa da capanga, abriu a boca do bezerro e lhe enfiou um pouco do vinho goela abaixo. O animal fez um último movimento com a cabeça, cambaleando até repousá-la sobre o chão e deu um forte suspiro, como quem livra-se da dor. O fazendeiro então lambuzou a boca do animal com o sangue do corpo inerte de Aprígio e balbuciou:

 

— Los siel, leeg karkas.

 

Como num passe de mágica, o bezerro se levantou e o corpo parou de se debater. Salomão o arrastou e jogou em cima de uma carroça, que pousava à noite sob a cobertura do tronco do curral. Enquanto retirava o cordão do pescoço de Aprígio, Salomão ouviu passos vindos dos casebres.

 

— Seu Salomão, tudo certo aí? — ao longe, o funcionário gritou preocupado.

 

— Tá, Zezão! Eu achei que eu tinha escutado uma onça. Dei um tiro pra espantar ela.

 

— Minha nossa senhora!

 

— Ela fugiu. Vai pra sua casa e tranca a porta. Amanhã nóis conversa.

 

— Tá bão!

 

Zezão voltou para sua casa. Salomão foi até o estábulo e de lá saiu com um saco de esterco, que levou com a ajuda de um cavalo até o curral. O excremento no saco foi usado por ele para mascarar as manchas de sangue. Depois disso, arreou o cavalo na carroça e nela saiu pela estrada. Deixou o corpo de Aprígio na primeira encruzilhada e fez o retorno para a fazenda. Tomou um banho, deitou-se e dormiu como uma criança".

 

Pela manhã, Salomão acordou com o chamado de Zezão à porta de sua casa:

 

— Bom dia, patrão! Acharam o Aprígio.

 

— Tava onde?

 

— Falei pro sinhô que o Coroné Gouveia queria matar ele, foi só botar o pé pra fora daqui. Acharam ele todo furado de bala ali na entrada da fazenda. A cabeça arrebentou. Só deu pra conhecer o corpo por causa daquela cicatriz que ele tinha no peito. Levaram até aquele cordãozim vagabundo que ele usava no pescoço.

 

— Quem mexe com fogo, uma hora se queima. — Salomão deu de ombros e mudou de assunto — E o bezerro?

 

— Sinhô vai nem acreditar, o bicho levantou, mas eu acho que tá doente ainda. Tá pulando prum lado e pro outro sem cessar. Parece inté que tá endemoniado.

 

Salomão deu um sorriso discreto. — Esse bezerro tem jeito mais não. Leva esse trem embora pro Quirinópi e entrega pro açougueiro.

 

É isso que se sabe a respeito de Salomão, ou pelo menos foi o que a enfermeira concluiu, juntando as histórias que ouvia de seu Geraldo. Ela sempre atenciosa com o velho, dava-lhe atenção e o estimulava a relembrar o causo:

 

— E o senhor era o açougueiro que recebeu o bezerro, seu Geraldo?

 

Ele nunca confirmava, até que um dia a enfermeira o provocou: — mas se o senhor era o açougueiro, como que ia saber de tudo isso?

 

— Naquela época, minha filha, eu ainda não era o açougueiro. Eu era a alma que vagou por muito tempo até encontrar o corpo do peão. Eu era a alma que o Salomão prendeu naquele bezerro doente.

 

 

Continua...

 

 

Tema: Ressurreição e vizinhos suspeitos 

 

Paulo Roberto Moraes
Enviado por Paulo Roberto Moraes em 30/11/2024
Reeditado em 01/12/2024
Código do texto: T8208942
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