Rastro de Carbono
Lembro que era uma conversa sobre a morte. Não a morte personificada em ossos, substantiva como um deus ou entidade, mas a morte mesmo, aquela nos espreita a cada minuto, a que é irrefreável. Alguém na mesa disse que a morte não existia que esse fenômeno seria apenas uma metamorfose, pois o carbono não se dilui se transforma e nós somos feitos de carbono. Na hora alguém riu, falou-se sobre alma, consciência, reencarnação, propósitos de deus, céu, inferno, até o mudarmos de assunto.
Alguns dias depois, fui para casa da minha mãe no interior, ela não estava, havia viajado pra casa de uma irmã no Paraná. Após a morte de meu pai o quarto dela virou uma espécie memorial que preservava detalhes que davam a sensação de que ele ainda estava ali, uma blusa atrás da porta, o chapéu que ele mexia na horta pendurado no mancebo, seu pente de bolso do lado porta retrato com carteira preta, e na penteadeira um frasco de colônia chamado Rastro ainda pela metade, que ninguém como menos de 50 anos conhece. Nada lembrava mais o meu pai do que o cheiro de feijoada e aquele perfume.
Aproveitei para dormir no quarto, obviamente mais o confortável. O curioso é que desde a infância meus piores pesadelos foram na cama de meus pais. Eram sonhos mórbidos que remetiam a coisas ressentidas e frutos de uma imaginação infantil, mas quando tomei a decisão não me lembrei disso e, mesmo que lembrasse, seria ilógico não aproveitar do conforto por uma tolice dessas.
Tive uma noite perturbada. Levantei-me com a certeza de ouvir o chamado de alguém na porta, que supunha ser minha irmã, mas quando abri, o silêncio pairava na casa e não havia uma pessoa acordada. Aproveitei para ir ao banheiro e, no corredor, um vento diretivo me atingiu, frio como quando se abre a geladeira, mas não tão permanente, só um esbarrão de tecido fino. Estava escuro, mas com clareza suficiente para saber que não havia ninguém. Não tive medo, nem presumi ser algo sobrenatural, pois o meu ceticismo não me permitiu.
Alguma coisa tocou-me de fato. Era sim uma corrente de ar e mesmo sendo um fenômeno pouco provável dentro de uma casa hermeticamente fechada, minha incredulidade não me impediu de arrepiar até o cabelo, pois o instinto não obedece à lógica e as células devem ter vida própria.
Nada mais aconteceu, voltei a dormir ainda inquieto e com arrepios constantes, negando a mim mesmo a perplexidade do ocorrido. Tive sonhos desgastantes com problemas da rotina que se mostram insolúveis e sem propósito, que nos tornam reféns de sentenças sem sentido, eram sonhos parecido com a realidade, acordei exausto.
No café da manhã, a conversa sobre o carbono me voltou a memoria, poderia ser esta uma teoria cientifica para negar qualquer transcendência nos fatos, o que senti foram apenas partículas que um dia foram de meu pai, manifestadas na casa um espasmo instintivo do carbono ao se deparar com a familiaridade genética entre eu e ele, ou talvez era só um grito, um esforço desmedido de uma recordação tentando se fazer presente.
Se o que acontecesse na desintegração de um organismo é apenas recomposição em outros pequenos seres, poderia perdurar a memoria nas coisas?
Li em algum lugar sobre uma baleia que tinha um canto em uma frequência diferente das demais, o que a impedia de comunicar-se, e por fim se relacionar com a sua espécie. Isto também a impossibilitava de ouvir seus semelhantes, ela emanava um som esperando por respostas, mas ninguém a ouvia. É possível que tenha vivido sem saber da existência de outras iguais a ela.
Será que há uma língua no mundo que ninguém conhece? Pairando em tudo que existem, vozes que vagam ao vento cantando a cantiga dos mortos, ou melhor, dos transformados, numa frequência inaudível?
Talvez em algum lugar, meu pai canta ao vento esperando uma resposta…
A ironia é que ele odiava cantar.