O desejo de Angela
Angela quer muito engravidar! Ela e Michel já tentaram de tudo, inclusive inseminação artificial. Apenas foi frustração sobre frustração. Nenhum problema de saúde detectado por médicos, talvez apenas algo psicológico ou, como algumas pessoas diziam, algo espiritual. Mas nenhum tratamento, nem mesmo holísticos ou espirituais, surtiu efeito.
Outro dia, num grupo de mensagens composto por mulheres que não conseguiam ter filhos, Angela viu sobre a cidade União da Serra, interior do estado gaúcho, onde mulheres ajudavam mulheres a engravidar. Mas no Google não encontrou nada a respeito, mesmo assim sentiu que deveriam ir até lá para ver como funcionava.
Sem tempo para fazer grandes programações, Michel pediu suas férias no trabalho, juntaram alguma bagagem e partiram de Porto Alegre lá para fora, como dizem os gaúchos. Angela tinha seu coração ansioso, chegava a parecer uma dor descompassada. Pouco mais de 200 km de viagem, o casal mal conversou no caminho. Michel já sabia que quando Angela estava ansiosa, sua mente girava infinitos rpms o que a impedia de conversar com alguém.
Ao atravessar o singelo pórtico da cidade, sentiram uma atmosfera um pouco diferente, um ar campestre mais denso, parecia que tinha chuva por vir. Conforme o carro atravessava uma estrada de chão batido entre campos com pouquíssimos animais de um lado e uma vasta produção de milho de outro, perceberam algumas pessoas escoradas nas cercas ao longe. Não tinham inicialmente nenhum lugar onde ficar, pois não conseguiram localizar nenhum hotel ou pousada na cidade. Mas avançaram mesmo assim, qualquer coisa, se dirigiriam a alguma cidade próxima.
Ao fim da estrada, chegaram a um vilarejo. Tudo chão batido. Poucas casas, uma pequena mercearia que estava fechada por ser hora do almoço, Michel se aproximou de um senhor sentado à frente da mercearia, mas ao chegar bem perto, assustou-se, não era uma pessoa, era um boneco! Havia uma escola que se resumia a uma sala de aula, poucas mesas e com alguns estudantes sentados escrevendo. Michel tentou da janela chamar-lhes a atenção, mas sem sucesso, pensou até que falassem outra língua, deu a volta, bateu à porta da sala de aula, abriu e foi então que percebeu que eram todos bonecos! Nessa hora, Michel sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. Eram muito realistas!
Pelas suas costas, ouviu alguém pedir licença, ao se virar, viu a senhorinha de duas tranças e vestido de chita a lhe sorrir. Michel a cumprimentou e lhe pediu indicação de um lugar onde ele e a esposa pudessem se hospedar, explicou que queriam conhecer a cidade. A senhorinha os convidou para sua casa, onde mantinha dois quartos de hóspedes. E cobraria deles um valor apenas para cobrir as despesas.
Michel voltou ao carro e chamou Angela que desceu do carro animada. Entraram na casa da senhorinha e se espantaram ao ver que sua sala era repleta de bonecos realistas. Eram bebês, crianças menores, outras maiores, alguns jovens... Angela perguntou se era a senhorinha que os fazia, ela disse que alguns sim, mas outros foram alunas que fizeram.
Chegaram ao quarto. Era modesto, a luz solar ainda entrava pela janela e era refletida na cama e no chão, o que tornava o cheiro da madeira que fazia o piso ser percebível. A senhorinha desceu para providenciar-lhes o almoço, enquanto Angela e Michel arrumavam suas coisas. Aproveitaram para tomar um banho e colocarem roupas limpas.
Após o almoço, Angela sentou-se no sofá da sala em meio aos bonecos e foi direta em sua pergunta sobre dizerem que em União da Serra, mulheres ajudavam mulheres a engravidar. A senhorinha sorriu, chegando mais perto de Angela. A senhorinha explicou que essa ajuda acontecia em alguns momentos do ano, quando se dava a colheita. Angela estava quase desanimando quando a senhorinha lhe disse que esse momento aconteceria em três dias. Que era uma festa, onde a cidade se reunia em torno de uma fogueira, mas que os detalhes lhe seriam passados no momento da festa. Mas, Angela deveria, nesses dias que antecederiam a festa, já fazer alguns preparos junto do marido.
Na primeira noite, sob a lua, deveriam ter relação e colher dela os fluídos sexuais que deveriam ser entregues à senhorinha o mais rápido possível. Durante os dois dias que antecedem à festa, o marido deveria se alimentar apenas de frutas. Angela e Michel acharam estranho, não estavam preparados para esse tipo de coisa, achavam que a ajuda vinha através de conversas de sabedoria antiga, ou rezas de benzedeiras. Hesitaram em permanecer e seguir com a ajuda. Mas Angela, movida pela fé, achou que poderia ser a chance de sua realização!
Anoiteceu e a lua já estava brilhante no céu, a senhorinha bateu à porta do quarto do casal e os avisou que o momento era propício. O casal se entreolhou, suspirou e assentiram um ao outro confirmando o momento. Angela abriu a porta, a senhorinha disse que se preparassem que em alguns minutos ela os buscaria para levá-los até ao local preparado. Deu lhes roupas brancas, um vestido muito bonito e rendado à Angela e apenas uma calça curta ao Michel.
Eis que a senhorinha os buscou no quarto e os guiou até um local a céu aberto coberto por feno e rodeado de flores. Deu uma bebida à Angela que passou ao Michel. A orientação era deixar o cálice recebendo a luz da lua. Após a relação o máximo de fluído deveria ser adicionado ao cálice. A senhorinha então se afastou.
O casal se aproximou após a senhorinha se afastar e vivenciaram a melhor experiência a dois que já tiveram. Após coletados os fluídos no cálice com a bebida, o casal levou até a senhorinha que o recebeu sorrindo. Combinou com o casal o café da manhã para as 9h e lembrou Michel de que até o ritual final ele só poderia se alimentar de frutas.
No café da manhã, Angela perguntou à senhorinha onde estavam os outros moradores e quem faria a colheita, pois não vira mais que umas dez pessoas circulando pelo vilarejo. A senhorinha disse que viriam das cidades do entorno e que ela não se preocupasse pois o ritual estava garantido.
Chegou o dia do ritual, Michel estava louco para que tudo terminasse e eles pudessem ir à uma churrascaria. Não comeria frutas tão cedo em sua vida!
De repente, a cidade antes erma se tornou muito movimentada, dezenas de pessoas participavam da colheita, outras da arrumação do terreno ao lado da casa onde seria montada a fogueira e o ritual. Um belo mastro enfeitado por diversas fitas foi posto ao centro, e uma enorme fogueira era montada logo após. Cadeiras eram colocadas à margem, uma mesa enorme fora posta ao lado.
Chegou a noite e Angela estava muito ansiosa. Michel estava angustiado. Não sabia se era por causa da dieta ou por algum outro motivo. Sua angustia fazia sua mente ser espremida e seu coração retorcido. Às 18h, a senhorinha levou as roupas brancas novamente ao casal com a diferença de que Michel recebeu uma bata, e lhes pediu que estivessem prontos até às 19h pois em seguida a festa iria começar.
O casal se dirigiu ao terreno que já estava movimentado. Perceberam a mesa repleta de frutas, flores, pães, carnes. Todas as pessoas vestiam-se com roupas parecidas com as que lhe foram dadas. Logo, homens entraram no terreno tocando vários instrumentos, alguns pareciam com o acordeon e gaita de fole. A música era envolvente. Logo, algumas mulheres puxaram Angela para o mastro de fitas e começaram a dançar cruzando e descruzando as fitas sobre si mesmas. Em seguida, os homens puxaram Michel para dançarem entrelaçados em torno da fogueira.
Depois todos pararam para ouvir a senhorinha que chegava ao centro do terreno com o cálice de Angela e Michel. O casal se entreolhou e seus corações passaram a bater tão forte que mal conseguiam prestar atenção a tudo o que estava sendo dito. De repente, uma outra senhora trouxe uma guirlanda de flores e a colocou sobre a cabeça de Angela e um senhor que trazia outra a colocou sobre a cabeça de Michel.
Enquanto o ritual seguia, Angela e Michel sentiam uma mistura de euforia e receio crescente. A senhorinha, de frente à fogueira agora acesa, levantou o cálice em direção à lua cheia, entoando cânticos em uma língua antiga e gutural. As chamas da fogueira dançavam em um ritmo hipnotizante, enquanto as pessoas ao redor se uniam ao cântico, criando uma melodia profunda e enigmática.
De repente, o cântico cessou, e a senhorinha aproximou o cálice de Angela, pedindo que ela o bebesse. Angela, hesitante, olhou para Michel, que assentiu, ambos movidos por uma fé desesperada. Ela levou o cálice aos lábios e bebeu o líquido espesso, sentindo um gosto doce e amargo ao mesmo tempo.
A senhorinha então entregou o cálice a Michel, que também tomou um gole, sentindo o mesmo sabor estranho e, de alguma forma, familiar. Nesse momento, o casal começou a sentir uma estranha dormência que lhes percorria o corpo, como se uma força invisível se enraizasse dentro deles.
As pessoas ao redor continuaram com os cânticos e a dança, agora em um ritmo mais acelerado e selvagem, enquanto Angela e Michel sentiam uma vertigem crescente. Aos poucos, imagens desfocadas começaram a surgir diante dos seus olhos: uma plantação vasta, raízes se entrelaçando e crescendo vigorosamente, e o solo seco sendo irrigado com um líquido escuro e denso, algo parecido com sangue.
De repente, Angela caiu de joelhos ao chão, segurando o ventre, como se algo dentro dela começasse a pulsar com uma força própria. Michel quis ajudá-la, mas sentiu-se preso no mesmo transe, com os olhos arregalados, encarando as chamas da fogueira que pareciam querer consumi-lo. O canto dos habitantes agora soava como um eco distante, cada vez mais macabro, até se tornarem apenas sussurros abafados.
A senhorinha então se aproximou de Angela, que se contorcia em uma mistura de dor e êxtase, e lhe disse: "O sacrifício foi aceito, Angela. O solo de União da Serra agora os abençoa." Em meio a suas palavras, os habitantes continuaram o ritual, enquanto Angela e Michel sentiam suas consciências se dissolverem naquela estranha sensação de pertencimento, como se algo os puxasse para as profundezas daquele lugar.
Quando finalmente o cântico terminou, Angela percebeu que o vilarejo estava em completo silêncio. Ela olhou ao redor, e as pessoas, antes em frenesi, agora permaneciam imóveis, seus olhos fixos e opacos. Então, tudo fez sentido: aquelas "pessoas" também eram bonecos, figuras artificiais e silenciosas, representações vazias do que um dia talvez tivesse sido uma comunidade.
Angela continuava ajoelhada no chão com a mão sobre o ventre sentindo o forte pulsar. Sentia medo e felicidade ao mesmo tempo. Ao olhar para Michel, Angela se desesperou, pois viu que ele não conseguia se mexer e que raízes saiam da terra e se entrelaçavam nele, puxando-o lentamente para dentro da terra.
A última visão de Michel foi a da senhorinha sorrindo, enquanto sussurrava: "Você terá sua fertilidade, Angela... agora, seu marido pertence à terra." Angela perdeu a consciência.
Quando voltou a si, estava sobre a cama do quarto de hóspedes, limpa e vestindo outra roupa. Chamou por Michel. Levantou-se ainda meio tonta, lavou o rosto e desceu as escadas e não encontrou nem o marido e nem a senhorinha. Tomou água e em alguns minutos, a tonteira passou e se lembrou de tudo o que tinha acontecido.
Desesperadamente, subiu ao quarto, apanhou sua bolsa e a chave do carro. Saiu em disparada para o pórtico da cidade. Ao chegar lá, avistou Michel ainda vestindo a roupa do ritual. Parou o carro e o chamou e buzinou, e como ele não respondia, ela desceu do carro e foi até bem próximo. Não era Michel! Era um boneco!