O CONVENTO DO TERROR
Meu nome é Pedro Porto Menezes. Houve um tempo em que vivi alguns meses em um aposento na torre norte do convento Santa Clara. Meu quarto tinha cinco passos largos de um lado e quatro do outro, com uma cama, uma mesa e uma cadeira. Um aposento úmido e frio no inverno, quente e abafado no verão. Quatro paredes caiadas, sem adornos com apenas uma pequena janela de onde não se podia ver quase nada do exterior.
Eu dormia numa cama de madeira roliça, sobre um colchão recheado com penas de galinha. Numa salinha na entrada, tinha uma cômoda para roupas, sobre ela uma talha com água, uma bacia e uma caneca. Ao lado desse cubículo ficava a privada, onde eu também tomava banho.
As freiras traziam as refeições, deixavam roupas limpas, levavam as sujas para lavar e enchiam a talha com água. Quando ali cheguei, não revelei o motivo pelo qual eu queria me isolar do mundo. A Superiora do convento, madre Rosário, compreendendo e acatando minha vontade, consentiu me dar asilo e proibiu que as freiras revelassem a estranhos, a minha presença naquela torre.
Se alguém de fora soubesse que havia um homem morando no convento de freiras, seria um escândalo!
Algumas freiras eram devotas em excesso, conservadoras, não gostavam da minha presença, outras, no entanto, eram mais liberais e por um dever cristão, aceitaram meu asilo. Nunca entravam sozinhas em meus aposentos, vinham em duas ou três, sempre acompanhadas por uma freira de mais idade.
Frequentemente duas delas batiam na minha porta nas horas mais impróprias, talvez sem o conhecimento da madre superiora. Era irmã Celeste, que de celestial nada tinha e irmã Dolores. A primeira com cerca de trinta anos e a outra ao redor dos vinte anos. Demonstravam pudor, mas suas atitudes recatadas eram fingidas, como pude descobrir mais tarde.
Suas intenções eram o jogo da sedução, do encantamento e a corrupção das minhas virtudes. Irritado com a atitude delas, passei a trancar a porta. Claro que as outras não eram como essas duas, mas preferi deixar a porta trancada quando elas traziam roupas e refeições, pedia-lhes que deixassem na salinha da entrada, pois Celeste e Dolores entravam sem respeitar as regras da boa educação.
Pois bem, registrado este preâmbulo, se faz necessário que lhes conte como e porque fui morar naquele convento.
Eu trabalhava como escrivão. Foi numa festa de São João que conheci Judite, moça bonita, meiga, inteligente, filha de colonos. Morava numa chácara com os pais, próximo da cidade. Começamos a namorar e depois de três anos de noivado, marcamos a data do casamento. Judite era uma boa amazona, costumava cavalgar todas as manhãs, mas certo dia o cavalo se assustou com alguma coisa e ela acabou caindo. Ferida na cabeça, foi levada inconsciente para casa e colocada em sua cama. Um parente foi chamar o médico e me avisou do ocorrido. Após examiná-la minuciosamente, o médico constatou que ela estava com duas costelas fraturadas e um ferimento na nuca. Ele tratou da pancada na cabeça e enfaixou o dorso para que não se movesse, possibilitando assim, que as costelas se reconstituíssem.
Mas o estado de saúde de Judite piorou, ficando com febre e com os sinais vitais muito fracos. Na noite do dia seguinte ela faleceu. Fiquei em choque. Judite era todo o meu sonho, minha vontade de viver. Desesperado, num ímpeto irracional, saí correndo pelos campos e matos. Acabei caindo de um barranco, perdi os sentidos e quando acordei já era noite. Não sabia onde estava. Eu ainda continuava na mata, mas em um lugar desconhecido. Mesmo com a claridade da lua cheia, não consegui encontrar o caminho de volta. Subi para os galhos de uma árvore e ali me recostei, pensando o que fazer da minha vida.
Quando amanheceu, escolhi um rumo ao acaso, sem me importar para onde ir, sem vontade de voltar para casa e ter que enfrentar a realidade. Eu preferi pensar que muitos anos já se haviam passado e que a lembrança de Judite era a única coisa que restou.
Não tinha ideia de quanto tempo caminhei, se horas ou dias. Enfraquecido, comecei a cambalear, a vista ficou nublada. Sem forças, deixei-me cair no chão. Novamente perdi os sentidos. Quando acordei ouvi o badalar de um sino. Ergui a cabeça e percebi que tinha saído da mata. No terreno abaixo, avistei a torre de um convento sobressaindo da névoa da manhã. Reuni minhas últimas forças e segui trôpego naquela direção.
O convento se compunha de um prédio robusto, área de serviço e lazer, com um jardim, horta, animais domésticos, tudo cercado por um alto muro. As freiras viviam enclausuradas o tempo todo, somente algumas delas saiam para fazer compras, ou tratar de algum outro assunto importante na cidade. Os portões permaneciam o tempo todo trancados.
Com muito esforço consegui chegar até a frente, onde uma das freiras me encontrou após ouvir meus lamentos. Não sei se dormi ou perdi os sentidos, quando dei por mim, me vi deitado numa cama, num aposento pequeno com o sol entrando por uma janela envidraçada. Ao meu lado estavam duas freiras, uma jovem e outra aparentando ter uns sessenta anos.
─ Como se sente? ─ perguntou a mais velha.
Ergui-me e me recostei nos travesseiros. Os acontecimentos passados pareciam estar muito distantes no tempo. Havia um quase vazio em minha mente, o que restava eram vagas lembranças. Lembrava de estar caminhando na mata, mas não sabia o motivo, de onde vinha, para onde ia.
─ Melhor ─ respondi, embora sentisse um certo desconforto por estar ali.
─ Meu nome é Rosário, sou a madre superiora e esta é irmã Luzia ─ disse a freira de mais idade, me entregando uma tigela com sopa. ─ Coma isso, vai lhe fazer bem.
Comecei a comer, pois estava com muita fome.
─ O que aconteceu com o senhor? — perguntou Luzia. Refleti por alguns instantes antes de responder. As únicas lembranças que me vinham à cabeça, era de estar caminhando na floresta, comendo frutas e bebendo água de algum regato.
─ Não sei, não me lembro.
─ Como se chama?
Novamente fiquei a puxar pela memória. Por mais que eu tentasse, não consegui lembrar meu nome.
Observando minha expressão confusa, madre Rosário falou: ─Também não se lembra? Coitado! Tinhas um ferimento na cabeça, mas não era de muita gravidade. Será que a pancada afetou sua memória?
─ Um grande abalo emocional pode causar perda de memória − firmou irmã Luzia.
Madre Rosário voltou a me encarar. Sorriu como que para encorajar-me.
─ Não importa. Nós cuidaremos do senhor e vamos procurar alguém que o conheça. Limparemos e arrumaremos o quarto da torre, onde o senhor poderá ficar até que possamos encontrar seus parentes.
****
Uma semana depois, ao acordar pela manhã, lembrei-me de tudo. A memória havia voltado e com ela a dor pela perda de minha amada. Fiquei deitado na cama sem saber o que fazer, sem vontade de voltar para casa. Soaram batidas na porta do quarto e eu mandei entrar. Era irmã Luzia e outra freira, uma jovem de olhos azuis. Elas traziam o desjejum, uma caneca de leite, pão de centeio, queijo e mel.
─ Bom dia, irmão! — saudou Luzia alegremente. Colocou a bandeja sobre a mesa, dizendo: ─ Esta é irmã Celeste. Dormiu bem? Necessita de alguma coisa?
Sentei-me na beira da cama e pedi para falar com a madre superiora. As duas voltaram a sair e logo depois Madre Rosário subiu sozinha. Sentou-se numa cadeira e disse:
─ Infelizmente, até agora não tivemos notícias de ninguém que tenha desaparecido nesta região. Pode ser que o senhor tenha parentes em outro município. Ainda não lembra de nada?
─ Madre Rosário, estou me lembrando de quem sou e onde moro. Meu nome é Pedro Porto Menezes.
─ Verdade? Que bom!
Comecei a chorar e Rosário segurou minhas mãos ─ O que foi meu filho? São tristes as tuas recordações?
─ Sim madre, mas prefiro não falar nisso. É por causa dessa dor na alma que eu queria me isolar do mundo. Eu queria poder ficar aqui, até o fim dos meus dias, se for possível.
Madre Rosário ficou séria.
─ Acho que você está tomando uma decisão precipitada. É jovem e com o passar do tempo vai superar toda essa tristeza. Bem, esse é um convento de freiras, mas podemos lhe dar abrigo por mais alguns dias. Talvez até lá você mude de ideia. Mas não poderá circular pelo convento, terá que ficar o tempo todo na torre.
─ Não importa. Sei escrever e desenhar. Eu gostaria de fazer alguma coisa para passar o tempo.
Madre Rosário ergueu-se ─ Mandarei trazer papel, pena e tinta. Quando quiser conversar, mande me avisar.
Naquela manhã fiz alguns desenhos tendo por tema a vida de Cristo. Quando irmã Luzia me levou o almoço e viu os desenhos, ficou encantada e pediu-me para enfeitar seu livro de orações com alguns desenhos como aqueles. Ela mostrou as gravuras para as companheiras e elas me pediram para fazer o mesmo com seus breviários. Assim, comecei a desenhar em livros, enfeitando-os com ilustrações tendo por temática, elementos do cristianismo.
Trabalhar e viver num ambiente fechado se torna nocivo à saúde e por isso, eu fazia exercícios e ficava deitado no chão, diante da janela para tomar sol, pelo menos meia hora por dia.
Passaram-se algumas semanas. Certa noite, altas horas, as freiras já tinham se recolhido aos seus quartos, eu ainda estava trabalhando num livro que contava a história de Santa Catarina de Siena, quando soaram batidas na porta. Estranhando uma visita àquelas horas, abri a porta. Deparei-me com Celeste e Dolores, a primeira com algo enrolado numa toalha e a outra com um candeeiro para iluminar o caminho.
─ Vimos que o senhor ainda estava acordado e trabalhando, resolvemos lhe trazer algo para comer — disse Celeste e sem pedir licença entrou no quarto. Ela colocou um pote com doces sobre a mesa e ficou admirando o meu trabalho.
─ Que magnífica obra! — exclamou.
─ Faz mal à saúde desenhar a noite com pouca iluminação. — advertiu Dolores.
─ Já me acostumei. — respondi aborrecido com aquela intromissão. Dolores largou o candeeiro sobre a mesa e foi sentar-se na cama e Celeste acomodou-se na cadeira.
─ O senhor não sente solidão, vivendo sozinho neste quarto? — perguntou ela.
Comecei a ficar preocupado com aquela visita inesperada e fora de hora.
─ Desculpem, mas estou cansado e quero dormir. Queiram me deixar a sós, por favor?
Celeste me olhou com uma expressão de encantamento.
─ Ora, Irmão Pedro! Não está gostando de nossa companhia? Talvez o senhor esteja constrangido com….
Dei dois passos largos e abri a porta.
─ Queiram se retirar, por favor!
Lançando-me um olhar de desapontamento, as duas freiras partiram em silêncio. Tranquei a porta, encerrei o meu trabalho e fui dormir.
Duas semanas depois, certa noite, eu estava me preparando para dormir, quando soaram batidas na porta. Quando abri, Celeste, vestindo uma camisola, precipitou-se para dentro do quarto, trancou a porta e me abraçou.
─ Não me mande embora, quero ficar com você! — disse ela e colou o corpo ao meu, fazendo pressão com os quadris, de baixo para cima. Agarrei-a pelos braços afastando-a de mim.
─ Para! O que pensa que está fazendo? Você está traindo a si mesma, os princípios religiosos, o voto de castidade!
Celeste ergueu o rosto e me encarou. Procurei no fundo da alma forças para resistir àquela tentação. Se eu cedesse estaria traindo a confiança de madre Rosário. Não havia nada que eu pudesse dizer para a moça desistir dos seus propósitos. Seus anseios falavam mais alto. Segurando-a por um braço, levei-a para fora do quarto e tranquei a porta.
Naquela noite quase não dormi, perturbado pelas emoções. Na manhã seguinte acordei com novas batidas na porta do quarto.
─ Quem é? — perguntei, aborrecido.
─ Madre Rosário.
Fiquei surpreso ao vê-la na companhia de um sacerdote.
─ Este é dom Fernandes, o novo bispo diocesano — disse a freira com uma expressão tensa. — Ele deseja conversar com o senhor.
Afastei-me para eles entrarem. Com ar grave o bispo entrou. Examinando o aposento, deteve-se diante da mesa de trabalho. Rosário voltou a sair e retornou com Celeste. Ela estava com a camisola rasgada na altura do ombro, revelando uma parte do dorso e um ferimento leve na pele branca e sedosa. Permaneceu com a cabeça inclinada para o chão. Dom Fernandes examinou-me da cabeça aos pés. Calculei que minha aparência não devia ser desagradável, pois havia cortado à barba e aparado os cabelos uns dias antes.
─ Esta jovem freira o acusa de invadir o quarto dela e tentar beijá-la — disse o bispo num tom severo. Voltou-se para Luzia e fez um gesto largo. ─ Como a senhora permitiu que um homem venha morar no convento? Isso é inadmissível! E agora acontece isso!
Celeste permaneceu imóvel, com os olhos fitos no chão. Ao lado dela, Rosário torcia as mãos, aflita.
─ Nunca ele demonstrou más intenções, ao contrário, sempre foi cordial, trabalhador, amigo! — argumentou ela.
─ A senhora está defendendo-o?
─ Não! Só estou dizendo a verdade.
Dom Fernandes respirou profundamente, me encarou e eu procurei me defender.
─ Eu não ataquei a irmã Celeste. Ela está mentindo. Nunca saí do meu quarto. Ao contrário, foi ela quem esteve aqui a noite passada sabe-se lá com que intenções. Pedi para se retirar e logo fui dormir.
Celeste soltou um gemido, escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. O bispo fez um gesto para ela.
─ O senhor quer-me dizer que foi ela quem rasgou a própria roupa e se arranhou?
─ Isso mesmo. Celeste não consegue e não merece ser freira. Suas atitudes são pecaminosas. Enquanto suas companheiras estavam dormindo, ela aproveitou para entrar em meu quarto.
─ Cinco semanas encerrado entre quatro paredes, é o mesmo que estar numa prisão. — disse o bispo.
─ Tenho os meus motivos — respondi. Dom Fernandes olhou-me, pensativo. Continuei: ─ Celeste veio aos meus aposentos umas duas horas depois do escurecer. Bateu na porta fingindo ser a irmã Luzia. Quando fui atender, ela entrou e agarrou-se a mim dizendo querer ficar comigo. Eu a repeli e a coloquei para fora do quarto. Meus aposentos ficam numa casa de religião, um lugar sagrado! Eu nunca teria coragem para desrespeitar esse lugar, tampouco desprezar a confiança e o carinho que madre Rosário e irmã Luzia têm por mim.
O bispo olhou-me impressionado, mas ainda não estava convencido.
─ Seria conveniente que o senhor interrogasse irmã Dolores. Ela e Celeste andam sempre juntas e as duas já estiveram certo dia em meu quarto após o escurecer, com o pretexto de trazer-me doces.
Fernandes voltou-se para madre Rosário.
─ Leve-a para o escritório, conversarei com ela depois e traga-me Dolores aqui.
Rosário saiu com Celeste e dom Fernandes aproximou-se da mesa, olhou o material de desenho, examinando o meu trabalho. Depois se sentou na cadeira, pegou um pequeno volume de uma pilha de livros e começou a folheá-lo. Sentei na beira da cama e esperei.
Quando a madre superiora voltou trazendo Dolores, o sacerdote devolveu o livro à pilha e encarou a jovem freira, falando num tom suave, didático:
─ O despertar para a vida religiosa às vezes acontece quando a pessoa já é adulta. Ela não encontra paz, nem encanto num estilo de vida onde reina a corrupção dos sentidos, onde há vaidade, cobiça inveja e mentiras. Por isso, ela procura a paz, conforto para o espírito numa vida religiosa. Para se viver plenamente à religião cristã, é preciso viver em santidade, afastar de si as tentações, os vícios, os maus pensamentos. Se a pessoa não consegue isso, não deve se entregar e se dedicar a uma doutrina religiosa, tampouco zombar da religião e desrespeitar o título que ostenta.
Dom Fernandes fez uma pequena pausa e perguntou:
─ Irmã Dolores, diga a verdade, a senhora e a irmã Celeste estiveram nesse quarto altas horas da noite, sem o conhecimento da madre superiora?
─ Sim, senhor — respondeu a jovem, olhando rapidamente o rosto do bispo.
─ Por quê? Que motivos tiveram para vir aqui numa hora imprópria?
Nervosa, Dolores evitou encarar o sacerdote — A ideia foi da irmã Celeste. Ela acha o irmão Pedro… atraente e quis agradá-lo, trazendo o doce.
─ Não considerou que a irmã Celeste estava caindo em tentação?
─ Sim, vossa reverendíssima.
─ E por que concordou em acompanhá-la? Estava pensando também em seduzir este homem?
Dolores fez o sinal da cruz ─ Deus me livre e perdoe. Nunca, não era minha intenção. Caí no erro ao confiar na irmã Celeste.
─ Celeste tem uma personalidade forte, é cativante e consegue fazer valer suas vontades — disse Rosário.
─ Celeste mentiu-afirmou Dolores. ─ Ela mesma se arranhou e rasgou a camisola. Acusou irmão Pedro apenas por vingança, porque ele não quis aceitar os carinhos dela.
O bispo deu uma pancada com a mão sobre a mesa e as duas freiras estremeceram de susto.
─ Muito bem! — exclamou ele. — Irmã Rosário, conversarei com Celeste e decidirei o destino dela. Quanto à Dolores, uma penitência severa deverá fazer com que ela reflita sobre seus atos e que, de hoje em diante tenha atitudes honráveis, dignas de uma religiosa. Agora, podem nos deixar a sós, preciso conversar com este senhor.
Quando ambas as freiras saíram, o bispo encarou-me ─ A sua permanência neste convento vai contra as regras de nossa instituição, mas considerando as circunstâncias e o trabalho que o senhor executa, podemos abrir uma exceção. O senhor tem sido útil, os seus livros ilustrados estão sendo bem aceitos pela comunidade religiosa e trazendo frutos benéficos à Ordem. Mas, eu gostaria de saber por que o senhor quer viver isolado desse jeito?
─ Realizar meu trabalho é uma forma de pagar a hospitalidade das freiras. Quanto ao meu isolamento, o mundo lá fora não me atrai. Já não sinto prazer em desfrutar os bens que ele oferece.
─ Uma atitude admirável — comentou o bispo. Após um momento em silêncio, estendeu a mão.
Beijei o anel episcopal e ele saiu.
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Dois dias depois, noite alta. Um trovão me acordou. Clarões de relâmpagos entravam pelas frestas da janela e o vendo assoviava na ombreira. Nos intervalos dos trovões, ouvi batidas fortes e insistentes na porta. Ao abrir, me deparei com irmã Luzia, visivelmente perturbada, a mão tremula segurando o lampião.
─ Irmão Pedro, madre Rosário está passando mal. Precisava que alguém fosse chamar o médico. O senhor pode ir? Pensei em mandar uma das freiras, ou eu mesma, mas a uma hora dessas e com esse temporal, para uma mulher, seria uma missão muito difícil e perigosa.
─ Claro. Só trocarei de roupa.
Mudei de roupa e a segui, descendo as escadas. Era a primeira vez que eu saia do quarto desde que ali chegara. Quando chegamos ao pé da escada, uma freira idosa veio ao nosso encontro. Era irmã Emília, de olhos arregalados.
─ Não é de médico que ela precisa. Madre Rosário foi possuída pelo demônio. - disse ela, ressaltando a última palavra. Luzia mudou de direção.
─ Então, precisamos fazer uma corrente de orações. Venha irmão Pedro, nos acompanhe nas orações.
Madre Rosário estava deitada, sendo assistida por Dolores e outra freira. As outras assistiam à cena, assustadas. Não vi Celeste entre elas.
─ Vamos nos dar as mãos e rezar o Pai-Nosso e Ave Maria — pediu Luzia.
Segurei a mão dela e a de Emília, as outras se deram as mãos completando a corrente, fazendo um semicírculo ao redor de Rosário. Ela começou a se debater com mais violência, falando coisas incompreensíveis. Achei que era latim. Ergueu o tronco, os olhos avermelhados fitando algo que a gente não via, a face pálida, uma espuma branca escorrendo pelos cantos da boca. As palavras saiam aos jorros, confusas, como folhas secas desordenadas, carregadas pelo vento. De repente, soltou um longo suspiro e baixou a cabeça, permanecendo em silêncio. Quando ergueu o rosto, olhou ao redor e me encontrando, fez um gesto com a mão, como se quisesse me puxar para o seu lado.
─ Irmão Pedro!
Aproximei-me dela, sentando-me na beira do leito.
─ Estou aqui.
Segurou meu braço.
─ Ele é um monstro, o senhor deve…
Ela não completou a frase, puxou o ar com força, revirou os olhos e caiu para trás.
Houve muito choro, muita agitação devido à morte da diretora do convento. Irmã Luzia, mais segura, controlada, líder nata, distribuiu abraços e conforto e começou a organizar os preparativos para o funeral.
****
Sob chuva fina e intermitente, sepultamos madre Rosário no pequeno cemitério atrás do convento. Depois, Luzia acompanhou-me até ao pé da escada que levava ao meu quarto, no alto da torre.
─ A senhora substituirá madre Rosário?
─ Dom Fernandes é quem decidirá. Não conseguimos falar com ele devido à tempestade, mas agora que acalmou, mandarei alguém à cidade.
─ E irmã Celeste? O que aconteceu com ela?
─ Dom Fernandes disse para ela escolher entre, ficar no convento e seguir a Cristo ou ir embora e ter uma vida normal. Ela preferiu ir embora. Dom Fernandes a acompanhou até a cidade.
─ Lamento sobre o que ocorreu.
─ O senhor não teve nenhuma culpa.
Luzia fez uma pausa, pensativa e depois perguntou: ─ O que o senhor acha que madre Rosário quis dizer, quando falou antes de falecer?
Sacudi a cabeça ─ Não sei.
─ Ela falou, ele é um monstro! Será que estava se referindo a dom Fernandes?
─ Foi a primeira vez que ele veio ao convento?
─ Sim, está substituindo Dom Genaro que pereceu subitamente de causas desconhecidas. Acho impossível madre Rosário tê-lo conhecido antes da transferência dele para cá.
─ Exceto se ela tenha descoberto algo sobre ele enquanto esteve aqui.
─ Acho pouco provável. Talvez estivesse delirando — a freira tocou meu braço e concluiu: ─ Bem, irmão Pedro, vou deixá-lo descansar.
****
Acordei no meio da noite sentindo-me mal. Tinha calafrios e parecia estar com febre, a mente esgotada e os membros entorpecidos. Senti um cheiro estranho, almiscarado. Percebi que a janela estava aberta. Eu não costumava colocar a tranca, apenas quando ventava. Imaginei que o vento a tivesse aberto.
As luzes das estrelas iluminavam parcamente o quarto e sobressaltei-me ao ver um vulto imóvel ao pé da cama. Ouvi um ciciar sinistro.
Tentei me erguer, mas a letargia tomava conta de mim. O vulto aproximou-se e percebi ser uma mulher pelos cabelos compridos e corpo torneado. Estava nua. Ela subiu sobre mim, arrancando a calça do pijama. Acomodou-se soltando um gemido. Não consegui impedir a ereção do meu membro. Ela colocou-o dentro de si e começou a movimentar os quadris.
Inclinou-se, encostou a boca no meu pescoço. Não me lembro o que aconteceu depois. Achei que tinha sonhado.
Com o corpo suado e sentindo muito calor, tomei um banho. A água fria me reanimou. Estava mudando de roupa, quando ouvi um grito de pavor. Abri a porta e escutei. Mais gritos soaram e pareceram sumir na distância.
Peguei a lamparina e desci. Velas, lamparinas e lampiões estavam acesos por todos os cantos. Larguei a lâmpada sobre uma mesinha e segui por um corredor. Examinando os quartos, não encontrei ninguém neles. Achei que as freiras estavam na igreja, fazendo suas orações matutinas. Estava olhando para fora, quando notei um reflexo na vidraça da janela. Havia alguém atrás de mim. Voltei-me e levei um susto tremendo. Era madre Rosário, com as vestes sujas de terra, me encarando com seu rosto pálido e olhos vítreos.
Ela ergueu os braços na minha direção, abriu a boca exibindo os dentes pontiagudos e rosnou como uma fera sedenta de sangue. Num gesto instintivo de defesa, peguei uma lamparina e atirei sobre ela. O óleo se espalhou pelo traje e pegou fogo. Madre Rosário se transformou numa tocha humana. Um grito soou, vindo de uma porta no fim do corredor.
Enquanto a freira tombava, sem nenhum gemido, corri procurando a origem do grito. Cheguei a uma porta que levava ao porão. Luzes tremeluzentes brilhavam lá embaixo. Quando desci, me deparei com vários corpos espalhados pelo chão. As freiras jaziam mortas, seminuas. Outra estava sendo esquartejada sobre uma mesa, o sangue escorrendo para uma banheira, onde Celeste se banhava.
Sobre a mesa, irmã Luzia tinha os olhos voltados para mim, mas eram olhos sem brilho, sem vida.
Dom Fernandes voltou-se, segurando um cutelo sujo de sangue. O avental amarelo que ele usava, também estava manchado de vermelho.
─ Eu estava justamente pensando no senhor, irmão Pedro − ele proferiu as duas últimas palavras num tom de deboche. Esboçou um sorriso. ─ Mandei Celeste trazê-lo, mas houve um imprevisto.
Dei meia volta e subi correndo as escadas. Tranquei a porta, girando a chave duas vezes. Fernandes correu atrás, começou a bater do outro lado, me xingava e rosnava feito louco. A porta estremecia e a ombreira parecia que iria saltar para fora.
Corri até os dormitórios, peguei lençóis e roupas e coloquei em frente da porta. Joguei óleo sobre o monte. Depois peguei uma lamparina para colocar fogo. As batidas na porta cessaram de repente. Houve um momento de silêncio, até que a voz de Celeste soou do outro lado. Num tom suave, ela falou:
─ Irmão Pedro, abra a porta, por favor. Deixe-me sair. Aqui está muito frio. O senhor também deve estar com frio. Vamos para a cama, nos esquentar. Vamos! Abra a porta.
Minhas forças começaram a falhar, a mente ficou nublada ouvindo aquela voz hipnotizante. Minhas pernas me fizeram caminhar para a porta e minha mão se ergueu para abri-la. Larguei a lamparina para torcer a chave. Recuperei os sentidos quando as labaredas chamuscaram minha mão. Recuei rápido e permaneci afastado, observando o fogo devorar as roupas e tomar conta da porta.
As chamas começaram a se espalhar pelo teto saturado de resíduos inflamáveis.
****
Parado diante da entrada do convento, eu assistia o prédio sendo consumido pelas chamas.
Lamentava o ocorrido, o triste destino das freiras. Comecei a andar. Algumas pessoas apareceram alertadas pela fumaça do incêndio, vinham ver o que havia acontecido. Uma mulher parou para me perguntar sobre as freiras. Olhei para ela e senti algo muito esquisito. Senti sede, mas não por água e sim por sangue.
Achei o pescoço daquela mulher cativante, tentador. Me deu vontade de morder e beber seu sangue. Com certeza fui mordido por Celeste, que me contaminou com o vírus vampíricos…
Fim