OS OLHOS DA CASA AO LADO — CLTS 29.
By: Johnathan King.
1.
Toddy Davis era um escritor de histórias de terror e suspense medíocre, que sofreu um acidente de trânsito, quebrando uma das pernas. Sem poder sair de casa pelos próximos meses, o homem passava o tempo livre procurando maneiras de afastar o tédio, ora jogando baralho com algum conhecido que ia visitá-lo, ora lendo algum livro ou revista velho. Isso quando não ficava dormindo ou vendo TV. Mas o seu hobby favorito era mesmo a de bisbilhotar a vida e a intimidade dos seus vizinhos, especialmente a do casal Gormans.
Para Davis, o casal Sime e Martha Gormans eram duas figuras, no mínimo, "estranhas". Quase nunca saíam de casa e, quando o faziam, eram juntos e sempre à noite. Havia também o filho deles, um garoto que o escritor sempre via através da cortina da janela presa no quarto, e que andava de um lado para o outro várias vezes, num tipo de loop infinito. Davis não sabia explicar, mas acabou criando uma certa cisma dos dois, assim, gratuitamente.
Numa madruga, Toddy foi acordado com um grito estrangulado e sofrido próximo, seguido de batidas abafadas na madeira oca. Ele se levantou com dificuldade devido ao gesso na perna e foi até a janela, pegou seu binóculo e começou a observar em todas as direções, focando na residência dos Gormans. Ficou surpreso por nenhum outro vizinho ter acordado para verificar o que estava acontecendo.
"Eles estão agredindo o filho?", pensou Toddy, ao ver, com certa dificuldade, através da cortina da janela, o garoto agachado no chão, parecendo tentar se defender de uma possível agressão.
Davis e os Gormans residiam em um conjunto de casas populares em Kilburn, no subúrbio de Londres. O escritor morava em um bloco atrás do casal, o que lhe dava uma visão privilegiada da casa de Sime e Martha, e, sobretudo, do quarto do filho deles.
— Polícia de Londres, como podemos ajudar? — questionou uma voz feminina e quase metálica do outro lado.
— Quero fazer uma denúncia. — disse Davis.
— Pode me comunicar a sua ocorrência, estou anotando.
— São meus vizinhos. Eles têm um filho pequeno, não sei a idade exata. Parece que estão machucando a criança.
— Está bem! Por gentileza, me informe o endereço da residência para que eu possa enviar uma viatura para verificar a situação.
— Certo!
Meia hora depois, Toddy viu quando um carro da polícia chegou à residência dos Gormans. O escritor percebeu quando Sime abriu a porta, mas não tinha como saber o que eles conversavam, o que frustrava Davis.
"Droga, como eu gostaria de ser uma mosquinha para saber o que eles estão dizendo", pensou ele.
Davis ficou surpreso quando viu os dois policiais entrando na casa do casal.
"Isso, peguei vocês seus bandidos!"
Aproximadamente quinze minutos depois, Toddy viu os dois policiais saindo da residência, mas não percebeu a presença do casal que acompanhava os oficiais até a saída.
Que coisa estranha! "Onde estão eles?", pensou ele enquanto vasculhava com seu binóculo cada canto da residência em busca de Sime e Martha.
Aproximadamente uma hora depois, Davis observou as luzes da casa serem apagadas, uma a uma, até que a escuridão foi total.
"Onde eles estavam durante todo esse tempo?", indagou o escritor.
2.
Toddy gritou:
— Ah, estou descendo.
Davis abriu a porta e cumprimentou a diarista com entusiasmo, demonstrando que sentia grande necessidade dos serviços prestados por ela.
— Bom dia, Sra. Russell. Entre, por gentileza!
— Obrigado, Sr. Davis! Poderia fazer uma pergunta? — disse ela.
— Sim.
— Ainda está espiando seus vizinhos?
Davis deu de ombros.
— "Espionando" é um termo muito forte para ser empregado em minha rotina, Sra. Russell. Eu usaria a expressão "cuidando da segurança dos meus vizinhos", pois nunca sabemos quando um estranho pode invadir nossa residência.
A mulher o encarou com uma expressão engraçada.
— O senhor ainda vai acabar preso, Sr. Davis. Espionar a vida dos outros sem permissão é crime na Inglaterra, e acho que em qualquer outra nação também.
— Ontem eu chamei a polícia para os Gormans. — disse Toddy.
Margareth Russell o encarou com uma expressão de interesse e surpresa.
— E por que o senhor fez uma coisa dessas?
— Pensei que eles estivessem agredindo o filho.
— Estavam?
— Não sei dizer, estava escuro e havia uma cortina no quarto do garoto que impedia que eu enxergasse com clareza.
Houve um momento de silêncio. Toddy limpou a boca e disse:
— No entanto, acredito que não encontraram nada suspeito. Os policiais foram embora.
Toddy deu um longo e decepcionante suspiro.
A Sra. Russell perguntou:
— A sua perna está melhor hoje?
— Claro. Obrigado por perguntar. Não vejo a hora de tirar esse gesso maldito.
— Calma, homem de Deus, logo o senhor estará livre dele — disse ela. — Deixe-me começar minhas atividades. Vou colocar as roupas na máquina e depois preparar algo para o senhor comer. Já tomou café hoje?
— Claro. Não se preocupe com isso.
Quando Toddy estava fechando a porta, percebeu que Sime Gormans o fitava do outro lado da rua.
"Será que ele tem conhecimento de que eu liguei para a polícia?", perguntou ele, aparentando ansiedade.
— Falou algo, Sr. Davis? — perguntou a diarista.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Não! Apenas pensava em voz alta.
Quando olhou novamente para o outro lado da rua, Sime havia sumido.
"Droga, ele sumiu.", disse o escritor.
Toddy observou a rua vazia e pensou: Ele sabe que fui eu quem chamou a polícia.
No mesmo dia, Toddy jogava paciência no sofá da sala enquanto a Sra. Russell continuava com suas tarefas domésticas na cozinha. Enquanto se ocupava no fogão, ela ouvia notícias no rádio.
"As autoridades da capital continuam intrigadas com os misteriosos desaparecimentos da população de rua de regiões como Finchley, Hendon, Kilburn e Brent, dizia o locutor. Testemunhas disseram ter visto um Ford Mustang 1967 da cor vermelha sempre perto de onde algumas dessas pessoas desapareceram. Entretanto, especialistas em segurança descartam a hipótese de que um assassino ou um grupo de extermínio esteja perseguindo e matando essa gente, como sugerem outras autoridades do assunto."
—Jesus Cristo, que horror! — disse a Sra. Russell, surpresa.
"E agora, mudando de assunto", disse o locutor da rádio, mas ainda no campo do mistério. Após uma denúncia anônima, a viatura policial com os corpos dos agentes Randal Hawkins e William Conrad foi encontrada hoje pela manhã. Eles estavam desaparecidos desde a madrugada quando foram investigar uma denúncia de violência doméstica na área de Kilburn.
Toddy virou-se no sofá na direção da cozinha, encarando a diarista.
— Aumente o volume do rádio, Sra. Russell, por favor! — solicitou ele.
— Sim.
"Ainda não há motivos claros para o duplo homicídio, mas as autoridades trabalham com a possibilidade do crime organizado estar envolvido", concluiu o locutor.
Davis respirava com dificuldade enquanto ouvia o restante da reportagem.
"Foram eles dois", resmungou ele, num sussurro quase estrangulado, mas como eles fizeram isso? Vi os policiais saindo da casa.
A Sra. Russell observou-o com interesse e perguntou:
— Está tudo bem, Sr. Davis?
Toddy fez um sinal com a cabeça e disse lentamente:
— Foram eles dois — Davis fez uma pausa, e continuou. — Sime e Martha Gormans assassinaram aqueles dois policiais. A senhora lembra que eu informei que entrei em contato com a polícia para denunciar os dois por agressão ao filho?
A mulher ficou empalidecida.
— Hã-hã... lembro-me, sim.
— Os corpos encontrados na viatura eram com certeza dos policiais da ocorrência.
— Mas o senhor disse que os viu saindo da casa, não viu? — perguntou a Sra. Russell, criando dúvidas na cabeça de Toddy.
— Não tenho mais certeza. E se eles não fossem eles? E se quem eu vi saindo da residência eram Sime e Martha disfarçados de policiais? Houve um momento em que eles desapareceram por algum tempo. — questionou o escritor.
— Acho que precisa parar com isso, esse negócio de espionar os seus vizinhos já está indo muito longe. O senhor viu a polícia acusar o crime organizado, em vez de seus vizinhos. Isso já está se transformando numa paranóia.
Toddy deu um longo e profundo suspiro.
— Ok — disse ele. — Acho que a senhora está certa. Posso estar ficando paranóico mesmo.
— Oh, por Deus! Vanha vê uma coisa, Sr. Davis, rápido!
— O que aconteceu de tão urgente, Sra. Russell?
Davis ficou surpreso quando viu Sime e Martha sendo levados por um carro da polícia no banco de trás, e um sorriso tímido, mas esperançoso brotou no canto da boca do homem.
"Foram pegos, finalmente ", pensou ele, eufórico.
3.
Durante as semanas seguintes, Toddy permaneceu vigiando todos os movimentos dos Gormans: suas saídas furtivas e misteriosas altas horas da noite, a relação com o filho que ninguém nunca viu durante o dia. Pelo o que ficou claro para Davis, a polícia não encontrou evidências suficientes para culpar o casal pela morte dos dois agentes.
Um questionamento intrigante tomava conta da mente do escritor: como Sime e Martha conseguiram afastar as suspeitas das autoridades em relação a eles e atribuir a culpa pela morte dos dois policiais ao crime organizado?
"Preciso entrar naquela casa e encontrar alguma prova que incrimine aqueles bandidos. E salvar a criança dos maus-tratos", pensou Davis.
Algum tempo depois, já sem o gesso na perna que incomodava, mas necessitando de muletas para se locomover, Toddy resolveu colocar em prática o seu plano de invadir a residência dos Gormans em busca de provas que incriminem o casal.
— Só preciso que a senhora fique atenta caso eles voltem antes do previsto, certo, Sra. Russell? — disse Toddy para a sua diarista.
— Ainda não sei como deixei o senhor me convencer a participar desse seu plano maluco? — perguntou a mulher. — Não tenho mais idade para esse tipo de aventura e muito menos sou uma personagem detetive dos romances da Agatha Christie. Não seria mais fácil chamar a polícia logo?
— Não sei se a senhora se recorda, mas dois policiais foram assassinados na última vez que eu precisei chamar a polícia. Se lembra disso, Sra. Russell? E também tem o fato de não terem descoberto nada contra os dois. Não sei como fizeram isso?
— Certo! Eu compreendi.
Por volta da meia-noite, o casal tirou o carro da garagem de forma discreta, um Mustang 1967 de cor vermelha.
Toddy ficou paralisado diante da imagem do veículo e da possível conclusão que se formava em sua mente.
— Sra. Russell, lembra qual era o modelo do carro visto perto de onde os moradores de rua desapareceram? — perguntou ele.
— Mustang vermelho de 1967, se a minha memória não estiver errada — respondeu a mulher. — Sim, esse era o veículo.
— Eles possuem um igual — disse Davis.
A Sra. Russell pegou o binóculo de Toddy e olhou para a garagem da casa de Sime e Martha, e, chocada, concluiu o óbvio.
— Jesus Cristo, querido! Eles são os responsáveis!
O carro rubro saiu silencioso pela rua deserta, desaparecendo na escuridão da noite.
— Não vou perder essa chance — disse Davis. — Fique atenta se eles voltarem antes de eu deixar a residência, Sra. Russell. Qualquer problema, use o apito que lhe dei. Eu vou manter meus ouvidos bem atentos.
— Tome cuidado, Sr. Davis!
— Pode deixar.
Toddy seguiu para casa dos Gormans com certa dificuldade, pois ainda precisava da ajuda das muletas para andar. A noite estava silenciosa como um cemitério, e o único sinal de vida era o som do seu coração batendo forte no peito. A lua pendia no céu, como se o vento a tivesse inclinado, enquanto nuvens esparsas corriam, de texturas mais diáfanas e delicadas. O homem sentia uma inquietação no ar.
Davis parou na frente da casa dos vizinhos. Olhou para o quarto do filho de Sime e Martha. Viu, através de uma luz pálida que iluminava o ambiente, o reflexo da criança de pé, imóvel como uma estátua. Seu corpo se arrepiou completamente.
Com o coração batendo acelerado demais, ele dirigiu-se aos fundos da residência. Parou na entrada da cozinha.
"Geralmente as pessoas deixam a porta aberta", pensou o escritor.
Tremendo dos pés à cabeça, Toddy segurou firme o trinco, os olhos arregalados e vidrados, virando a cabeça para o lado enquanto abria a porta.
"É por isso que o número de invasões a residências no Reino Unido tem crescido a cada dia. Se as pessoas trancassem pelo menos as suas portas ao sair de casa", brincou ele, comprimindo os lábios para reprimir um sorriso.
Na cozinha, havia uma mesa de carvalho que estava disposta sob uma janela. Uma geladeira e um fogão complementavam o ambiente simples. O lugar tinha um odor acre de folhas em decomposição, misturado com terra molhada, e o clima era extremamente frio, como se o sol não pudesse nunca penetrar pelas vidraças das janelas.
Davis teve a sensação de que fosse vomitar vomitar. Respirou fundo e começou a caminhar o mais rápido possível. Ele saiu da cozinha e entrou num corredor, passando por uma sala assustadoramente vazia de móveis, penetrando cada vez mais fundo na casa. Ele parou no topo da escada e subiu apoiado nas muletas. A luz era baixa, os degraus comidos pelos pés, o corrimão pegajoso; mas Toddy não viu e nem sentiu nada.
O escritor chegou em um corredor igualmente escuro, com paredes sombrias e um ar de maldade pairando perto dele. Havia apenas dois quartos, um no começo e outro no final do corredor.
"Um deles deve ser o quarto do garoto", concluiu Davis, abrindo a porta do primeiro, que era a suíte do casal.
Toddy se dirigiu ao final do corredor, parou na entrada do segundo quarto e abriu a porta.
— Que merda é essa? — perguntou ele, olhando para a entrada de um sótão.
4.
Quando percebeu que os Gormans voltavam para casa em seu sinistro Mustang, a Sra. Russell se desesperou e começou a soprar o apito, fazendo um grande barulho na tentativa de chamar a atenção de Toddy para a presença de Sime e Martha.
— Por favor, ouça o sinal, Sr. Davis — sussurrou ela, assustada. — Onde o senhor está que não ouve?
Toddy subiu ao sótão com certa dificuldade, através de uma escada ainda pior do que a primeira e mais escura. Em cima, uma salinha, mal iluminada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.
De costas para a janela, de forma que a pouca luz de fora batia em cheio em seu rosto, encontra-se uma criança de pé, imóvel, com a boca aberta e fechando na vã tentativa de morder o ar. Ao observar a pele branca como um alabastro com feridas pútridas e um olhar vagaroso, Toddy experimentou um misto de espanto e medo.
Ele estava de pé no centro do cômodo, olhando perplexo para a figura do garoto zumbi, quando ouviu um som nas suas costas e se virou, encontrando Sime e Martha no vão da porta a observá-lo.
— A curiosidade matou o gato, Sr. Davis — falou Sime. — Deveria ter conhecimento disso melhor do que ninguém, afinal, o senhor é um escritor dessas besteiras de contos de terror.
Toddy observou o casal com surpresa.
— O senhor caiu como um patinho na nossa armadilha — disse Martha. — Acha que o meu marido e eu fomos caçar vítimas para o nosso filho? Ingenuidade sua, Sr. Davis. Tudo não passou de uma distração, pois sabíamos que o senhor viria até aqui. Nós o obrigamos a vir.
— O que é ele? — questionou Toddy, apontando para o garoto zumbi.
— Ele é o nosso filho — respondeu a Sra. Gormans, ríspida. — E meça suas palavras quando for se referir a ele.
Sime se aproximou de Toddy e o olhou de perto.
— O senhor quase nos colocou em um grande problema ao nos denunciar à polícia, Sr. Davis. Tem ciência disso? Matar mendigos é uma coisa, ninguém se importa com esses indivíduos. Agora, executar policiais já é um tanto complicado.
— É isso mesmo — disse Martha. — O senhor nos fez chegar até o nosso limite, Sr. Davis. Definitivamente, matar policiais não estava nos planos. Meu esposo também é ex-policial, o que tornou mais fácil burlar o sistema e atribuir a culpa pela morte daqueles dois à máfia. Essa foi a nossa sorte.
A Sra. Gormans soltou uma risada histérica que chocou Toddy.
"Então foi assim que eles conseguiram", pensou ele.
— Como tiraram os corpos sem ninguém perceber?
— Sem o senhor perceber, essa é a pergunta, não? — disse Sime, sarcástico. — Naquela altura dos acontecimentos já tínhamos ciência de que era o senhor quem estava nos vigiando, não atoa eu fui eleito o melhor detetive investigativo dá minha unidade por três anos seguidos, Sr. Davis. Levamos a viatura até a rua de trás com os faróis desligados e retiramos os corpos pela porta dos fundos.
— Então dirigimos até uma área deserta que também serve de desova de corpos da máfia, manipulamos a cena para parecer que tenha sido uma queima de arquivo por parte de criminosos insatisfeitos com a conduta de dois policiais corruptos querendo ganhar mais. Seja que foi um plano um tanto complexo, Sr. Davis, mas eficaz no final das contas. — concluiu Martha.
— O nosso filho se chamava Allan...
— Ele ainda se chama Allan, meu querido — Martha corrigiu o marido. — O nosso filho havia morrido em uma queda de cavalo anos atrás. Ficamos muito abalados na época, então tivemos a notícia da existência de um bruxo vudu haitiano que poderia trazer o Allan de volta à vida, mas não como no passado.
— Inicialmente, não acreditamos — afirmou Sime. — Afinal, trazer pessoas mortas para a vida, que absurdo. Até que percebemos Allan vivo novamente com nossos próprios olhos.
— Como? — perguntou Toddy.
— O garoto voltou à vida, mas com uma fome insaciável por carne fresca — disse Sime. — Não podíamos sair por aí matando todos os nossos vizinhos e seus animais, chamaria muita atenção.
Toddy ficou surpreso ao relembrar que quase nenhum dos vizinhos viu quando a polícia foi até a residência de Sime e Martha Gormans.
"Será que eles haviam matado todos?", pensou Toddy, assombrado com essa possibilidade.
— Moradores de rua eram a melhor maneira de alimentar o nosso filho sem despertar a atenção dos outros — falou Martha. — Quem se importa com essa gente? Estamos prestando um serviço ao livrar a cidade desses parasitas.
Toddy ficou enjoado de medo, olhava perplexo para o casal, tentando compreender se a natureza daquelas duas criaturas era realmente real.
— Solta o gato para brincar com o rato! — disse Martha, rindo.
Sime rolou uma alavanca que fez a corrente que estava presa numa das pernas de Allan ser esticada o bastante para que o zumbi infantil pudesse circular pela salinha sem problemas.
Sime e Martha observaram de longe a ação.
Toddy se desequilibrou nas muletas e caiu de costas no chão, enquanto o zumbi dos Gormans avançava devagar em sua direção. O medo descontrolado tomou conta dele. O tempo pareceu parar, se transformando em um pesadelo em câmera lenta, enquanto a criança morta-viva caminhava decidida a comer sua carne.
Por um instante, Toddy não respirava. Deitado no chão frio, fixou a atenção no cadáver que caminhava. O corpo de Davis reagiu por impulso. Ele pegou uma das muletas com as duas mãos, levantou para o alto de forma precisa e certeira, girando com força e golpeando o crânio oco de Allan Gormans.
— Não! — gritou Martha, em pânico com a cena.
O casal seguiu em direção ao filho, dessa vez, literalmente morto de verdade.
— Não! Não! De novo, não! — Martha soluçava incontrolavelmente, enquanto o marido tentava acalmá-la, sem poder acreditar no que Toddy havia feito.
Aproveitando da distração do casal, Davis obrigou-se a ficar de pé nas muletas e saiu o mais rápido possível para longe, chegando à entrada do sótão; deu um pulo do lugar, atirando-se de cima escada abaixo.
Sentindo dor pela queda, o escritor teve que se esforçar ao máximo para se manter em pé, puxando a escada do sótão para cima e fechando a porta, mantendo os Gormans dentro. O casal ficou apavorado esmurrando a porta do sótão e falando todos os tipos de palavrões contra Toddy.
Davis parou de repente ao se aproximar da cozinha ao ouvir o som de vidro se quebrando. Ele olhou para trás por um segundo e não viu nada.
Toddy se deparou com Sime e Martha na entrada da cozinha, tomados de ódio e desejo de vingança pelo filho que morreu.
— Não deveria ter assassinado o nosso Allan. — a voz de Martha estava carregada de fúria.
— Ele já estava morto, Sra. Gormans — disse Toddy. — Vocês são malucos.
— Não nos chame de malucos por querermos ter o nosso filho sempre ao nosso lado, não importando as circunstâncias. — gritou Sime, histérico.
O casal voltou com Toddy para dentro da residência, fechando a porta da cozinha. Martha pegou duas facas grandes na gaveta do armário.
— Vamos precisar delas. — disse a mulher, rindo de maneira louca.
O escritor sentiu uma onda de adrenalina na circulação. Os pensamentos se transformaram numa tempestade de medo e vulnerabilidade.
"Que droga, a curiosidade não matou o gato, mas vai matar um escritor de terror", pensou Davis, comprimindo os lábios para reprimir um sorriso.
— O que vamos fazer com você, Sr. Davis, agora que não temos mais o nosso pequeno Allan para nos livrar da sua carcaça nojenta? — Sime gritou, parecendo possuído por demônios. — Tudo isso por sua "única e exclusiva culpa", seu escritorzinho de merda. Por que teve que ficar xeretando a vida dos seus vizinhos? Bem típico da sua profissão, poderia ter sido repórter, pensou?
— Na verdade, foi a minha primeira opção. Mas repórteres ganham pouco, Sr. Gormans. — respondeu Toddy, irônico. — Se bem que escritores também.
— Deixe de gracinhas e ande logo — falou Sime, empurrando Davis para o centro da sala de visitas do casal. — É aqui que o senhor morre.
Sime e Martha levantaram as suas facas para golpear Davis.
Toddy sentiu o peito apertando como se fosse ter um ataque cardíaco. Fechou os olhos com força, os pensamentos se transformaram novamente numa tempestade de medo e vulnerabilidade. Ficou esperando o momento em que o mundo ia escurecer, mas nada ocorreu.
Uma voz feminina foi ouvida atrás dos Gormans, frágil, mas decidida.
— Deixem o Sr. Davis em paz, seus patifes — disse a Sra. Russell, erguendo uma grande e pesada frigideira, nocauteando em cheio as cabeças de Sime e Martha, deixando-os desacordos no chão. — Ninguém mexe com o meu patrão.
— Não sabe como estou imensamente grato por vê-la aqui, Sra. Russell. — falou Toddy.
— Eu faço uma ideia, Sr. Davis. — respondeu ela, soltando uma risada animada, seguida por Toddy.
De repente, luzes azuis e vermelhas dançantes refletiam o interior da residência.
— Tomei a liberdade de chamar a polícia antes de vir resgatá-lo.
— Fez bem, Sra. Russell.
Toddy sorriu.
TEMA: Vizinhos Suspeitos, Ressureição e Fome.