LEVEI VANTAGEM! - CLTS 29
O VIZINHO
Lapa. A contemplar as evoluções parabólicas dos Arcos, e ainda que a idade me arqueasse a cerviz, lá seguia eu sob o acalanto da mãe de todos os bêbados e bambas, a boemia, competindo em energia com a mocidade mais vibrante daquele tempo.
— Antenor, Antenor, já são horas. Quatro da manhã! — alertou-me o companheiro de copo, que aproveitava um resto de sobriedade para checar os ponteiros do relógio.
Despedimo-nos do último bar, e o colega, oferecendo-me o arrimo de seu ombro, conduziu meu alquebrado corpo até o sobrado da Moraes e Vale. Caminho breve, porém eterno. Agradeci-lhe a cortesia, ao chegar, e o despachei. Seu nome há muito se me despregou da memória, mas a nostalgia daqueles tempos, daquele ano de 1933, permanece doce e pungente.
Época, sim, de gratas emoções, quando eu emprestava os ouvidos aos acordes harmoniosos da flauta de Pixinguinha; quando a meu lado, ocupando a mesma mesa de bar, Noel Rosa desafogava um samba que lhe vinha estrangulado no peito. E ao fim de tudo, eu seguia para o fiel sobrado da Moraes e Vale. Na manhã, o sol desdobrava carnavais de ouro e de luz sobre o Rio de janeiro, enquanto meus olhos se fechavam.
Apressado leitor, perdoe a este velho, que já contava setenta anos à própria época dos fatos, os arroubos saudosistas dos primeiros parágrafos, mas não encontrei outra maneira de me apresentar. Tentarei agora cativá-lo num estilo mais ágil e evolvente.
Minha desventura começou quando um novo inquilino foi morar no pavimento superior do sobrado. De meu quarto, no térreo, sofria-lhe os passos acima, castigo a mais na tortura da ressaca. Eu tinha por cama uma tosca armação de madeira, que entretanto suportava o colchão e o peso de meu cansaço. Outras peças de mobília cumpriam suas funções banais: uma cadeira de pau junto à mesa onde eu comia, uma arca de médias proporções para guardar trecos, um capacho surrado no chão e quadrinhos nas paredes.
Eu raramente via meu vizinho, posto que nossas rotinas não se esbarravam: ele, homenzarrão ocupado e grave, saía cedo para o trabalho; e este que lhe fala, malandro inveterado, trocava o dia pela noite.
E foi por essa razão que me estarreci quando, uma semana após a sua chegada, de um “pé sujo” próximo à Praça Tiradentes avistei o sujeito, há bons dez metros, fitando-me franca e duramente. A ameaça conduziu minha mão à navalha do bolso, porém permaneci sentado, observando-o dar meia volta e seguir na direção da Moraes e Vale. A madrugada era quente, mas eu tinha os dedos gelados, com os quais envolvia a lâmina companheira.
Dois dias se passaram sem que eu o visse, não me deixando ciente de sua presença senão pelos ruídos do andar superior. Quando acordei após um porre, em meu aposento, por volta das cinco da tarde, escutei que batiam em minha porta.
— Com licença, Seu Antenor — era ele. — O bom vizinho não me concederia um copo de açúcar? — E me estendeu o copo, com um sorriso discreto.
Só então lhe pude observar as feições demoradamente. Sobrancelhas grossas, pontilhadas por fios grisalhos, assentavam-se sobre os olhos firmes; do nariz, excessivamente longo e viril, surgiam duas fossas negras acima do bigode escanhoado. A boca lembrava uma fissura em pedra, tão rígida que me pareceu ser impossível ao homem abrir um sorriso verdadeiramente largo e jovial. Não. Apenas o risinho avaro de dentes, dado quase que por esmola.
Perambulei pelo aposento, ainda estremunhado, mitigando na ansiedade o restinho de embriaguez que me entorpecia. À sombra do sujeito espadaúdo, encabulei-me e, depois de alguns segundos de pesquisa inútil, forneci a óbvia resposta:
— O senhor queira me desculpar, mas não costumo manter comida em casa. Minhas refeições, ou as trago da rua, ou as faço por lá mesmo.
— Oh, sim! — disse, lançando um olhar demorado para dentro, por cima da minha cabeça. — Acho que terei mesmo de comprar meu açúcar para o café. Passar bem, Seu Antenor — e despediu-se esfregando as narinas enormes.
Cerrei a porta e uni o ouvido à madeira, com o que pude escutar os passos lentos e duros sobre os degraus, mais distantes a cada pisada. De fato, o novo vizinho me afligia. Há dois dias, na Praça Tiradentes, fitava-me como um assassino; agora, ostentava sua cortesia tímida para me pedir um copo de açúcar. Mas talvez em meu lugar, leitor, você o tomasse por empregado modesto, contínuo de repartição ou copidesque de jornal, tampouco fazendo caso daqueles modos apáticos. Afinal, quando foi que me concederam o condão de julgar os temperamentos infalivelmente?
Na madrugada seguinte, não voltei bêbado ao sobrado. A carantonha do vizinho se me prendera à memória, por isso decidi permanecer razoável até que, por fim, concluísse serem vãs as minhas apreensões. Mas ao dar com a porta, ao chegar, qual não foi meu espanto: entreaberta, dela escapava uma réstia de luz. Agarrei de pronto a navalha e bendisse a decisão de haver permanecido sóbrio. Olhei discretamente e percebi o sujeito lá dentro, metido num jaquetão que lhe avantajava a figura, vasculhando a mobília com interesse.
O orgulho e a indignação ferviam-me no peito: eu estava certo! O tipo era um malfeitor, talvez ladrão ou maníaco homicida. Não, eu não me atemorizei. A lâmina cintilava em minha mão, como a rivalizar com os astros que luziam no céu limpo. Eu respeitava o obstáculo da idade, mas também era crente de que esse mesmo vigor com que eu aplacava o sono, nas noites de seresta, conceder-me-ia o ímpeto de abrir um corte na garganta do invasor.
E motivado por tal decisão, chutei a porta e entrei, brandindo a lâmina com tal ferocidade que o próprio Madame Satã, se tivesse visto, tremeria nas bases.
— Não se mexa, safado — ordenei —, ou lhe arranco a cabeça com minha navalha!
O grandalhão, entretanto, não se alarmou. Certamente já esperava minha chegada e se manteve de sobreaviso. Fitou-me diretamente, com a sisudez de sempre, mas que agora deixava transparecer a impessoalidade profissional com que disse:
— Antenor, o senhor está preso por ocultação de cadáver.
E sentou-se na a arca, apontando-me o revólver, enquanto deslizava a mão sugestivamente sobre a tampa de carvalho.
A FOME
Leitor estimado, deixe que Antenor considere sua sorte diante da situação em que se meteu e permita-se viajar a terras longes, na geografia e no tempo: a República Socialista Soviética da Ucrânia, em 1933.
Contando em seu território com extensas planícies, onde o trigo vicejava nas messes e os rebanhos faziam a alegria dos camponeses orgulhosos, a Ucrânia era tida por celeiro daquele império chefiado por Josef Stalin. Porém, em 1933, já a Ucrânia e outras repúblicas soviéticas penavam com a fome.
Tome, leitor, como exemplo a Cirilo: homem de trinta e dois anos, que deveria gozar saúde perfeita para o trabalho, tem os olhos fundos, amarelados pela icterícia, perdidos no nada; os dedos agarram uma batata podre. O coitado a morde com avidez e nota que alguns dentes ficaram presos ao tubérculo. A situação não o impressiona, porque a mão negra da fome confrange-lhe o estômago, e ele continua a roer o alimento que teve a dita de encontrar. Se lhe removemos os andrajos, ei-lo na terrível nudez: o tórax tem qualquer coisa de harpa, e as costelas são as cordas de que o próprio diabo extrai melodias dissonantes: os gemidos que lhe escapam da boca desdentada, macabro canto de glória à bandeira que tremula desde o Kremlin, ostentando a foice e o martelo.
— Meus irmãos — Alexei dirigia-se ao magote de camponeses —, vocês são homens de coragem. Estamos aqui reunidos em segredo, porque seríamos mortos se o fizéssemos abertamente. Serei breve. Temos companheiros famintos; suas mulheres e filhos morrem à míngua. Nossas mulheres e nossos filhos igualmente padecem.
— Coletivizaram as terras, obrigaram-nos a entregar até o pão diário para o Estado! — indignou-se um camponês.
— Fale baixo, companheiro! — alertou Alexei. — Você diz a verdade. Todos sofremos essa desgraça. Por isso estamos aqui.
— Então o plano está de pé?
— Só temos duas alternativas: ou saqueamos o celeiro ou morreremos todos de fome.
Em silêncio, mal se aguentando sobre os pés que congelavam, Cirilo tudo escutava silenciosamente.
Alexei recebia diariamente o olhar feroz dos agentes do governo, os quais, com seus fuzis, fiscalizavam os trabalhos do campo. Ele era tido por “kulak”, camponês próspero, dono de seu pedaço de terra, produzindo para si e lucrando com o excedente. Aos olhos do Estado, não havia crime mais hediondo. Mas isso há muito estava resolvido: as terras de Alexei agora pertenciam a todos, que compartilhavam os mesmos campos, as mesmas ferramentas e também a mesma fome. Era o Holodomor.
No ano anterior, fora imposta a Lei das Cinco Espigas: quem se deixasse surpreender roubando comida das fazendas do Estado era punido com dez anos de trabalhos forçados. Ou com a morte. Durante algum tempo, a ameaça desses castigos assombrou o sono de Alexei. Porém a fome tornava-se mais cruel. Pelas ruas das cidades e pelas estradas rurais, ucranianos tombavam mortos. Não havia outra alternativa para aquele grupo de camponeses senão saquearem o celeiro.
Três dias após a primeira reunião, encontraram-se em segredo no mesmo lugar para os acertos finais do saque, marcado para a madrugada seguinte.
— São ao todo cinco guardas que cuidam do celeiro, mas a partir das três da manhã apenas um faz a ronda. É nesse momento que iremos agir — Alexei instruía com detalhes.
— E como será? — indagou alguém.
— O vigia permanece quase todo o tempo diante do portão, bem à vista do aposento onde os demais estarão dormindo. No período de uma hora, ele dá quatro voltas no celeiro, trajeto que leva cinco minutos. É quando iremos eliminá-lo: ao passar por trás do celeiro, onde ninguém o possa ver.
— E quanto aos outros?
— Estaremos com o fuzil do primeiro guarda. Será fácil invadirmos o dormitório e surpreendermos os demais, durante o sono.
— E como você pensa que tudo irá terminar?
— Teremos um celeiro abastecido e quatro reféns. Com um poder de negociação forte, reivindicaremos melhorias.
Alexei deixava transparecer convicção em suas palavras, de modo que os companheiros, e até mesmo o frágil Cirilo, mantinham os olhos pregados no líder. Era de ver o semblante heroico daqueles homens, que, contudo, não notavam um ceticismo velado sob a eloquência do “kulak”.
Ele cria em seu plano. Passara duas semanas a observar a dinâmica dos vigias, seus movimentos de ronda, seus horários, seus cambaleares de sono ao finalmente retornarem ao aposento, quando outro parceiro assumia a guarda do celeiro. Daria certo. Mas e depois? Teria os reféns, porém tão logo obtivesse êxito nas trocas, viriam cruéis retaliações do governo; contaria, também, com fuzis para a luta, mas só por um milagre sua resistência se sairia vitoriosa contra as levas de homens enviadas para lá. Intimamente, Alexei sabia: a morte era certa. Contudo, por que aceitar passivo a inescapável inanição, se era mais nobre perecer lutando pelos seus?
As rajadas frias tremiam-lhe os ossos, porém dois homens fortes, às ordens do intimorato Alexei, muniram-se de paus. Aqueles camponeses rebelados, em meio às sombras da madrugada, fizeram-se guerreiros; a sobrevivência dos demais dependia de sua coragem. O “kulak” apalpava os braços combalidos pela fome, confiante de que deles viria o golpe mortal contra o guarda do celeiro.
Os três acoitaram-se atrás de uma sebe, na hora aprazada, de olhos fixos no vigia. Tudo conforme o planejado. Permitiram, ainda, que o alvo perfizesse sua primeira volta, para se certificarem do tempo gasto. Agora era esperar pela segunda.
O guarda permaneceu estático, de quando em quando a bafejar sobre as palmas, tendo sempre ao alcance das mãos o fuzil pendurado à bandoleira. Passados alguns minutos, iniciou a nova ronda.
— Vamos! — Alexei sussurrou.
Os três se adiantaram para o celeiro, engolindo em seco ao passarem diante do dormitório dos guardas, de onde não vinha sequer um murmúrio.
Ao alcançarem o celeiro, seguiram o rastro do alvo, a fim de surpreendê-lo por trás. Avançando pela parede lateral, já Alexei exultava com o sucesso. Apertava a madeira com a sanha dos assassinos, preparando-se para o golpe. Bastava uma pancada. Só uma. E mesmo que o guarda gritasse por ajuda, ele pensava, o ruído do vento lhe abafaria a voz.
Por fim, ao contornar para a parede traseira, onde julgava que sua vítima aguardasse por ter o crânio rachado, sobreveio-lhe a desgraça: Alexei deparou-se com um cano de fuzil apontado para si, e foi sua última visão antes de ser imobilizado, junto aos dois companheiros, pelos outros guardas.
A RESSUREIÇÃO
Peço-lhe atenção, leitor, para o desfecho da minha estória.
— Sejamos razoáveis, Antenor. — O policial que se passara por vizinho mantinha a mira sobre mim. — Você não irá me ferir. “Joga fora esta navalha que te atrapalha” — gracejou.
O sujeito fiava-se tanto em seu revólver de ação dupla, que sequer fez caso quando recoloquei a lâmina no bolso do paletó.
— Sei que está com a chave que abre esta arca. Entregue. Depois, iremos para a delegacia e você prestará seu depoimento.
Vi-me sem saída. Eu não poderia lutar nem fugir, então deixei que tudo tomasse a sua ordem natural: passei-lhe a chave.
Ainda me apontando o revólver, destrancou a arca e ergueu a tampa com o pé, valendo-se do braço livre para cobrir o nariz.
— Que fedor! — ele exclamou. — Você pensou mesmo que não iriam notar?
E sem que fugisse à tentação de averiguar o interior da caixa, recuou atônito, a tremer, com o que viu. Aproveitei a ocasião rara e investi contra ele, subtraindo-lhe o revólver num lance rápido. Dividido, talvez, entre a ameaça que eu agora representava e o assombro do que vira na arca, o policial avançou contra mim, e não tive outra saída senão puxar o gatilho.
A partir daí, era necessário que eu fosse rápido. O disparo certamente alarmara a vizinhança na madrugada. Acerquei-me da caixa onde escondera, há alguns meses, meu corpo verdadeiro e fiquei pronto para a Transmutação. Ainda sob a carne do velho Antenor, vi-me rodeado de trevas entorpecentes. Apaguei para ressurgir na criatura da arca.
Reacostumando-me ao corpo alienígena em que nasci, fui ao pequeno espelho na parede, de tamanho suficiente apenas para que revisse meus três olhos pretos, a boca monstruosa de dentes afiadíssimos e a antena que me rematava a parte superior da cabeça. E todo esse conjunto era feito coerente por meio da pele escamosa que mantinha minhas vísceras no lugar. Isso era eu.
Era eu, sim, agente interplanetário BR-24/11, encarregado de pesquisar a cultura brasileira, mais precisamente o samba carioca. Enviado desde meu planeta ao Rio de Janeiro, tive a sorte de encontrar o corpo de Antenor sobre a arca, sentado, minutos após sofrer um ataque cardíaco. A boemia custou-lhe caro. A mim, no entanto, foi conveniente, pois logo ressucitei o velho, que morrera sem testemunhas, e escondi a criatura extraterrestre na arca.
E passei aqueles doces meses de 1933 na pele do querido Antenor. Minha missão era pacífica, tinha fins estritamente culturais, mas diante da imprudência de haver escondido a criatura naquela arca, que exalava um cheiro natural para mim, porém asqueroso aos terráqueos, terminei por atirar na testa do grandalhão, para não ser descoberto.
Eu conhecia as regras: teria de descobrir outro cadáver para ressuscitar e lhe ocupar o corpo. Era-nos proibido permanecer na Terra com nossa aparência real. O defunto Antenor, no chão, dava pena. Tomei-o nos ombros e varei a janela do aposento, deixando para trás estilhaços de vidro e um policial baleado.
Num átimo, atingi a estratosfera e mergulhei para o Globo, sempre atento às vibrações da antena em minha cabeça, infalível rastreadora de recém-falecidos. Voando raso sobre o Atlântico, logo avistei o Golfo da Guiné. Ganhei altura e segui na direção do Mediterrâneo, contemplando das nuvens a Península Ibérica e os Pirineus, muralha geológica atrás da qual a França se estendia graciosamente. Mas não havia mortos por ali. Cruzei o Mar Tirreno, pousando no cume dos Apeninos, e foi naquela parada que a antena vibrou com força: era um nítido sinal de morte. Parti rumo à União Soviética.
Vasculhei desde os ares os descampados no interior da Ucrânia, fiel à minha antena, até que descobri o cadáver. Fora abandonado a cerca de quinhentos metros de uma fazenda. Apressei-me.
Num local próximo, onde a mata se adensava em arbustos e árvores, com minhas garras abri uma cova para Antenor e outra maior, onde esconderia o corpo alienígena.
Tomando nos braços o pobre velho, cheguei à beira do que os humanos chamam de chorar. Enterneceu-me ter de sepultar Antenor tão longe de casa. Antes de deitá-lo na cova, retirei seu paletó. Meu novo corpo precisaria daquele agasalho, por modesto que fosse contra o frio do Leste Europeu.
Já na pele do homem que descobri se chamar Alexei, vesti o paletó e observei as duas covas devidamente cobertas. Tudo estava bem arranjado. Ao longe, os contornos da fazenda divisavam-se através da neblina, visão que me revelou os traumas de Alexei.
Lembranças adormecidas tornaram a convulsionar em minha mente. Recordei a madrugada em que o saque ao celeiro fracassara e levaram-nos presos. Três meses dolorosos se passaram, nos quais eu fora alvo das piores sevícias: insultos, privações e espancamentos. Presenciara minha mulher ser possuída por três guardas, para dias depois a conduzirem, junto às filhas, à Sibéria.
Eu permanecera na Ucrânia, minha Pátria, esperando morrer. Agora ressurreto, um único desejo me inflamava.
Com um quarto de hora cheguei à fazenda, secretamente. O paletó me confortava no frio daquela branca manhã. Esgueirei-me por entre sebes, carroças e fardos de feno, até que descobri um esconderijo atrás de minha antiga casa. Meu alvo era o casebre vizinho.
Sustive o impulso até que um guarda, que vigiava os arredores, tomasse outra direção. Com tudo limpo, disparei pelo casebre a dentro.
E lá estava ele, corado e um pouco rechonchudo, aproveitando seu último sono. Como é admirável a mudança que a comida diária, ao longo de três meses, pode proporcionar!
— Cirilo, porco traidor! — Dei-lhe uns tapas. — Acorde!
Cobri sua boca antes que pudesse gritar. Em seus olhos, contudo, pude ver o desespero de quem se depara com o inimigo que julgava estar morto.
— Achou que nos entregaria e ficaria ileso, aproveitando a boa vida? — ameacei. — É agora que você morre!
Não sei por que hábito adquirido em ocasiões semelhantes, levei a mão ao bolso do paletó e dei com a navalha do velho malandro.
CONCLUI O NARRADOR
Mas antes que você, leitor, possa fruir o fato sanguinolento, sou obrigado a alertá-lo de que Cirilo despertou do sono, no tranquilo casebre. Em sua mesa havia pão, carne, vodca e tudo de que um ucraniano necessita para ficar de pé. Passou a mão pelo pescoço, mas não encontrou lanho de navalha. Depois se riu do extraterrestre e do malandro carioca, criações de sua imaginação, das quais ignorava a origem. Pesadelos pregam-nos peças inusitadas, fazendo emergir, talvez do que alguns chamam de Subconsciente, realidades com que jamais tivemos contato.
Alexei, o homem que Cirilo entregara, estava realmente morto e enterrado; sua família, num Gulag distante. Foi o que ele ouviu de dois guardas, quando passavam rentes à janela do casebre. Acomodou-se diante da mesa farta, prêmio da traição, salivando de contentamento. E se fosse brasileiro, talvez ali mesmo exclamasse um triunfante “levei vantagem!”