ESQUINA DO DESESPERO
Flávio finalmente acabara de organizar os poucos móveis e utensílios que comprara à prestação em uma loja de departamentos, vizinha ao seu kitnet.
Recém-chegado da região nordeste do país, a convite de um primo, para trabalhar na construção de um prédio de apartamentos, encontrou muitas facilidades na negociação para ocupar aquele pequeno espaço. O senhorio não fez muitas perguntas, nem sequer pediu garantias. Demonstrou satisfação em alugar rapidamente. Pediu apenas algumas referências pessoais.
Era uma sexta feira de 1999, seu encarregado liberou o dia para que pudesse fazer a mudança e receber os móveis novos. Ao final do dia, parecia mais cansado do que de costume. Seu serviço diário como pedreiro não o esgotava tanto, quanto naquele dia. Parecia mesmo estar doente, e foi mais cedo para a cama no canto do cômodo, dividindo o ambiente com o gabinete da pia e a porta do banheirinho, ao lado da porta de entrada social, que por sua vez, dava para um extenso corredor com outros kitnets.
O sono profundo era medido pelo volume do ronco que Flávio produzia. De repente foi trazido à tona por uma rajada de tiros e gritos desesperados, no meio da noite.
Se jogou assustado para o chão, no impulso instintivo de se defender, mas ao recobrar a consciência, notou que os tiros vinham da rua.
Se esgueirou na parede tentando ver pela fresta da cortina o que acontecia naquela esquina.
O choque fez seu coração bater em disparada, deixando-o trêmulo com a visão bárbara de um jovem sendo alvo de vários disparos à queima roupa.
Acabara de testemunhar um assassinato. Se jogou novamente no chão, dessa vez por medo de ser visto, mas também porque suas pernas esmoreceram a ponto de não suportar seu peso.
Agachado, procurou um copo na pia. Bebeu um grande gole de água e jogou o restante sobre a cabeça tentando esfriar os pensamentos.
Ao longo da noite, a movimentação intensa de curiosos, da polícia e de repórteres, contribuiu para que o sono só voltasse pela manhã.
Já tarde, quando acordou, tratou de ir ao mercado. Comprou algumas coisas que faltavam para o jantar. Pensativo sobre o ocorrido na noite anterior, teve dificuldade para dormir.
Um choro intenso e ininterrupto de criança passou a incomodá-lo. Olhou para o relógio marcando três horas da madrugada de domingo.
Levantou-se para ir ao banheiro na penumbra, sob a parca luz da rua que atravessava as cortinas brancas, semitransparentes, em meio aos prantos da criança vizinha. Notou que nenhum adulto emitia qualquer som para contê-la.
Enquanto urinava, começou a pensar como que pais podem ser tão irresponsáveis, a ponto de deixar uma criança sozinha no meio da noite. Ao voltar para a cama passou pela pia e tomou água. De repente um gelo tomou conta de seu corpo. Começou a ter a sensação de que não estava mais sozinho. Olhou para a porta fechada. Não havia ninguém. Mas pensou ter visto uma silhueta masculina, muito escura, entre os batentes da porta. Esfregou os olhos e não viu mais nada. Podia estar assustado com sua própria sombra, pensou.
Tentou relaxar. Voltou para a cama e se esforçou para dormir torcendo para alguém acalmar aquela sofrida criança, ainda aos berros.
De manhã, de novo, fora acordado repentinamente, agora, alguém batendo na porta. Abriu os olhos. O relógio marcava oito horas. Gritou para o visitante esperar. Colocou uma camiseta. Do outro lado da porta, duas jovens senhoras com longos cabelos pretos, vestidos igualmente longos, com mangas até os punhos. Cada uma delas segurava um exemplar a Bíblia.
– Bom dia, meu senhor. A irmã Janete está? - Perguntou a mais velha.
– Bom dia. Não tem nenhuma Janete aqui. Me chamo Flávio e moro sozinho.
– Desde quando o senhor mora aqui? Quis saber, com ar de surpresa.
– Olha...desde sexta-feira. A sua amiga talvez morasse aqui antes.
– De fato. Deve ser isto. Estávamos para vir aqui domingo passado, a pedido dela, mas tivemos um contratempo...Só pudemos vir hoje.
– Eu lamento o desencontro.
– Tudo bem. E o senhor? Não gostaria de ouvir um pouco a Palavra de Deus?
– Eu agradeço. Mas, hoje não. Marcamos para um outro dia, quem sabe... - Sugeriu com um sorriso, tentando encerrar a conversa.
– Está bem. Tenha um ótimo domingo. Deus o abençoe.
– Amém!
Flávio fechou a porta pensativo. O que aquelas irmãs pretendiam fazer ali? E por que a amiga nem sequer avisou da mudança? Talvez não fossem tão amigas, afinal. Ponderou.
Flávio voltou a deitar-se. O sono perdido não encontrou mais. No entanto, a preguiça o dominava, e assim se manteve na cama pelo resto do dia.
A segunda feira se aproximava, mas o sono não. Apesar do corpo pesado. Achou que estivesse doente. Foi à farmácia que ficava no andar térreo do seu prédio, localizado na esquina da rua do Corvo, número 6, para comprar um antigripal.
Na fila do caixa, observou alguns clientes comentando sobre o assassinato ocorrido bem ali à frente.
– Jesus Cristo! Só venho a essa farmácia, porque é a única no bairro. Tenho pavor dessa esquina. -Comentava uma.
– Nem me fale. É o terceiro tiroteio esse mês. Essa esquina é muito perigosa. - Dizia outra.
Flávio ouvia os comentários com certo espanto. Se soubesse que o lugar era tão perigoso não tinha se aventurado a morar naquele prédio.
Já no caixa, enquanto pagava pelo remédio, puxou assunto com o farmacêutico.
– Olá, meu amigo. Você conhece os moradores daqui do prédio, por acaso?
– Moradores? - Retrucou desconfiado.
– É... Tem um casal com uma criança pequena...
– Desculpe, mas deve estar enganado. Até onde sei, o senhor é o único morador do prédio. Ninguém fica mais de uma semana aqui. O casal que o senhor comentou, foram mortos dentro do apartamento na frente do filho, que também foi morto em seguida. É o que contam...
– Não pode ser... - Balbuciou, Flávio, deixando o pacote com o remédio escapar da mão.
Flávio voltou para casa assombrado pela história, começou então a notar que o lugar permaneceu sempre em silêncio durante aqueles dias de fim de semana. A escada e o corredor escuro, não o assustara antes, mas agora sua mente estava atormentada e atenta a qualquer ruído.
Trancou-se em casa, tomou o remédio e deitou-se. Jamais torceu tanto para que a segunda feira chegasse logo. Mas quando o relógio marcou exatamente à meia noite, seus ouvidos não puderam acreditar naquele som de criança chorando em desespero. Um arrepio percorreu sua espinha e como nunca, antes, começou a rezar encolhido embaixo da coberta. Implorando em voz alta para que a criança parasse. Suas preces pareciam ampliar o volume da criança, e o desespero tomou conta de Flávio. Foi num rompante de coragem que abriu a porta, decidido a calar a criança, deparou-se com a imagem de uma criança com sangue escorrendo pela cabeça, na porta do apartamento de número 12, chorando e olhando fixamente para ele.
Flávio, diante do horror que presenciava, decidiu fugir pela escada que separava os dois, mas ao chegar ao primeiro degrau se deparou com um fosso ardendo em chamas, e de dentro, pessoas gemendo e chorando, com os braços estendidos como que desejando saírem daquele suplício. Flávio tentou recuar, mas uma mão agarrou em seu pé o puxando para dentro daquele inferno.
O som de seu grito se confundiu com o toque de seu telefone à cabeceira da cama. Acordou suando em bicas, para atender ao telefone. Era seu primo na linha.
– Cadê você? Você não apareceu para o trabalho hoje. O que aconteceu? - Quis saber.
– Nada não. - Respondeu, inclinando o corpo na cama e segurando a cabeça como que estivesse doendo muito. E continuou: - Primo, me perdoe. Encontre outra pessoa para o trabalho. Estou voltando pra Pernambuco, hoje.