ESTRANHOS NO SOBRADO

Quando estava inspecionando a reforma de um prédio, Daniel escorregou de uma escada, caiu e fraturou o pé direito. Com a perna engessada ele foi obrigado a permanecer algumas semanas em repouso. Como era uma pessoa ativa e responsável, ficou preocupado em não poder gerenciar sua empresa de reforma e construção. A impossibilidade de trabalhar deixou-o mal-humorado.

─ O Ricardo é uma pessoa competente. — afirmou Silvia, a esposa ─ Ele vai cuidar dos teus negócios, não se preocupe.

Sentado e com a perna repousando sobre o sofá, Daniel sacudiu a cabeça com expressão triste. Ele confiava no sócio, mas não aguentava ficar parado.

─ Sei disso, mas não suporto ficar sem fazer nada!

─ Faça de conta que estás de férias. Você tem o computador, tem jogos, livros, uma porção de coisas para passar o tempo. O que mais quer?

─ Posso tirar essa bota de gesso do pé?

─ Ora, Daniel! Não seja criança! Preciso ir trabalhar, se precisar de alguma coisa, chame a Rosa.

Silvia pegou a bolsa, as chaves do carro, deu um beijo no marido e saiu.

Naquela manhã, Daniel procurou se distrair lendo um livro. Perto do meio-dia, Silvia telefonou dizendo que não almoçaria em casa. Ela trabalhava como perita criminal do Departamento de Investigação Científica da Polícia Civil. Após o almoço, Daniel subiu para o quarto para uma soneca. Mas ele não conseguiu dormir. Pediu um copo de suco de laranja para Rosa e sentou-se perto da janela para continuar a leitura do livro.

Ao olhar para fora, notou que uma janela do sobrado do outro lado da rua, que ele julgava estar desabitado, estava aberta. Viu um homem na sala tirando alguns objetos de uma mochila amarela com alça vermelha. Daniel voltou à leitura e logo depois olhou novamente para o sobrado. Notou que o homem cortava a mochila em pedaços pequenos e os colocava num saco plástico preto. Em seguida o sujeito saiu para a calçada e colocou o saco na lixeira. Daniel não achou o fato estranho. Era uma pessoa que se desfazia de uma mochila velha, que não servia mais, pensou.

***

─ Como foi seu dia hoje? - perguntou Silvia, durante o jantar.

─ Chato como você pode imaginar. É como estar numa prisão!

Silvia Riu. Depois fez algumas pausas, pensativa, enquanto comia.

─ Alguma coisa te preocupa? Está pensativa.

─ Estamos investigando um caso estranho. Um rapaz foi encontrado morto num terreno baldio, aqui mesmo no nosso bairro. Ele estava completamente desfigurado, com a pele seca, enrugada, como se tivesse envelhecido cinquenta anos. O nome dele é Renato Salgado, tinha vinte e cinco anos, era desportista, praticava canoagem.

─ Qual a causa da morte?

─ Não temos certeza.

─ Você disse que ele tinha uma aparência de um homem velho?

─ Sim. Era um rapaz de vinte e cinco anos e envelheceu uns cinquenta anos! Não se sabe o que pode ter causado aquilo!

─ Talvez alguma nova droga alucinógena, circulando por aí.

Após o jantar, Daniel foi para a sala assistir televisão. No noticiário das dezenove horas foi apresentada uma reportagem sobre a morte de Renato Salgado. Ele havia participado de um torneio em Santa Catarina e viajava de volta para casa, quando desapareceu. Na reportagem foi exibida uma fotografia. Na foto, tirada as margens de um rio, aparecia o jovem de pé junto a um caiaque. Encostada na embarcação, via-se uma mochila amarela com alça vermelha.

Daniel se lembrou do novo morador do sobrado, o homem destruía uma mochila igual àquela. Talvez ele estivesse se desfazendo de uma idêntica, mas e se fosse à do rapaz? Daniel comentou o fato com a esposa.

─ Você disse que ele colocou o saco no lixo?

─ Sim, e a essa hora o caminhão do lixo já passou.

─ Talvez você esteja enganado, de qualquer maneira, pedirei para um investigador procurar saber quem são nossos novos vizinhos.

****

Pela manhã, Daniel resolveu dar uma caminhada. Pegou sua muleta e saiu. No jardim da casa ao lado, o vizinho lavava o carro com uma mangueira.

─ Bom dia, Sergio!

Sergio largou a mangueira, fechou a torneira de água e aproximou-se do portão.

─ E daí meu amigo, o que te aconteceu?

Daniel se apoiou no muro. ─ Quebrei o pé.

─ Que azar, hein? Como vão os negócios?

─ Vamos indo como Deus manda. E você?

─ Estou de férias. Estamos nos preparando para viajar.

Daniel sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado da rua. ─ Eu não havia notado que o antigo sobrado está com novos moradores.

─ O nosso vizinho se chama Victor Jacques, ele é médico. Trabalha no hospital São Vicente.

─ Você o conhece?

─ Não exatamente. O encontrei no supermercado outro dia e conversamos por alguns minutos. Como vizinho, dei-lhe as boas-vindas ao nosso bairro.

─ Não notei quando chegaram. Faz tempo?

─ Uns dez dias.

─ Ele mora sozinho?

─ Com a esposa e a mãe dele, uma senhora idosa.

─ É bom saber quem são nossos vizinhos. Bem, darei uma caminhada para exercitar os músculos.

─ Tome cuidado. — recomendou Sergio.

─ E você, não corra na estrada. Boas férias! Divirtam-se!

Daniel atravessou a rua e passou em frente ao sobrado. A habitação precisava de reparos, pintura nova e limpeza no jardim. Uma mulher estava lavando as vidraças das janelas.

Voltando, ele entrou no jardim, subiu os degraus da varanda e bateu na porta. Não demorou muito para a mulher abrir, uma mulher robusta, de rosto redondo e avermelhado.

─ Bom dia! Meu nome é Daniel Junqueira. Moro do outro lado da rua, naquela casa branca. Eu gostaria de falar com o senhor Victor.

─ O patrão só chega à tarde.

─ Sou engenheiro civil, proprietário de uma empresa de reforma e construção. Queria conversar com ele sobre a reforma do sobrado. Posso entrar por um instante para deixar um bilhete?

A empregada olhou para a perna dele e por fim, deu-lhe passagem. Ele entrou e sentou-se numa cadeira, apoiando a muleta na mesa. Olhando ao redor, verificou que por dentro a casa já tinha sido pintada.

─ Não conheço o doutor Victor pessoalmente, mas outro dia nos encontramos no supermercado, porém não tive oportunidade para conversar com ele. A esposa dele está em casa?

─ Não, senhor.

─ Ela trabalha com o doutor Victor no hospital?

─ Isso não sei lhe dizer.

─ Não tem importância. - Daniel puxou a carteira do bolso e retirou um cartão de visitas.

Naquele instante uma voz de mulher soou no piso superior.

─ Frida, quem está aí?

A empregada foi até ao pé da escada e gritou para cima: ─ É um vizinho. Eu já vou subir senhora, fique na cama.

Frida voltou para junto de Daniel. ─ É a mãe do doutor Victor, ela é idosa e precisa de cuidados.

─ Deixarei meu cartão para o doutor Victor, caso ele precise de nossos serviços. Obrigado.

***

Quando Silvia chegou para almoçar, Daniel contou-lhe sobre a visita que havia feito aos novos vizinhos.

─ Você não pode ficar andando por aí com a perna desse jeito! É claro que você não foi lá só para entregar um cartão. Afinal, o que descobriu?

─ O homem se chama Victor Jacques, é médico, mora com a esposa e a mãe. E você, conseguiu alguma informação?

─ Ainda não. A mochila do rapaz desapareceu, mas não podemos ter certeza de que era a mesma que ele estava destruindo.

***

A noite estava quente, muito quente para uma noite de primavera. Não conseguindo dormir, Daniel acendeu a lâmpada do abajur e olhou para o relógio.

Eram quase duas horas da manhã. Silvia dormia tranquilamente.

Procurando não fazer ruído, ele levantou-se para ligar o aparelho de ar condicionado. Olhando pela janela, percebeu haver luz numa das janelas do sobrado e o vulto de alguém no terraço. Ele só notou a pessoa quando a silhueta escura se moveu.

Pegando um binóculo na gaveta da cômoda, examinou o terraço. Era uma mulher, vestindo o que parecia ser uma camisola. Ela estava recostada no parapeito, olhando aparentemente o céu estrelado. Apesar da pouca claridade emitida pelas lâmpadas da rua, Daniel percebeu que ela era jovem. A mulher moveu-se erguendo o busto, sacudiu os cabelos com as mãos e com um andar felino, entrou na casa. Logo após a luz foi apagada.

***

─ Consegui algumas informações sobre o médico. — disse Silvia, quando chegou para almoçar. ─ Eles são de Minas Gerais, Victor trabalhava num hospital, ele foi acusado de desviar material hospitalar, porém não havia provas suficientes para prendê-lo. Mesmo assim, o médico foi demitido e mudou-se para o Rio Grande do Sul, onde conseguiu novo emprego. É casado, a mulher dele se chama Lívia. Eles não têm filhos.

─ E a Lívia, onde trabalha?

─ Não tenho essa informação.

─ Já tem algum suspeito pela morte do rapaz?

─ Ainda estamos investigando.

Rosa serviu o almoço e a conversa seguiu outros rumos. Depois que a esposa retornou para o trabalho, Daniel ficou na sala, lendo. A campainha da porta soou e Rosa foi atender.

─ É o doutor Victor Jacques, ele quer conversar com o senhor. — anunciou ela.

─ Mande-o entrar.

Victor Jacques era um homem magro, aparentava ter uns cinquenta anos, pouco mais. Sorrindo apertou a mão de Daniel, que lhe indicou um assento.

─ Recebi o seu cartão. O senhor tem uma empreiteira…

─ Isso mesmo.

─ Pretendo fazer uma reforma na minha casa. Pintar o exterior, limpar o jardim e construir uma garagem ao lado da casa. Quando o senhor pode ir lá fazer o orçamento?

─ Agora mesmo se o senhor quiser.

─ Então vamos.

Daniel entrou no gabinete, pegou um bloco de notas, uma caneta e uma calculadora, e acompanhou o médico. Logo depois estavam no sobrado.

─ Mandei pintar o interior antes da mudança. Eu não tinha condições para fazer a reforma toda. Gastei minhas economias na compra da casa. Consegui emprego no Hospital São Vicente e agora vou consertar o que ainda falta. Bem, comecemos pelo porão.

Daniel hesitou. E se o homem fosse realmente um maníaco assassino? Se descesse para o porão, talvez nunca mais saísse de lá. Victor desceu primeiro e depois de uma breve hesitação, o seguiu. O porão media cerca de seis metros por oito. O piso estava com algumas irregularidades, nas paredes havia manchas de umidade. No centro do aposento estava uma mesa comprida com alguns aparelhos de laboratório e um computador. Havia ainda um armário encostado na parede, caixas de papelão, uma escada pequena e uma geladeira.

─ Quero que o senhor conserte o piso, coloque algum produto para calafetar e pinte as paredes.

─ Sim, faremos isso. Droga! Esqueci a fita métrica! Por acaso o senhor tem uma?

─ Acho que sim. Vou lá em cima buscar.

O médico subiu. Sozinho no porão, Daniel aproximou-se da mesa. Examinou uma caderneta que estava ao lado do computador. Nela estavam anotadas fórmulas químicas, registros técnicos de biologia e desenhos esquematizados de células. Ele não entendia nada daquilo, largou a caderneta e abriu uma gaveta da mesa. Dentro havia papéis com outros registros semelhantes. Fechou a gaveta e nesse instante sentiu uma mão em seu ombro. Com um sobressalto, voltou-se. Diante dele estava uma mulher idosa, de cabelos brancos, rosto vincado de rugas. Meio curvada, ela olhou para Daniel com curiosidade.

─ Quem é você e o que está fazendo aqui?

─ É um vizinho, mamãe. — respondeu Victor descendo a escada com uma trena na mão.─ Ele vai fazer a reforma da casa.

O médico entregou a fita métrica para Daniel e levou a mulher para cima. Logo depois retornou.

─ A minha mãe já não raciocina com clareza, mas ainda tem forças suficientes para subir e descer escadas.

Daniel preferiu não fazer comentários.

─ Pode me ajudar a medir? — pediu.

─ Certamente.

Ele anotou as medidas do porão e voltaram a subir.

Subiu lentamente por causa da perna engessada. O médico apagou a luz, trancou a porta e os dois saíram para o jardim. Victor disse querer uma garagem ao lado da casa e Daniel mediu o terreno. Completando suas anotações, falou: ─ Farei as contas e lhe darei o orçamento ainda está semana.

─ Pode ser sábado?

─ Sim, com certeza.

─ Então o senhor e sua esposa... O senhor é casado?

─ Sou.

─ Então, o senhor e sua esposa estão convidados para jantar conosco e nós poderemos discutir o assunto. O que acha?

─ Ótimo.

─ Então, está combinado.

─ Até logo!

***

Daniel teve que mandar fazer uma calça social com a perna direita um pouco mais larga para poder usar com a perna engessada.

─ Vamos logo! — pediu Silvia, pegando a bolsa.

─ Tenho que levar o orçamento! — respondeu Daniel e entrou no gabinete. Logo depois retornou. Carregando uma pasta de cartolina, seguiu a esposa.

─ Pra que a bolsa? Só vamos até o outro lado da rua!

─ Faz parte do vestuário. — respondeu Silvia. Daniel trancou a porta e os dois atravessaram a rua.

─ Olhando bem, essa casa tem um ar sinistro. — comentou Silvia.

─ Após limpar o jardim e fazer as reformas, certamente essa impressão desaparecerá.

Daniel bateu na porta e o próprio Victor abriu.

─ Sejam bem-vindos!

─ Esta é Silvia, minha esposa. — apresentou Daniel.

─ Muito prazer em conhecê-la.

Silvia sorriu, inclinando a cabeça.

─ Entrem e sentem-se, por favor. — pediu o médico. Os convidados sentaram-se num sofá e Victor serviu uma bebida.

─ Como está o pé?

─ Tenho consulta marcada com o ortopedista, segunda-feira. Espero que ele me tire esse suplício!

─ É claro que não vai tirar. — retrucou Silvia. ─ O médico vai apenas trocar, diminuir o tamanho.

─ Ótimo, assim aproveito para coçar o dedão.

─ Realmente, um braço ou perna engessada incomoda bastante, mas o gesso é necessário até a total recuperação. — disse Victor. — Ah! Eis aí minha esposa, Lívia!

A mulher surgiu descendo a escada lentamente. Aproximou-se sorridente. Usava vestido preto, decotado, e calçava sapatos de saltos altos, também pretos. Os cabelos negros, lisos, caiam sobre os ombros nus. Era uma mulher bonita. Os olhos pretos brilhavam com um olhar penetrante. Victor olhava para ela com certo orgulho. Sentaram-se.

─ Fico encantada em conhecer pessoas tão simpáticas. — disse ela num tom sussurrante. ─ Com vizinhos tão simpáticos, esse bairro é bem agradável de se morar.

─ É o que também achamos. — respondeu Silvia.

─ Ainda temos muita coisa para arrumar na casa. Precisamos comprar alguns móveis e objetos de decoração. Saímos de Minas Gerais praticamente sem nada. Nossa ideia era comprar casa nova e móveis novos.

─ Viemos para cá porque Lívia queria ficar mais perto da mãe. − disse Victor. ─ Esta casa é antiga, porem é bastante sólida e depois da reforma ficará como nova.

─ Exatamente. − concordou Daniel. ─ A arquitetura desse prédio é como uma joia rara.

Lívia ergueu-se, ajeitando o vestido.

─ Vamos passar para a sala de jantar.

O jantar foi servido e eles começaram a comer.

─ Como está sua mãe, doutor? — perguntou Silvia.

─ Já está dormindo. É uma pessoa idosa, janta cedo e logo se recolhe ao leito.

Lívia ajuntou: ─ Sua saúde física já não é a mesma, porém, a saúde mental está ótima!

─ Ela está sendo bem cuidada. — afirmou Victor.

─ Cada pessoa envelhece de um modo diferente. — argumentou Silvia. ─ E por falar em velhice, há poucos dias me deparei com um caso estranho. Um rapaz de vinte e cinco anos foi encontrado morto num terreno baldio. Ele tinha a aparência de um homem velho, foi como se tivesse perdido com a morte, toda a sua juventude!

─ O que aconteceu com ele? — perguntou o médico.

─ Não temos certeza. Não se tem notícia de que algo semelhante tenha acontecido antes. Não há uma explicação lógica.

─ A não ser nas histórias de vampiro. — comentou Daniel. Silvia olhou para ele, com ar reprovador.

─ Talvez eles existam realmente. − respondeu Lívia e Victor retrucou:

─ Isso é bobagem!

Apesar do desconforto de Silvia sobre aquele assunto, Daniel confessou:

─ Acredito em vampiros modernos. Creio que existam pessoas capazes de sugar o vigor de alguém com um simples olhar. Acho que eles carregam uma maldição. Meu avô acreditava neles, inclusive ele possuía um livro que contava a história de um verdadeiro vampiro. O autor era um monge italiano chamado Bernardo Udini.

Lívia ia fazer uma pergunta, mas o marido colocou uma mão sobre o braço dela.

─ Como está o assado?

─ Está ótimo. — respondeu Silvia.

Acabando o jantar, Victor convidou o casal para conversarem na sala de estar. Daniel entregou-lhe o orçamento da reforma da casa e o médico examinou os papéis.

─ Quando o senhor pode dar início aos trabalhos?

─ Assim que o senhor assinar o contrato. Em uma semana.

Victor pegou uma caneta do bolso do paletó e assinou.

─ Eu possuía uma coleção de livros raros em Uberlândia. − disse, devolvendo os documentos. ─ Fui obrigado a vendê-los para poder comprar esta propriedade e agora estou tentando refazer minha biblioteca. Bernardo Udini escreveu dois livros, um deles fazia parte da minha coleção, era sobre o tempo em que foi professor e o outro, ele escreveu quando ingressou numa ordem religiosa. Acho que era o que o seu avô possuía.

─ Exatamente.

─ Possivelmente já não existe mais!

─ Ao contrário, existe, sim, eu o tenho.

O semblante do médico iluminou-se. ─ Verdade? Não quer me vender?

─ Procurarei. Devo ter guardado em algum lugar.

─ Então pense no assunto. Ficarei muito grato.

****

Logo que voltaram para casa, Daniel foi direto para o gabinete. Postou-se diante da estante de livros. A maioria dos livros que possuía era sobre arquitetura, construção e paisagismo. Examinando os livros, encontrou o volume que procurava, pegou-o e sentou-se para ler. Era um livro de capa dura, antigo, com o título; O Mosteiro De Parma, escrito por Bernardo Udini, edição de 1940.

Daniel já tinha lido o livro algum tempo atrás, mas já nem se lembrava do que tratava. Conservava consigo apenas porque além de ser raro, Bernardo era um de seus antepassados. Abrindo a primeira página impressa, encontrou uma apresentação dos editores:

— Bernardo Navarro Udini, nasceu em França em 1800. Sua mãe era francesa e o pai italiano. Foi professor universitário e casou-se em 1845 com Marguerite Marcel, que morreu acidentalmente durante a revolução de 1848. Desolado, Bernardo deixou o filho de um ano para os avós maternos e partiu para a Itália, onde ingressou no mosteiro de Parma. Após se tornar frade, Bernardo escreveu dois livros, no primeiro conta sua vida como professor na universidade criada por Napoleão e na segunda obra, narra alguns episódios que aconteceram no mosteiro, onde viveu até falecer, em 1879. A presente edição é uma reedição do segundo volume, com a tradução de Lourival Torres. São Paulo-1940.

Daniel interrompeu a leitura quando Silvia entrou no aposento.

─ Não vai dormir?

─ Estou sem sono. Vou ler um pouco, se não se importa.

─ Não demore.

Silvia beijou o marido e se retirou. Daniel ajeitou-se no assento e continuou a leitura. No livro, Bernardo narrava suas memórias, uma série de acontecimentos ocorridos no convento enquanto ali viveu. Havia a história de um homem que trabalhou na Casa Prisional como funcionário executor da pena de morte. Assombrado pelos espíritos de suas vítimas, procurou refúgio no convento e ali morreu dois anos depois, vítima de terríveis pesadelos. Outro episódio contava o caso ocorrido com o cozinheiro que, num gesto tresloucado, matou o cachorro do abade que vivia incomodando na cozinha, e o serviu no almoço, dizendo ser carne de carneiro. Quando descobriram a verdade, o expulsaram da Ordem. Havia outras histórias e a última, era sobre o caso do sineiro, um rapaz de vinte e cinco anos chamado Luigi Bonatto. Bernardo conta:

“ O inverno de 1875 foi muito rigoroso. O abade Bertúcio, de oitenta e um anos, pereceu ao contrair uma doença nos pulmões e eu fui indicado para ocupar o cargo de Superior da nossa ordem. No verão, tive que tomar decisões difíceis. Certa manhã, eu estava em minha cela, quando o jovem Alonzo bateu na porta com expressão assustada. Aflito, disse-me que o irmão Eusébio havia caído do campanário. O rapaz já tinha sido socorrido e levado para a enfermaria. Corri para lá e quando cheguei, o irmão Diodoro interceptou-me.

─ Ele morreu, padre. Não há mais nada que possamos fazer, porem, antes de soltar o último suspiro, Eusébio acusou o jovem Luigi. Disse que o irmão Luigi havia roubado um cálice de ouro do ofertório com a intensão de fugir com uma mulher. Eles mantinham encontros no campanário. Eusébio tentou convencer o rapaz desistir da ideia. Os dois discutiram e a mulher acabou empurrando Eusébio da torre.

─ Onde eles estão? Fugiram?

─ Mandei retê-los e trazê-los à sua presença.

Pouco depois trouxeram o sineiro e a mulher. Jovem, porém, aparentando ter mais idade que Luigi, ela se mostrou agressiva e desbocada. Luigi chorou de arrependimento, disse que foi seduzido e perdeu a razão. Madeleine, esse era o nome dela, prometeu-lhe uma vida nova fora do convento, mas eles precisavam de dinheiro e por isso ela o convenceu a roubar o cálice. Madeleine subia numa árvore para entrar no convento, passava por cima do muro, chegava ao telhado e dali entrava na torre, onde ficava escondida a espera de Luigi.

Mandei que trancassem ambos na cave, até que eu decidisse o que fazer, enquanto tratávamos do sepultamento de Eusébio. No dia seguinte, estávamos todos tristes e abatidos com a tragédia. Resolvi deixar Luigi e Madeleine isolados por mais algum tempo, a pão e água, dando-lhes tempo para se redimirem. Eles ficaram presos num aposento pequeno junto à adega. Calculei que alguns dias ali, dariam uma lição a Luigi e purificaria o caráter da mulher. No terceiro dia o rapaz implorou para sair, Madeleine, no entanto, não emitiu nenhuma palavra. No quinto dia houve silencio na cave e no dia seguinte mandei que os tirassem de lá.

Para meu espanto e de meus companheiros, encontramos Luigi morto com um ferimento no pescoço. Tinha sangrado até morrer. Interrogada, a mulher balbuciou algumas palavras, afirmando que foram os ratos que causaram o ferimento em Luigi. Não acreditei nas afirmações dela, sua roupa estava manchada de sangue. Seu estado físico era lastimável. Mandei que a levassem para a casa de banho para banhar-se e que lhe dessem roupas limpas, enquanto as suas fossem lavadas e secas. Algum tempo depois, peguei o vestido que haviam secado e me dirigi ao banheiro. O noviço que guarnecia a porta, abriu e entrei.

Madeleine estava deitada no chão, dormindo ao lado da banheira. A despertei e mandei que se vestisse. Saí imediatamente e esperei do lado de fora do aposento. Alguns minutos depois bati na porta perguntando se ela já estava pronta e não obtendo resposta, tornei a entrar. A mulher tinha se vestido e retornado a dormir. A sacudi pelos ombros e fiz com que se levantasse e saísse. Disse-lhe que a levaria para a cidade para ser julgada pelas autoridades. Madeleine obedeceu, calada, absorta.

─ Não acha melhor eu ir junto? − perguntou-me o irmão Constâncio.

─ Acredito que não seja necessário. As autoridades saberão o que fazer.

O mosteiro fica distante da cidade cerca de uma hora de caminhada. Descemos pela trilha da colina e minutos depois chegamos à estrada que atravessa uma floresta. Seguindo calada ao meu lado, Madeleine parou de repente.

─ Não pare, vamos! − ordenei. A mulher me encarou com uma expressão de aflição no rosto pálido.

─ Padre, se me levar para a cidade os juízes vão me condenar à morte. Serei enforcada!

─ Você deve ser julgada pelo que fez. Diga a verdade e peça clemência aos juízes.

Ela mudou de atitude, desnudou os ombros, me segurou pelos braços aproximando seu rosto do meu. Senti o seu hálito inebriante, vi seus olhos brilharem como duas tochas. Fiquei paralisado por um momento. As árvores, as sombras, começaram a girar ao meu redor. A voz de Madeleine sussurrou ao meu ouvido.

─ Padre, deixe-me ir. Serei sua se me quiser!

Agucei o meu espírito, a minha vontade, reuni minhas forças e vencendo o torpor, a embriagues dos sentidos, afastei-me dela.

─ Vá! Suma da minha frente e sejas condenada a viver com os tormentos de teus pecados, e que só consigas a salvação se te arrependeres! Santa Michael Archangele, defende-nos in praelio contra nequitiam et insidias diaboli e sto praesidium!

Madeleine emitiu um som, não sei se um lamento ou gargalhada, saiu da estrada e embrenhou-se na mata. Era uma pessoa infeliz, condenada a viver em tormento. Daria um pouco de meu sangue, se isso pudesse salvá-la. Nunca mais tivemos notícias daquela mulher. ”

Daniel acabou de ler e ficou meditando. Sentia que os acontecimentos ocorridos naquelas ultimas semanas tinha ligação com aquela história. O doutor Victor Jacques estava interessado em adquirir aquele livro. Talvez o seu motivo não fosse apenas por ser uma obra antiga, de valor histórico.

***

Quando Daniel retornou do médico, sentou-se no sofá ainda com a perna engessada. Agora o gesso envolvia apenas o pé. A muleta foi trocada por uma bengala. Rosa surgiu pouco depois com um papel na mão.

─ O doutor Victor esteve aqui e deixou esse cheque para o senhor. Disse que é um adiantamento pelo pagamento da reforma.

─ Ótimo! Ele falou mais alguma coisa?

─ Não, senhor.

Daniel guardou o cheque e telefonou para o escritório pedindo para Ricardo mandar um funcionário pegar o orçamento e a ordem de serviço.

***

Daniel saiu do banho, vestiu um calção e foi para a cama.

─ O que você acha do interesse do doutor Victor, de querer comprar o livro de Bernardo Udini? − perguntou ele, para a esposa.

─ Não sei. Ele coleciona livros raros, não é?

─ Sim, mas sinto que existe algo mais.

─ O quê, por exemplo?

─ Não sei. Lembra-se da história do sineiro, que há no livro?

─ Não.

─ Pois o sineiro faleceu com um ferimento no pescoço. Aquele rapaz, que apareceu morto num beco, também morreu com um ferimento no pescoço. Ele tinha uma mochila amarela com alça vermelha, igual àquela que Victor estava destruindo. E Victor deseja comprar o livro. Há uma ligação, percebe?

─ Onde está o livro?

─ Na estante, do gabinete.

─ Darei uma olhada.

Silvia saiu do quarto e logo depois retornou.

─ Não encontrei o livro. — disse ela, voltando a deitar-se.

─ Mas tem que estar lá!

─ Olhei todos os títulos e não o encontrei. Talvez você o tenha guardado em outro lugar…

Daniel saiu da cama, calçou as chinelas e desceu para o gabinete. Procurou o livro onde o havia deixado e descobriu que não estava ali. Dirigiu-se para a cozinha, onde Rosa estava acabando de lavar a louça do jantar.

─ Rosa, me diga uma coisa, quando o doutor Victor esteve aqui, você o atendeu na sala?

─ Sim, senhor.

─ Ele ficou sozinho por algum momento?

─ Bem, sim. Ele se sentiu mal de repente e sentou-se. Pediu um copo de água e eu vim buscar!

─ Você veio buscar a água e ele ficou lá, sentado?

─ O que aconteceu? Sumiu alguma coisa, doutor? — perguntou a empregada, assustada.

─ Um livro de capa de couro marrom, estava na estante do gabinete.

─ Ah! Esse livro? Estava em cima da escrivaninha e eu o coloquei na gaveta. Vou buscá-lo para o senhor.

─ Não é necessário eu mesmo pego. Obrigado Rosa.

Daniel pegou o livro e subiu para o quarto.

─ Achou? — perguntou Silvia.

─ Sim, estava em cima da mesa e Rosa o guardou na gaveta. Mas tenho certeza de que eu o coloquei na estante. Quando Victor esteve aqui, trazendo o cheque, ficou por um momento sozinho.

─ E você acha que ele mexeu no livro?

─ Não nesse momento, talvez tenha destrancado a janela da sala para poder entrar mais tarde. Não levou o livro por que eu desconfiaria que seria ele o ladrão.

─ E o que você supõe que ele fez?

─ Talvez tenha fotografado somente aquilo que lhe interessava. Rosa estava ocupada em alguma tarefa aqui em cima e não viu nem ouviu nada.

─ Afinal de contas o que tem esse livro? — perguntou Silvia. Daniel sentou-se na cama ao lado da esposa e entregou-lhe o volume.

─ São oito historias, oito casos que se passam no mosteiro de Parma, na Itália. Não sei o que possa interessar a Victor. Leia e depois me diga se descobriu algo.

Silvia começou a ler, Daniel deitou-se e acabou pegando no sono.

***

Logo que acordou, Daniel foi até a janela e olhou para o sobrado. A casa estava toda fechada. Eram sete horas e trinta e dois minutos da manhã. Silvia já tinha saído para trabalhar. No almoço ela comentou que não havia encontrado nada de estranho nos textos de Bernardo Udini. Se havia alguma coisa que interessava a Victor, não descobriu. Mas se fosse verdade que ele havia invadido a casa, isso era grave, porém, não havia provas de arrombamento e nenhum objeto havia sumido. De qualquer maneira, Daniel mandou colocar grades nas janelas e portas.

***

O dia iniciou com chuva. Daniel não saiu para caminhar e não se animou a ir à empresa. Durante o dia ele vigiou o sobrado, viu a empregada chegar pela manhã e sair à tarde. Victor saiu às nove horas da manhã e chegou por volta das quatro horas da tarde. Lívia não apareceu em nenhum momento.

***

Daniel estava assistindo o noticiário das dezenove horas na televisão, quando Silvia chegou. Ela largou um molho de chaves sobre a mesa e despiu a jaqueta.

─ Tenho que participar de uma reunião. Me avisaram em cima da hora. Deixarei o carro na garagem.

─ E você vai, como?

─ Vou com o Saul e a Carla, eles estão esperando lá fora. Só vim pegar um casaco.

Daniel ergueu-se, foi até a porta e acenou para as duas pessoas que estavam num carro da polícia, estacionado em frente da casa.

─ Não querem entrar?

─ Estamos atrasados. — respondeu Saul. Silvia vestiu um casaco e despediu-se de Daniel.

─ A reunião termina às dez e meia.

Quando eles partiram, Daniel voltou a assistir televisão. Minutos depois soou a campainha da porta. Rosa surgiu da cozinha.

─ Deixe que eu atendo. — disse Daniel. Ao abrir a porta deparou-se com Lívia, transtornada.

─ Senhor Daniel, por favor, me ajude. Victor caiu da escada do porão. Ele não responde e eu não consigo abrir a porta.

─ Já chamou o resgate?

─ Sim, mas eles podem demorar. Não sei o que aconteceu com Victor, ele gritou pedindo ajuda e depois se calou.

Daniel resolveu acompanhar a mulher até o sobrado. Entrando na casa, Lívia o levou até a entrada do porão. Daniel agarrou a maçaneta e torceu. A porta foi aberta sem nenhuma dificuldade. De repente ele sentiu uma fisgada no pescoço. Voltou-se e viu Lívia com um aparelho de injeção na mão. A droga fez efeito em seguida.

***

Quando Silvia chegou, passavam das dez horas da noite. Rosa estava no quartinho dela, assistindo televisão.

─ Onde Daniel foi?

─ Dona Silvia, ele saiu para ir à casa do doutor Victor!

─ O que ele foi fazer lá?

─ A mulher do médico pediu ajuda, disse que o marido sofreu um acidente.

─ Que horas foi isso?

─ Pouco antes das vinte.

Silvia pegou a arma da bolsa, verificou a munição e enfiou no bolso do casaco.

─ Vou ver o que aconteceu. — disse ela e saiu. Atravessou a rua e bateu na porta do sobrado. Não vendo nenhuma luz na moradia, deu a volta e descobriu que o carro do médico estava nos fundos do quintal. Voltou para casa e telefonou para alguns hospitais e constatou que nenhum deles havia atendido alguém chamado Victor Jacques. Em seguida, ela telefonou para Saul, explicando o que havia ocorrido. O policial chegou quinze minutos depois. Silvia o esperava na calçada. Saul saiu do carro, perguntando:

─ Onde fica a casa?

─ É aquela.

Saul pegou uma lanterna. ─ Vamos dar uma olhada.

Enquanto se dirigiam para o sobrado, Silvia disse:

─ A mãe do médico é uma pessoa idosa, não é possível que eles a tenham deixado sozinha!

Saul bateu na porta da frente e fez o mesmo na entrada dos fundos. Como ninguém apareceu, o policial tirou uma peça de metal do bolso, enfiou na fechadura e abriu a porta. Entrando, atravessou a cozinha.

─ Vou dar uma olhada lá em cima. — disse Silvia, e subiu as escadas. No andar superior havia dois quartos, uma sala e um aposento com uma estante repleta de livros e um computador. Um dos quartos tinha uma cama de solteiro e um armário. Não havia ninguém ali. No outro quarto, também sem ninguém, havia uma cama de casal, roupeiro e uma cômoda com espelho. Nas gavetas havia objetos pessoais de Lívia e Victor. Numa delas Silvia encontrou seringas descartáveis, ainda em seus invólucros e alguns destes, estavam vazios.

Silvia voltou a descer. Encontrou Saul no porão, examinando um computador.

─ Veja isso. — disse ele, apontando para o monitor. Na tela aparecia um texto que dizia:

“Nenhuma experiência até agora deu resultado positivo. Tenho pensado em pedir auxílio a outros cientistas, mas sei que ela não consentiria em expor o seu problema a quem não confia. Sei que fugirá para qualquer lugar onde não possa ser encontrada e continuará matando pessoas para tirar-lhes o sangue. Mas o sangue de outras pessoas até agora teve apenas um efeito efêmero. Lívia tem acessos de fúria, principalmente quando suas expectativas são frustradas. Tenho receio de que ela não confie mais em mim”.

─ Lívia sofre de algum mal que a leva a matar pessoas para tirar-lhes o sangue!

─ Como um vampiro suga o sangue de suas vítimas para sobreviver. Temos que encontrá-los! Vamos sair daqui.

***

Quando Daniel acordou, descobriu que estava amarrado com uma corda a um pilar de tijolos que sustentava o teto baixo. Uma lâmpada de luz mortiça iluminava o lugar. Era um pequeno depósito, onde havia alguns tijolos, areia e ferramentas de pedreiro. As paredes eram de tijolos sem revestimento, com teias de aranha nos cantos. Rente ao teto tinha um duto para entrada de ar. Havia uma única entrada, fechada por uma porta de madeira sem pintura. A chave se encontrava na fechadura. Victor estava caído no chão, próximo da entrada. Daniel não conseguiu perceber se ele estava morto ou desmaiado.

Do lado oposto estava Lívia, deitada num colchonete. Aparentemente dormia. A porta estava trancada por dentro e só poderia ter sido feito por ela e se dormia tranquila, planejara aquilo por alguma razão. A mulher acordou minutos depois, olhou as horas no relógio de pulso e se espreguiçou, soltando o ar dos pulmões. Usava um vestido floreado com alças nos ombros. Era uma mulher atraente. Olhou para Daniel e sorriu.

─ Olá, bom dia! Como se sente?

Daniel procurou manter a calma.

─ Com dor na cabeça e a perna me incomoda, além dessa corda que está machucando meus pulsos!

Ela se sentou ao lado dele, no chão.

─ Que pena! — sussurrou.

─ Pode me soltar dessas cordas, por favor?

─ Não, não posso, não quero.

─ O que você planeja fazer? O que aconteceu com Victor?

Ela olhou para o corpo estirado no chão.

─ Pobre Victor! Era um homem bom. Ele me amava e fez de tudo para me ajudar. Porém, no momento mais importante, quando estou próximo de conseguir a minha libertação, ele decidiu atrapalhar meus planos.

─ Que planos?

─ Você é uma pessoa importante para mim, Daniel. O livro de Bernardo me revelou isso.

─ Revelou o quê?

─ Você leu a história do sineiro?

─ Sim, o sineiro chamado Luigi Bonatto.

Lívia murmurou, pensativa: ─ Luigi, eu gostava dele, foi meu primeiro namorado.

Daniel olhou para a mulher, confuso.

─ Você gostava dele?

Lívia riu. ─ Sou Madeleine, a mulher que o frade Bernardo amaldiçoou.

─ Como assim? Não entendo!

─ Aquele monge desprezível me lançou uma maldição, me deu o tormento de ser uma velha de dia e jovem à noite. Isso mesmo. Logo que amanhece, meus cabelos ficam brancos, sem brilho, minha pele se torna áspera e cheia de rugas, com manchas horríveis. Fico velha.

Daniel teve a impressão de que a mulher iria chorar, no entanto, ela suspirou e o encarou bem de perto, mirando nos olhos com a boca entreaberta. Daniel ficou impressionado com os dentes dela, os caninos eram maiores do que o normal.

─ Mas, há uma coisa que pode acabar com essa maldição. − disse Lívia e afastou-se, se sentando no colchonete. Olhou para o relógio no pulso. ─ Faltam quarenta minutos para o sol nascer. Eu sabia que deveria haver alguma coisa para quebrar o encantamento. Seria o frade me conceder perdão, mas demorei muito tempo para procurá-lo e quando resolvi fazê-lo, ele já tinha falecido. Depois, fiquei sabendo que ele tinha escrito dois livros e calculei que deveria haver alguma coisa nos textos que pudesse me dar uma ideia de como quebrar a maldição. Consegui ler apenas o primeiro livro e o segundo, só agora depois de mais de cem anos finalmente o encontrei. Imagine a vida difícil que levei todos esses anos? Para sobreviver, eu só podia trabalhar à noite e ao amanhecer, precisava me esconder em algum lugar.

Quando conheci Victor, contei a ele o que acontecia comigo e ele presenciou com seus próprios olhos. Victor resolveu me ajudar, fez uma bateria de exames e até se prejudicou no emprego. Tomei vários tipos de remédios, de poções, nada adiantou. Calculei que certo tipo de sangue pudesse reverter o processo de envelhecimento, mas o sangue humano apenas me mantém viva. Então, quando você disse que possuía o livro de Bernardo, pedi para Victor comprá-lo, ou roubá-lo de você. Mas para evitar suspeitas, apenas fotografou as páginas que falavam do sineiro. As palavras do frade foram; daria um pouco de meu sangue se isso pudesse salvá-la. − Lívia riu, satisfeita. ─ É isso! O sangue de Bernardo Udini. Ele morreu há muitos anos, mas teve um filho antes de se tornar frade.

Ela projetou o corpo para frente e encarou Daniel.

─ Era seu bisavô, Daniel, você é descendente de Bernardo Udini. Em suas veias corre o sangue de Bernardo.

A mulher riu, um riso histérico. Voltou a se sentar, examinando o relógio.

─ Se é um pouco de meu sangue que você quer, não há problema, nós vamos a um ambulatório e...

─ Não, não é assim. Além do teu sangue, preciso da tua energia, da essência que te anima. Fique calado, falta pouco agora. Quando amanhecer, morderei o teu pescoço e beberei teu sangue diretamente da artéria. Não vai demorar muito. Em instantes terei o teu sangue e o encanto se quebrará. Serei eternamente jovem e você, bem, você…

Súbito, soaram fortes batidas na porta, o reboco se desprendeu e as dobradiças se soltaram. A porta caiu com um impacto violento. Saul surgiu no meio da poeira de arma em punho.

─ Não! — gritou Lívia ─ Agora não!

Ela precipitou-se para o colchonete e pegou um revólver.

─ Largue a arma! — ordenou Saul. Silvia passou por ele e disparou a sua pistola numa fração de segundos antes que o dedo de Lívia obedecesse ao comando do cérebro. Ela caiu para trás, apertando o gatilho. A bala foi alojar-se no teto. Fulminada com um tiro no peito, Lívia permaneceu caída, imóvel, com uma expressão de espanto no rosto lívido. Silvia soltou o marido das cordas.

─ Você está bem?

─ Sim. Ainda bem que vocês chegaram na hora certa. Ela pretendia me matar. Como descobriram que eu estava aqui?

─ Encontrei um risco da tua bota de gesso no piso do porão. Ainda bem que resolvi investigar o porão pela segunda vez e descobri a porta deste lugar atrás do armário. O que Lívia queria, afinal?

─ Depois eu conto. Vamos sair logo daqui.

Saul Exclamou ─ Vejam aquilo!

A mulher havia se transformado numa pessoa muito velha, magra, de cabelos brancos e pele seca, enrugada.

─ A idosa que vi no porão. — murmurou Daniel. — Era Lívia! Então, existia uma maldição, mesmo!

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 20/11/2024
Código do texto: T8201109
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.