FAMINTO: Um Conto Amazônico - CLTS 29
“Naquele tempo o qual até os mais velhos já se esqueceram, houve um grande incêndio que devorou a floresta afugentando os animais. Foram dias tristes, quase não havia caça. As plantas demandaram várias luas para retomar seu viço deixando as nações padecerem com a escassez de alimentos.
Em meio à tanta infelicidade, um povo parecia ter mais sorte que os outros. Viviam na margem do rio das Rãs e dele tiravam seu sustento. O fogo não afetou os peixes. Bravos de várias nações, ali buscavam algum recurso em nome de suas aldeias. Todos eram bem-vindos, tinham bastante a partilhar.
Enquanto a fome rondava voraz naquelas terras onde antes havia fartura, o chefe de uma tribo do norte, cansado de ver sua gente definhar, deu a seu filho, o mais valente guerreiro, orgulho de seu povo, a missão de negociar os suprimentos, pois quase já não tinham do que se alimentar.
Mais do que os mantimentos, o bravo guerreiro se encantou pela filha do pajé, porém seu amor não foi correspondido.
Desprezado, com orgulho ferido, ordenou que seus homens arrebatassem a infeliz.
Ante tal afronta, após serem tão bem acolhidos, o pajé se queixou a seu líder. Um pequeno grupo partiu ao resgate.
A luta foi breve, os guerreiros do povo do Rio Das Rãs conheciam bem seu território, numa emboscada resgataram a moça. Como castigo, os ingratos perderam a vida, menos o jovem líder da expedição.
O afamado guerreiro valente, ao perceber o perigo se embrenhou por entre o que ainda restava de mata acinzentada, chegando seguro à casa de seu pai.
Não aceitando a humilhação, contou que foram traídos, a gentileza daquele outro povo era apenas um embuste. Após ofertarem os produtos que levaram, foram roubados e seus homens massacrados. Para retornar ao lar, ele de mãos limpas teve que matar ao menos uma dúzia de inimigos traiçoeiros.
Horrorizado com ato tão vil, o chefe convocou seus guerreiros.
Durante uma semana, homens e mulheres percorriam as paragens devastadas a procura de raiz brava, casca de árvore vermelha e cipó timbó. Estes ingredientes foram fervidos e armazenados em grandes bolsas de pele.
Quando a lua minguante dominou as noites tristes daquela floresta, os homens do norte despejaram a poção fermentada no olho do rio das Rãs.
No dia seguinte, toda a vida abundante naquelas águas, boiou envenenada.
O alimento tornou-se ainda mais escasso e a fome reinou soberana.
Sabendo que tudo aquilo era uma vingança, a jovem foi tomada de pesar. Por sua causa seu povo morria. Por ter desprezado o orgulhoso guerreiro sua gente padecia.
Encarando a lua da morte, a jovem fez uma proposta.
Sua vida pela sobrevivência de sua gente.
O mal causado tinha sido tão grande que os espíritos compadeceram de sua alma.
Ao se jogar nos braços mortos do rio, a água turva novamente ficou límpida. A vida com certeza iria desabrochar.
Todo ato tem suas consequências, com o sacrifício da filha, o pajé conjurou os poderes da natureza. Aquele que trouxe a fome, pela fome seria dominado, seu descanso jamais seria permitido.”
* * * * *
O uirapuru piou três vezes. Era o sinal que o fez sair dos devaneios de curumim, estava perdido naquelas histórias contadas pelos antigos em torno das fogueiras, porém o medo ainda assombravam seus pensamentos.
Oiará esgueirou-se por entre os arbustos seguindo o som de alarme do batedor, a escuridão não lhe permitia divisar seus companheiros, mas ali estavam eles também sorrateiros.
Toda minguante era a mesma coisa. Desde sua época de criança, primeiro encontravam vestígios de caça abatida na mata, depois até os animais domésticos desapareciam. Os anciões achavam aquilo natural, o predador misterioso vinha cobrar seu quinhão, mas desta vez, pessoas também foram levadas.
O jovem guerreiro a despeito das ordens do seu líder reuniu um grupo de bravos. Nesta lua o caçador se tornaria a caça.
Sem se denunciar, caminhava pela sombra evitando o chacoalhar dos ramos. Outra vez o pio do uirapuru guiava aqueles aventureiros. Oiará conhecia todos os recantos da floresta, mesmo na penumbra reconhecia a trilha da queda d’água que marcava o fim de seu território, transpor aquele rio, os colocaria em terras não amigas. Estavam longe demais, não sabia o que os companheiros pensavam mas ele não desistiria.
Um pouco adiante, as árvores dariam espaço aos arbustos e estes terminariam numa extensa faixa de areia. Breve estaria sem a proteção das folhagens.
Temeu seguir sem o sinal do batedor. Preferiu esperar por instantes que mais pareciam horas. Nada do sinal.
Já com o tempo tendo passado além do esperado, ele imitou a ave mãe da lua. O som não era como aquele do batedor, ouvidos apurados e a prévia combinação indicava que os aventureiros deveriam se reunir. Pela segunda vez assoviou convocando os companheiros. Nem o vento o respondeu. Mais uns poucos segundos, a prudência deu lugar à apreensão. Decidiu seguir adiante.
Sua pele tensa sentiu a umidade nas folhas das plantas a seu lado. Ignorou a princípio seguindo atento a qualquer sinal de movimento. O silêncio, apenas não causava incômodo pois ao longe ouvia o cair da cachoeira. As folhas agora pareciam mais úmidas. Um pensamento tomou de assalto sua consciência. Não precisava provas, mesmo assim, trêmulo levou aos lábios os dedos molhados.
O gosto ocre não o amedrontou, já estava preparado, sabia que nem todos iriam retornar. Se aguardasse pela alvorada, seus olhos divisariam grandes manchas de sangue em todas as direções.
O instinto o fez levar a mão à cintura, enrolou no punho a embira certificando-se que numa possível luta sua borduna não se perderia.
Sem sinais dos amigos, agora contaria apenas com a habilidade de batalha com aquela arma, que um dia pertenceu a seu avô. A borduna não tinha mais que cinco palmos, uma haste de madeira roxa entalhadas pelos dentes de piranha terminando numa rocha esculpida em forma de cunha, perfeita para combates a curta distância onde com facilidade dilaceraria o crânio do adversário, seja homem ou besta.
Exposto ao deixar a proteção da floresta, coincidindo com o descanso da minguante e os primeiros raios da alvorada, deparou-se com um cenário aterrador.
De cócoras sobre um monte de carne retorcida, a criatura a qual perseguiram noite afora, se repastava ao saborear os despojos dos guerreiros. Mesmo naquela posição recurvada percebia seu porte avantajado.
Oiará sentiu um embrulho no estômago.
A criatura não era humana nem bicho, parecia a conjunção macabra dos dois.
Seu corpo de homem desproporcional a qualquer habitante da floresta estava coberto por uma pelagem avermelhada, os braços longos terminavam em garras que mesmo a distância pareciam afiadas, sua face grande e arredondada poderia ser comparada a de um sagui. Mas o que mais causou horror foi testemunhar aquela aberração levando um braço amputado à boca arrancando um bom pedaço de pele enquanto mastigava voraz uma perna em sua segunda e maior mandíbula posicionada onde deveria ser seu abdômen.
O bravo remanescente embebido pelo desejo de vingança gritou rogando força a seus ancestrais. Erguendo a borduna sobre a cabeça partiu rumo ao monstro.
Sem se preocupar com o ataque a criatura parecia não desejar interromper seu banquete. Com toda sua energia Oiará desferiu o primeiro golpe. Seria certeiro, mas foi bloqueado. Para o monstro, o guerreiro seria apenas parte de sua refeição.
Uma luta cruel teve início, a destreza do jovem bravo contrastava-se com a força de seu oponente. Oiará percebeu os movimentos desajeitados e isso se tornou uma vantagem.
O dia clareava a medida que os combatentes perdiam suas energias. Temendo algo inexplicável, a fera desejava terminar logo a batalha. Olhando insistente para o firmamento, algo chamava sua atenção. O dia parecia roubar seu vigor. Ciente que não poderia prolongar a peleja, a criatura partiu para ofensiva.
Oiará recuava ante os ataques desengonçados mais poderosos. Aos poucos, ele ia sendo empurrado rumo a grande que d’água.
Seus ataques agora eram sua defesa, a cada ferida que sua borduna causava, mais irá despertava. A um passo da queda, frente aquela enorme boca escancarada, um espaço se abriu. Bastava golpear a fronte daquele ser aterrorizante que com certeza a luta se findava.
Oiará imprimiu toda sua energia restante naquele que poderia ser seu derradeiro ato. Os braços do monstro se fecharam num aperto mortal. Homem e besta se precipitaram cachoeira abaixo. O guerreiro sentiu as presas da fera em sua carne.
Mais tarde, sobre a areia clara do igarapé, Oiará despertou. No céu, a minguante já reinava.
O jovem sentia seu corpo arder em febre, com os pensamentos ainda atordoados, supôs que passara o dia desacordado sob o sol.
Ao tentar se recompor, uma dor terrível denunciou uma ferida enorme em sua perna. Ele lembrou da luta da madrugada anterior. Ainda deitado, o estômago vazio reclamou. A dor da ferida aos poucos deixou de importar, uma fome alucinante revirava suas entranhas. Em desespero cravou as unhas em seu estômago. A fome era esmagadora. Usando o restante de sua energia se colocou de pé. Poucos metros de onde estava, um ancião extremamente magro jazia com a borduna de seu avô cravada no crânio.
Oiará tinha fome.
Debruçou sobre o defunto abrindo uma enorme mandíbula e enquanto devorava sua presa urrava para a minguante, amaldiçoando aqueles que antes dele carregaram este tenebroso destino.
A fome jamais será saciada.
Tema: Fome