CEMITÉRIO MALDITO - fim

— Pare de me encarar desse jeito sua velha ridícula.

Ela tirou o calçado e atirou contra o espelho que se partiu em pedaços. Foi buscar a vassoura pra varrer os cacos e enfiar no lixo. Dona Antonia com 77 anos, depois de uma vida de solteirona e aposentada como auxiliar de enfermagem, havia se mudado para o lugar recentemente. O aluguel da pequena casa era barato, a rua sossegada e com poucos moradores.

— A solidão foi a única que sempre me foi fiel, ela nunca me abandonou.

Foi procurar na internet receitas caseiras de rejuvenescimento e logo desistiu.

Vídeos receitavam água de arroz, café, azeite de oliva, chá verde, carvão ativado, de que nada adiantam. É inútil lutar contra o tempo.

Vestiu o casaco e saiu pra rua passear e conhecer os arredores. Caminhou algum tempo e avistou o parquinho infantil dentro do cemitério das crianças. Entrou no lugar silencioso e macabro.

— Pobres anjos inocentes, devem ter sido vítimas de algum surto de doença contagiosa. Nenhum nome, nenhuma flor, esquecidos e abandonados. Observou a grande estátua do sinistro anjo com a trombeta na mão, desbotado e tomado por musgos. Ali morava a melancolia e a tristeza de centenas de vidas inocentes perdidas. Ao deixar o cemitério escutou o som do toque duma trombeta.

Foi na capela, pagou o velho padre para rezar uma missa em memória das crianças mortas. No final da tarde apenas ela e o reverendo tomaram parte da missa memorial.

Em casa fez uma sopa de verduras para comer, depois sentou-se na poltrona assistir televisão. O repórter fazia um alerta contra golpes aplicados nos velhos, depois denúncias de abandono, abusos, violência e maus tratos de idosos.

— Depois de velhos todos viram santos e coitadinhos. Como essas pessoas trataram seus filhos no passado ? Deve existir algum motivo, estão recebendo de volta segundo seus atos praticados.

Apagou as luzes e foi dormir. O sonho era bonito. Ela era ainda jovem e caminhava descalça pela praia de areia branca, ao longe revoava uma gaivota de alvas plumas. Uma onda do mar desmorronou o belo castelo de areia que havia ali perto.

O antigo relógio na parede marcava meia-noite e meia. Acordou com batidas na porta, levantou-se e foi abrir.

Duas meninas sorriam para ela.

— Tonha viemos buscar voce para brincar junto com os outros no parquinho.

— Esperem, vou calçar os sapatos.

No quarto ela viu seu corpo imóvel estendido na cama, percebeu que havia morrido. É a natureza, tudo que está vivo morre.

Foram caminhando de mãos dadas rumo ao cemitério, onde os espíritos das crianças brincavam nos balanços e gangorras, escorregadores, e cantando a melodia infantil. ♫ Brilha, brilha estrelinha ♫

Como ela não tinha nenhum familiar nem parentes, foi sepultada como anônima no mesmo cemitério assombrado, numa cova simples coberta com terra e pedras, igual as demais.

No vilarejo continua viva a lenda do cemitério maldito. Quando alguém escuta toques da trombeta do anjo, é sinal que a morte da pessoa está próxima.

FIM

...............................................................................................

NACHTIGALL
Enviado por NACHTIGALL em 17/11/2024
Reeditado em 17/11/2024
Código do texto: T8198616
Classificação de conteúdo: seguro