O Funeral

Foi bem difícil subir naquele púlpito, ainda mais com o caixão do meu pai à frente. Era tão estranho. Nunca o tinha visto tão arrumado como naquele dia. Isso, se não contarmos o cheiro de formol e o terno barato, o único que consegui comprar com o pouco que eu tinha.

Não havia muitas pessoas presentes no funeral, mas algo dentro de mim me obrigava a dizer algumas palavras.

Meu pai não era um homem de muitas palavras, talvez porque, na maioria das vezes em que o encontrei, ele estava caído no próprio vômito, chapado e desacordado. Por várias vezes, eu o sentia frio e pensava: “Será hoje? Será que ele está morto mesmo?”

Por onde será que começo…

Acho que foi aos nove anos que ele apontou uma faca para minha mãe, segurando o braço dela com tanta força que quase pude ouvir seus ossos se partindo.

Minha mãe não aguentou aquela situação por muito tempo. Ela tirou a própria vida dois anos depois, com os remédios que usava para controlar a depressão. Não sei ao certo quantos comprimidos tomou, mas me disseram que foi o suficiente para ela não sentir nada. Apenas dormiu e não acordou mais.

Era Páscoa. Não havia aula naquele dia, e fui eu quem a encontrou. Chamei a ambulância e fomos para o hospital, mas, no fundo, eu já sabia que era tarde.

Meus irmãos não sabiam o que tinha acontecido, e preferi dizer a eles que a mamãe havia saído para dar uma volta.

Meu pai chegou em casa naquela noite, deitou-se no sofá e chamou pela minha mãe. Quando ninguém respondeu, ele arremessou um copo de vidro na TV, quebrando-a.

Eu não achava que as coisas poderiam piorar tanto nos meses seguintes. Mas pioraram. Ele descontava toda a raiva em nós, seus filhos. Diego apanhava simplesmente por chorar, e Ana vivia escondida no guarda-roupa para evitar os tapas no rosto, pois tinha os mesmos olhos da nossa mãe.

Não sei como, e também não me perguntem como suportei tudo isso, mas eu aguentei. Segurei o choro, engoli o nó na garganta e larguei a escola. Prometi a mim mesmo que cuidaria dos meus irmãos e não deixaria que meu pai os machucasse.

Pelo menos tentei, por muitos anos. Diego tem uma marca na perna de quando nosso pai apagou um cigarro nela, e Ana precisava esconder o olho roxo quase todos os dias antes de ir para a escola. Por mais que odiássemos nosso pai, não podíamos permitir que o conselho tutelar nos separasse.

Quando completei dezoito anos, encontrei meu pai com uma garrafa de 51 na mão, sentado na escadaria do portão que dava para a rua. Ele mal conseguia se manter em pé, então eu o levantei, usei a pouca força que tinha e o empurrei para fora de casa.

Ele passou o resto daquela noite gritando no portão, implorando para que o deixássemos entrar. Mas não o deixamos.

Nosso pai sabia se virar. Encontrou um lugar para ficar alguns quarteirões da nossa casa. Mas ninguém aguenta um alcoólatra por muito tempo, e ele acabou na rua.

Foi minha irmã Ana quem o encontrou. Ele implorou para voltar para casa, mas a dor das surras que ela levou a fez virar o rosto, e eu não a julgo por isso, pois eu teria feito o mesmo.

Sem mãe nem pai, nós nos viramos como podíamos. Juntamos dinheiro, pagamos as contas e nos esforçamos para comer. Era uma vida de miséria, mas finalmente estávamos longe dos abusos do nosso pai.

Não sei por quê, mas todas as noites eu orava para ele mudar, sabe? Implorava de joelhos até não aguentar mais. Não sei se Deus me ouviu… Bem, acho que não, já que estou aqui…

Nosso pai nos deixou cicatrizes. Quando Diego completou dezessete anos, tentou assaltar uma loja de conveniência. Precisávamos de dinheiro, e acho que ele se sentiu obrigado a cometer aquela estupidez. Me odeio por ter deixado ele sair de casa naquele dia, porque vi nos olhos dele o mesmo olhar drogado do meu pai.

Diego nunca voltou. Foi morto por um policial à paisana naquela noite. Pela segunda vez, tive que ver alguém que eu amava ser enterrado. Não havia dor maior do que aquela, nada que pudesse me consolar. Chorei por dias, até não conseguir mais.

Infelizmente, enquanto eu chorava, minha irmã Ana fugiu com um homem. Nunca soube o nome dele ou para onde foram. Só sei o que vi no noticiário da manhã, enquanto me preparava para o trabalho. Um casal tinha batido o carro bêbado, a mulher estava grávida, e todos tinham morrido. Sinceramente, não quis acreditar que era Ana. Preferi pensar que eles tinham fugido e encontrado paz em algum lugar, que estavam apaixonados e que ele estava cuidando dela. Prefiro acreditar nisso. Prefiro acreditar nesse destino para minha irmã em vez de lembrar do que vi no jornal.

Anos depois, sozinha, reencontrei meu pai. É inacreditável pensar que o homem que destruiu tudo o que eu amava tinha reaparecido. Ele queria se desculpar, mas logo percebi que, na verdade, queria dinheiro para comprar drogas.

Expulsei-o várias vezes de casa, tantas que nem sei ao certo quantas.

Eu tinha completado 32 anos quando o vi vivo pela última vez, deitado em uma rua, com um pedaço de papelão cobrindo o corpo. Chovia naquele dia, e eu mal o reconheci, mas os anos não apagaram aquele rosto da minha memória. Ele, pelo contrário, nem me reconheceu. Seus olhos estavam fundos, ele estava magro e desnutrido. Levantou a cabeça e me pediu uma moeda para comer. Eu o observei, sem reação alguma, e o deixei lá.

A dor que esse homem me causou na vida é inacreditável. Contar tudo isso hoje, no enterro dele, me traz uma sensação de alívio. Meu pai levou de mim todos que eu amava. Mas eu o perdoo, pai. Você não merece, mas eu o perdoo. Todos temos nossas batalhas nesta vida, e você teve as suas. Queria muito sentir raiva de você, ter ódio… Talvez você nem mereça que eu esteja aqui. Mas sei que, no final, naquele dia em que o deixei na chuva, coberto por aquele papelão, havia remorso em seu olhar.

Então, pai, espero que agora você descanse. Sua família está te esperando. Abrace-os por mim, peça perdão. Você não precisa mais sofrer aqui. Adeus, pai.

Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 13/11/2024
Código do texto: T8196157
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