CAMPO DOS LEÕES FAMINTOS - CLTS 29

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CAMPO DOS LEÕES FAMINTOS

Olisomar Pires

1. DESESPERO

O dia mal deu notícia de vida e tudo já estava queimando a ponto do suor expulso da testa não encostar no chão.

Nunca foi fácil, mas a ausência de água piora muito qualquer situação. Sob o sol escaldante, não se vêem pessoas caminhando nas ruas, o que havia, por algum tempo, eram vultos tremeluzentes à distância, indecisos, lentos e desmotivados, andando apenas por dever inconsciente. Cada passo um custo enorme para todo o corpo. As roupas grudavam à pele, não havia vento, sequer uma brisa e se houvesse ainda seria mais terrível. As coisas pareciam derreter ao toque, até a alma mais fiel demorava em suplicar aos céus um pouco de chuva. Ela não veio antes e possivelmente não virá, de que adianta rezar? O diabo venceu.

Ainda que mal abrigados da brasa celeste, Carl Willend e sua esposa Amie estavam calados. Da varanda da sede da fazenda, eles olhavam para o que era a plantação em que trabalharam com afinco. Amie se lembrava de que a primeira coisa que fazia depois do café servido na caneca de louça branca ao marido era espiar a terra coberta por robustos e dourados ramos de trigo a perder de vista. Carl, ainda com a caneca na mão direita, a alcançava pouco tempo depois e ficavam abraçados por alguns minutos pensando na gestação da terra e nos frutos que viriam. Agora, o que passa pela cabeça dos dois é algo muito diferente.

Carl e Amie eram pais de um garotinho muito esperto para a idade: o pequeno Jonathan. O macio cabelo que jamais fora cortado desde o nascimento, por desejo de Amie e devoção religiosa, era abundante, enfeitando de ouro o rosto do menino que aprendera caminhar e falar há pouco e embora sofresse com o calor era possível encontrá-lo de um lado a outro, sempre atento e curioso, sorriso no rosto e esperança infinita.

Enquanto o leite materno existia, a criança cresceu razoavelmente bem, mas o corpo de Amie não resistiu ao clima, à falta de água, à escassez de comida. Jonathan ainda era alegre e brincalhão, mas se via uma magreza se esgueirando em seus pequenos quadris, as maçãzinhas do rosto estavam salientes, os olhos vívidos residiam mais ao fundo, escondidos talvez de tudo. Isso era o que mais agredia Carl e e Amie, o definhamento do filho ali tão descarado, uma zombaria sem limites do destino. Eles não suportavam mais tanta dor. Simplesmente não havia dinheiro, não havia comida, não havia recurso.

Carl foi o primeiro a se levantar. Estendeu a mão para Amie e a ajudou erguer-se. Não havia mais o que conversar. As palavras apenas machucariam ainda mais e mais dolorosamente a cada sílaba. Olharam-se fixamente por alguns segundos, mãos dadas, almas acorrentadas. Carl havia deixado escapar duas lágrimas, talvez as últimas de suas reservas. Amie o abraçou ternamente e saiu para encontrar o filho que brincava no quarto grande da casa. Carl firmou as mãos na grade de madeira à sua frente. Por gerações sua família resistiu naquele lugar, ele próprio crescera ali. De repente, escutou o som de trovão muito próximo de si, embora soubesse que não era um anúncio de chuva. Virou-se e viu Amie no batente da porta com a espingarda de dois canos nas mãos e o rosto no inferno. Ele tentou dizer algo enquanto sua esposa levantava a arma em sua direção. "Eu te amo", ele teria dito se a bala não tivesse sido tão rápida. O corpo foi arremessado como um nada e desabou após a proteção da varanda.

Amie procurou a cadeira onde estava minutos antes, recarregou a espingarda com dois cartuchos que trazia no bolso do vestido. As mãos magras, quase sem forças, tiveram dificuldade na função, o que a desesperou um pouco e quando, enfim, realizou a tarefa, sentou-se aliviada.

Ela não entendia o motivo de tanto sofrimento. Há meses não ouvia notícias dos vizinhos, da última vez que arriscaram ir à cidade, por medo da violência, encontraram poucas pessoas, mais mortas que vivas. Será que ainda alguém vivia nesse mundo de fogo e fome? Amie ajeitou a espingarda entre as pernas, descalçou uma das sandálias, como havia ensaiado junto a Carl algumas vezes, ele não teria coragem de fazer o que era preciso, encaixou o cano da arma sob o queixo e colocou o dedão do pé desnudo sobre os gatilhos já prontos para o desenlace, porém, antes do final, ela ouviu o conhecido choro de sua criança, Jonathan, vindo da casa. "Não é possível", rapidamente se levantou e correu para a origem do som. Às suas costas a terra queimada era a única testemunha, todos os animais já haviam sido comidos. Todos.

Um breve tempo depois, Amie retornou ao seu lugar de cadafalso, não havia choro algum, não teria como existir voz nenhuma de Jonathan neste mundo, não mais neste mundo.

Ela se preparou novamente como antes, espingarda a prumo, levantou os olhos e, para seu espanto, pareceu ter visto uma nuvem imensa ao longe e se aproximando rapidamente trazendo consigo uma sombra que há muito não se via sobre os campos. Isso apenas confirmou a necessidade do próximo feito, ela não poderia aceitar a consequência dos seus atos, na verdade, ela odiou até mesmo a mínima esperança que sentiu ao ver a nuvem, esperança que durou apenas o segundo necessário para lembrar do filho e marido. Se ainda houvesse pássaros por perto, teriam voado assustados com o terrível grito seguido pelo estrondo potente vindos da varanda da sede da fazenda.

2. SACRIFÍCIO

A tonalidade luminosa na unidade residencial era calma, refrescante e deixava o ambiente em meia penumbra, muito convidativa para um descanso. E era justamente isso que agora amedrontava a moradora. Nos canais de comunicação cerebral, as autoridades convocavam os retardatários a assumirem seus lugares na última nave de resgate para longe do planeta.

- Estamos atrasados, Yndir - alertou Xauon enquanto vistoriava o lugar certificando-se de retê-lo na memória.

- Eu não vou, Xauon a e você já sabe disso - ela respondeu sem ao menos se virar. Continuou admirando o horizonte e o céu cada dia mais escuro.

Xauon não insistiu, não havia necessidade. A racionalidade das discussões não permitiria nova argumentação. Yndir era sua companheira há muitas revoluções astrais, trabalhavam em conjunto para a solução dos diversos problemas da comunidade.

- Adeus, Yndir.

- Adeus, Xauon.

Desde que se iniciou a mutação do planeta natal, Yndir se empenhou muito para que a solução encontrada pelas autoridades superiores na intenção de salvar a raça estelar não fosse adiante. Ela simplesmente não poderia aceitar que a população de outro mundo fosse inteiramente dizimada para que sua raça sobrevivesse.

"Eles são selvagens, bárbaros e estúpidos", discursava o líder da operação, "Nós temos milhões de anos evolutivos, eles estão vivos há somente nove mil anos, são menos que um sopro". A se considerar apenas o aspecto técnico, não havia razão para ser contra o genocídio do povo conhecido como humano que habitava o planeta chamado Terra. "Eles são cruéis consigo mesmos, eles nos comeriam vivos, se pudessem, não há possibilidade de coexistência".

E foi tomada a decisão há três décadas. Durante esse tempo, o campo de proteção da Terra contra os raios ultravioletas de sua estrela principal foi atacado continuamente, o clima foi manipulado discretamente ano após ano, além de outras medidas magnéticas, enquanto os especialistas humanos procuravam explicações absurdas para os fenômenos que viam acontecer diante seus olhos. Até que se tornou irreversível. Até que, se não todos, a maioria completa e total, foram aniquilados, seja pelo sofrimento, seja pelo calor, seja pela fome, seja pelo medo.

Enquanto isso, nós aguardamos e víamos nosso mundo percorrer o caminho inverso. Aqui, a temperatura foi diminuindo continuamente sempre e sempre. Nossa raça depende da alta temperatura para viver, nossa fonte de alimentação vem dos raios de nossa estrela e ela está se apagando, aliás, o planeta está se distanciando dela. O frio chega como um animal em sua caça e nós somos a presa. Em algumas semanas, viveremos sob uma condição inaceitável para nossos organismos. Seremos transformados em pedra, se não morrermos antes.

Yndir desceu para o plano ao nível do solo, queria percorrer as ruas conhecidas, agora quase vazias. Já estava difícil se deslocar com a facilidade de antes quando poderia levitar tranquilamente de um ponto a outro. Os mais jovens conseguiam até mesmo alcançar alturas razoáveis numa espécie de vôo de iniciantes. Nessa época, seus corpos eram mais translúcidos, flutuavam sem dificuldade. Porém, com a temperatura em queda, solidificavam-se aos poucos.

Uma vez fora da edificação mobiliária, Yndir ainda conseguiu assistir a última nave em vôo lento bem adiante como se fosse uma ultima oportunidade de se despedir do local de nascimento. Era enorme e assustadora, sua sombra se estendia por uma área imensa. Quase cem mil conterrâneos estavam naquela nave e se juntariam aos mais de três milhões que haviam partido anteriormente. Eles colonizariam a Terra, construiriam máquinas e prédios adaptados e adequados, durante algum tempo ainda teriam que usar proteções corporais até que a temperatura terráquea elevasse o suficiente, isso ocorreria em mais uma década, pouco mais, pouco menos. E então conseguiriam fazer brotar descendentes de seus corpos que seriam levados pelas autoridades para crescerem em unidades hospitalares até conseguirem se manter por si mesmos. Um sonho de eternidade, mas à custa de bilhões de vidas humanas, Yndir se lembrou.

De acordo com as previsões científicas, o planeta de Yndir teria algumas semanas de sustentação de vida, mas ela não queria esperar. Estava sem se alimentar nas capsulas de calor havia alguns dias. Já não sentia tão bem seus membros. Ela precisava se apressar para encontrar o local onde muitos com o mesmo pensamento dela se reuniram para esperar o fim.

Após um par de horas de difícil locomoção, Yndir sentou-se ou deixou-se acomodar junto a outros de sua origem. Ninguém falava ou pensava nada, apenas contemplavam o céu. Muitos já estavam mortos, porém, graças à composição de seus corpos não se deterioravam e ficariam assim por séculos, se não fossem petrificados pelo frio.

Yndir escreveu numa placa que pendurou em si os seguintes dizeres: " Não somos melhores que os terráqueos e o genocídio que praticamos comprova isso. Se algum humano sobreviver e, um dia, encontrar meus restos, peço perdão pelo mal que fizemos. "

Pouco abaixo dessa linhas, Yndir desenhou o mapa de localização da Terra no sistema galáctico. Sentia-se estranhamente calma. E adormeceu.

3. FUGA

Apenas os mais fortes e preparados foram aceitos. A idade mínima era de vinte anos e a máxima, vinte e cinco, exceto para os líderes dos esconderijos preparados muito antes do final sufocante para refúgio do que seria a última esperança de sobrevivência da humanidade.

Alimentos e água foram armazenados com previsão de uso em até dez anos, esse era o prazo para se descobrir uma alternativa à situação calamitosa atual. O número certo desses locais era inexato, por medida estratégica, evitando invasões em busca de comida ou coisa pior. Falava-se algo em torno de cinquenta locais subterrâneos, alguns com dez mil refugiados, diversos geradores elétricos e combustível.

Essas células humanas estavam desconectadas uma das outras e do restante do mundo, embora conseguissem vigiar a superfície e o espaço coletando dados e analisando os resultados. Foi dessa forma que tiveram conhecimento da invasão alienígena em massa ocorrida quando já havia poucos sobreviventes na face da Terra. E embora não houvesse contato entre os abrigos, a conclusão dos líderes e equipe de cada um deles foi a mesma: eles são a causa desse apocalipse climático, era muita coincidência surgirem assim.

A partir daí, no Campo 05, tudo girava em tentar conhecer o inimigo, desvendar suas fraquezas para um dia poder lhes fazer frente. No comando, todas as imagens eram vistoriadas minuciosamente. " Parecem águas-vivas" comentou alguém. Com espanto observaram os novos moradores do planeta se acomodando sem nenhuma consideração. Pareciam tranquilos e até mesmo radiantes. Realizavam longas inspeções, utilizavam aparelhos nunca vistos, era óbvio que a tecnologia deles estava muito adiantada em relação aos paus e pedras humanos. Não seria fácil.

Essa vigilância ocorreu por alguns anos sempre com a mesma surpresa da produtividade dos estrangeiros. Eles não paravam quase nunca. Era impossível dizer o gênero de cada um, bem como suas idades em termos terrestres. Não existiam escutas instaladas na superficie, então não se conhecia ou se sabia se emitiam sons.

Certa vez, o comandante foi alertado da redução significativa dos alimentos, o que já preocupava a todos em muitos níveis. Ele apenas disse:

- Racionem o máximo que puderem e o mais importante, precisamos capturar um deles. Talvez sejam comestíveis.

Todos aquiesceram e se retiraram para providenciar os meios de cumprir as ordens.

FIM

TEMA: FOME

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 16/11/2024
Reeditado em 16/11/2024
Código do texto: T8198039
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