O QUE A NEVE ESCONDE - CLTS 29

O Início do Silêncio

A noite era implacavelmente fria, um frio cortante que parecia vir das entranhas da terra. O vento uivava através das árvores, como uma presença invisível, carregando consigo o som de algo que se aproximava. Jonas estava ali, dentro da cabana, seus dedos trêmulos tentando acender o fogo, mas as chamas não reagiam. O inverno parecia não apenas ter descido sobre a aldeia, mas também ter invadido sua alma.

Ele olhou para a parede de madeira envelhecida, os olhos pesados pela exaustão. Suas mãos não tremiam apenas pelo frio, mas por algo mais, algo que estava comendo sua sanidade, devorando-o de dentro para fora. A fome era uma dor que ele não podia ignorar, uma dor que o fazia se sentir cada vez mais vazio, como se sua alma estivesse se esvaziando junto com seu corpo.

Era difícil lembrar quando fora a última vez que ele havia comido, ou até mesmo o quanto tempo havia passado desde o dia em que a neve tomou conta da aldeia. O tempo, aqui dentro, parecia dilacerado, perdido em um vórtice de solidão e desespero. Ele tentava lembrar de algo… um rosto, talvez. Um nome? Mas tudo o que ele via era um vazio imenso, uma escuridão que se apoderava da sua mente.

O pensamento de Clara o consumia, mas ele não queria aceitá-lo. Ele não queria acreditar que ela havia desaparecido. Não podia. Era insuportável demais. Cada centímetro de sua mente e de seu ser gritava que ela ainda estava lá, em algum lugar, perdida na imensidão branca da floresta, esperando para ser encontrada. A negação o envolvia, criando uma teia de ilusões que o mantinham preso na esperança de que um milagre poderia acontecer.

O silêncio dentro da cabana era profundo e opressor. Era um silêncio que parecia se arrastar, pesado, esmagando o ar ao seu redor. Jonas levantou os olhos e olhou pela janela. A neve continuava a cair incessante, como uma cortina que escondia o que havia além. Mas, no fundo de sua alma, ele sabia que não era só o frio que o aguardava lá fora. Algo mais o chamava. Algo que ele não podia nomear, mas que sentia, profundamente, em seu estômago vazio.

Havia algo além da fome. Algo que o consumia com uma urgência insuportável. Ele sentia isso em cada fibra de seu ser.

Jonas vestiu-se, a hesitação crescendo dentro dele. O instinto gritava para que ele não saísse. Não adiantava fugir de si mesmo, da realidade. Mas a força daquela sensação que o chamava era forte demais. Ele precisava sair, precisava descobrir o que a floresta queria dele.

Ao colocar o pé do lado de fora da cabana, uma rajada de vento cortante o atingiu, e ele quase se deixou cair. Cada passo que dava parecia mais difícil, como se estivesse caminhando em direção ao desconhecido, uma estrada que não levava a lugar algum. A floresta o envolveu com seu silêncio, cada galho quebrando sob seus pés como um aviso. Ele sentiu o peso de cada passo, o peso de algo que ele não podia entender, mas que não conseguia evitar.

À medida que avançava, seus olhos começaram a se fixar em algo à frente: uma cabana, meio oculta pela neve, que parecia familiar. Um calafrio percorreu sua espinha. Ele já esteve ali? O que ele estava fazendo ali? Era como se estivesse preso em um pesadelo. Ele se aproximou cautelosamente, e ao olhar pela janela, uma figura frágil apareceu à sua visão, iluminada pela luz tênue do fogo.

"Clara...?" Ele sussurrou, sua voz abafada pela surpresa e pela dor. Mas a figura permaneceu imóvel, distante, quase etérea. O rosto dela parecia sorrir, mas o sorriso estava vazio, sem vida. Jonas recuou lentamente, sentindo a angústia apertar sua garganta.

A imagem de Clara, ou o que ele pensava ser ela, se desfazia nas sombras da cabana, e ele sentiu um terror crescente. Algo estava errado. Algo se movia ali, algo que ele não queria entender, mas não podia ignorar.

Ele queria gritar, mas sua voz parecia ter sido arrancada de sua garganta. O vazio da imagem que viu o consumia, a raiva e a tristeza se misturando em algo grotesco e insuportável. Mas ele não conseguia se libertar daquele pesadelo.

Parte 2 - Sombras na Neve

Jonas acordou em um estado de confusão. Sua garganta estava seca, e a dor de cabeça parecia cravada nas têmporas, um peso insuportável que o fazia duvidar de sua própria sanidade. A cabana estava fria, mais fria do que ele lembrava, e a luz tênue que filtrava pela janela parecia distorcida, como se o mundo ao seu redor estivesse borrado, entre o real e o imaginário. O fogo da lareira, apagado, deixava o ambiente mergulhado em sombras. Ele se levantou, as pernas bambas, e o estômago roncou, vazio, como um eco no silêncio denso.

Ao olhar para a mesa, algo chamou sua atenção. Um livro de capa escura estava ali, jogado sem cuidado, como uma relíquia abandonada. As letras desbotadas na capa formavam a palavra "Kuro", mas a impressão era de que o título já havia sido lido milhares de vezes. Jonas sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao tocá-lo, como se o livro em si carregasse algum peso insuportável. Ele não sabia o porquê, mas parecia atraído, como se fosse uma necessidade inexplicável, uma urgência em saber o que estava ali.

Com mãos trêmulas, ele o abriu. As páginas, amareladas e desfeitas, estavam cobertas de palavras que se desfaziam diante de seus olhos. Ele tentou se concentrar, mas as palavras dançavam na página, desordenadas e desconexas. Cada frase parecia sussurrar algo que ele não queria ouvir, algo que ameaçava arrastar sua alma para um lugar de dor e desespero. Mas ainda assim, ele continuou, como se tivesse se entregado ao inevitável.

E então, algo aconteceu.

Clara apareceu em sua mente, como uma imagem vívida. Ela estava ali, na sua frente, como se tivesse saído das páginas do livro. Seus olhos estavam distantes, sem vida, e seu rosto, pálido, parecia fixo em uma expressão que ele não conseguia compreender. Era uma visão? Uma ilusão criada pela sua mente que se recusava a aceitar a perda? Jonas não sabia, mas seu coração disparou, e um grito entalado em sua garganta parecia prestes a escapar.

Mas não saiu.

A imagem de Clara se desfez, como a névoa se dissipando, deixando-o vazio e desesperado. Ele não sabia mais se a dor de perder sua irmã era real ou se tudo aquilo não passava de um pesadelo. Sua mente estava fraturada, perdida entre os estilhaços da dor e da negação.

Foi quando ele ouviu o som. Um arrastar, pesado, vindo de fora, da neve. Ele se levantou de um salto, seu coração batendo descontrolado. A figura apareceu, se movendo na escuridão da floresta, contorcendo-se, uma presença estranha e grotesca. Jonas observou, os olhos arregalados, incapaz de reagir. O que era aquilo? Quem era?

A figura se aproximou, seus movimentos erráticos e desesperados, como se estivesse lutando contra algo que a controlava. Era uma mulher? Não... Não parecia ser uma mulher, mas não havia como saber. O rosto estava pálido, os olhos vazios, como se algo tivesse apagado toda a humanidade dela.

A voz que emergiu da figura não era humana, mas ainda assim, ele a reconheceu.

"Você... me vê?" a voz ecoou, com um tom que parecia irromper das profundezas de sua alma, tocando cada pedaço de seu ser.

“Clara...?” Jonas murmurou, quase sem acreditar no que estava acontecendo. A dor e a esperança misturavam-se de uma forma tão intensa que ele não conseguia mais distinguir o que era real e o que era apenas a projeção de sua mente.

Mas Clara estava morta. Ele sabia disso. E, no entanto, algo o impelia a acreditar, a acreditar na impossibilidade. Ele não sabia mais em que acreditar, o que esperar. A linha entre o real e o irreal estava se desfazendo diante dele, e ele se encontrava perdido no limbo entre a dor e a negação.

Parte 3 - O Coração Vazio

Jonas acordou de novo, mas desta vez o ambiente estava diferente. Não havia mais confusão. A névoa na sua mente começava a se dissipar, mas o que restava era ainda pior. A sensação de vazio o envolvia, como se a própria essência de sua alma estivesse sendo consumida por dentro. Ele estava deitado no chão frio da cabana, o corpo doendo, mas não tanto quanto a dor que sentia em sua alma. As sombras que dançavam nas paredes pareciam rir, zombando de sua impotência.

A primeira coisa que ele viu foi a mesa. O prato estava ali, fumegando, com feijão ainda quente e um pedaço de carne. Um aroma enjoativo e amargo subia de lá, como se a carne estivesse exalando um odor podre, algo que não deveria existir. Jonas ficou parado por um momento, olhando para o prato, o estômago revoltando-se, como se não fosse capaz de aceitar o que seus olhos estavam vendo. Mas havia algo mais. Algo que o puxava para aquilo, algo que ele não conseguia evitar.

Ele se aproximou lentamente, como se estivesse sendo atraído por uma força que ele não entendia. Seus dedos trêmulos tocaram a carne, e a sensação de repulsa aumentou. Seu estômago roncou, mas ele não podia se afastar. Não podia ignorar o que estava ali. A imagem de Clara veio à tona, mais vívida do que nunca, e ele finalmente compreendeu.

A carne não era apenas carne. Era algo mais. Algo que ele já sabia, mas que se recusava a admitir. A realidade estava se despedaçando diante de seus olhos, e ele não podia mais fugir do que fizera. Não podia mais negar.

Com um grito abafado, ele se afastou da mesa, caindo de joelhos no chão. Suas mãos se pressionaram contra a cabeça, como se tentasse impedir que a verdade o atingisse. Ele se lembrou do inverno, da fome, da desesperança que o havia consumido. Ele se lembrou da sensação de vazio que o havia levado àquela cabana, como se ele estivesse sendo devorado por dentro.

A verdade estava ali, estampada diante dele. Ele havia comido Clara. Havia consumido sua irmã para sobreviver. A negação não existia mais. Não havia mais como fugir de quem ele se tornara, do monstro que ele tinha sido. A culpa o consumia, e ele sabia que não havia perdão. Não para ele. Não para o que fizera.

A voz de Clara ecoou em sua mente, suave, mas penetrante, como um sussurro vindo do fundo da morte. “Você... me comeu.” As palavras se arrastaram, como se o tempo estivesse sendo dilatado, e Jonas sentiu o peso delas esmagando-o, esmagando a sua humanidade, até que não restasse mais nada.

Ele se levantou lentamente, as pernas fracas, e olhou para a janela. A neve caía lá fora, igual ao inverno implacável que o havia aprisionado. Mas agora era diferente. Agora ele entendia. Ele não estava mais apenas tentando sobreviver. Ele havia se perdido. Ele havia se consumido.

A figura de Clara apareceu, mais uma vez, na sua frente. Ela não estava viva. Não mais. Ela era a personificação do que ele havia feito, da fome que o consumiu e do luto que ele tentou evitar. Ela o observava, seus olhos vazios, seu rosto sem expressão. “Você vai me carregar para sempre,” ela disse. “Porque você nunca pode deixar a dor para trás. Eu sou você. E você jamais vai se libertar.”

Jonas não respondeu. Não havia mais palavras para ele. Não havia mais caminho. Ele caiu de joelhos, derrotado, a verdade sendo seu único companheiro. O inverno, a fome e a morte haviam se tornado parte dele. E ele sabia que, de agora em diante, nunca mais seria capaz de escapar disso.

Tema: Fome

DaniCezario
Enviado por DaniCezario em 30/11/2024
Código do texto: T8208760
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.