ENLACE MORTAL
“Qualquer ferida, menos a do coração;
qualquer malícia, menos a da mulher.”
(Eclesiástico 25, 13)
O monarca das trevas
Era um rei. O rei da baixa floresta. Tinha de tudo: uma grande casa, comida farta e criados que o serviam. Até que veio a ruína, sorrateira feito ferrugem que corrói o aço sem alarde.
Como todos de sua espécie, tinha vários pares: quatro de longas pernas, quatro de olhos e um de presas avantajadas. Em suma, era uma grande aranha negra.
Temível em seu meio, um predador nato. Ninguém se atrevia a passar por sua toca: a mera visão de seu trono era suficiente para afastar os mais valentes, como o louva-a-deus e o escorpião; até mesmo pequenos ratos e répteis receavam as catacumbas do rei das trevas.
Mas ele não se limitava à sua mansão subterrânea: criara teias que subiam até os céus, e os pequenos mosquitos que se aventuravam em direção à luz eram capturados, retorcendo-se em agonia até perderem as forças. Estocados na hedionda despensa do rei, esperavam para serem servidos em ocasião oportuna, às vezes ainda vivos e se debatendo quando no prato real.
A mão de ferro do monarca sombrio descia implacável sobre a cabeça dos rebeldes. Quem não prestasse tributo ou tentasse romper suas redes sofria as consequências: saindo ligeiro de seu palácio, saltava sobre o oponente, injetando-lhe o veneno asqueroso. A alma do pobre infeliz passava ao erário da noite em questão de segundos.
Os habitantes da floresta curvavam-se diante dele, pois o seu nome evocava sombras densas e intransponíveis. Até as gralhas-pretas desviavam o voo de seus domínios. Era o predador, o soberano das teias que a ninguém temia e a tudo subjugava.
Seu poder era imenso, mas não absoluto.
Eis que um dia, um outro ser igualmente poderoso se aventurou mata adentro e formou uma toca nos arrabaldes do feudo real. Em breve, a comida da cozinha do monarca passou a escassear, assim como os insetos que o reverenciavam.
O rei quis conhecer esse novo habitante do mundo inferior, que ameaçava seus domínios. Por isso, teve com a rainha das formigas, sua vassala e oráculo da floresta.
– Então, já sabe quem é o invasor? – Disse-lhe, oferecendo um cálice de mel, tributo oferecido pelas abelhas. A formiga rainha fitou-o com seus grandes olhos escuros, os quais guardavam os segredos da terra.
– Enviei alguns emissários, mas eles não retornaram... – Ela respondeu, suas antenas cabisbaixas: um fracasso que não lhe era comum.
A pelagem do rei eriçou. Era uma sensação desconhecida aquela, o medo. Por tempos imemoriais, ele reinara soberano e, agora, tinha esse adversário medonho que competia até mesmo com o formigueiro. Assim, decidiu ele próprio investigar.
Saindo de seus palácios, rapidamente se deslocou até as fronteiras do reino, os animais todos se afastando temerosos. O monarca das trevas havia deixado a câmara real, trazendo grande terror aos habitantes da floresta, desacostumados a vê-lo fora de sua reclusão. O que eles não sabiam era que o rei, pela primeira vez, estava aterrado por causa do inimigo desconhecido. Pensamentos terríveis saíam de seus recônditos: o que seria essa ameaça funesta?
Até que ele, enfim, chegou a um cavo tronco limoso, cujos boatos davam como o domicílio do apavorante inimigo. Dentro daquele antro, nada se podia ver, pois a treva era densa. O rei observou a escuridão e ela lhe retribuiu o olhar. Uma encarada mortal, maligna, que novamente arrepiou a sua pelagem.
– Olha só, o rei com medo do escuro? Quem diria! – Cantarolou um grilo próximo, irônico. O monarca fitou furioso aquele insolente. Sua majestade agora era contestada pelos insetos! Que arte era essa que o desafiava? Antes que pudesse reagir, o grilo pulou para longe; mas aquilo tinha sido o catalisador de um ódio visceral.
– O rei das trevas temeroso da escuridão... jamais! – Ele disse a si próprio, quando ousou pisar no interior da concavidade.
Mas, nesse momento, ouviu uma voz saída do mais profundo dos abismos:
– Será que o rei pode ter uma rainha?
Aquilo soou como música aos ouvidos do monarca, mas de um jeito tão abissal e quimérico que ele ergueu as patas dianteiras, num instinto primevo de proteção.
– Não tema, ó rei!
O timbre musical e profundo voltou a ser recitado, quando, revelando-se à parca penumbra que divisava os limites interiores do tronco, uma gigantesca aranha negra surgiu.
O monarca, de tão impressionado, recuou alguns passos, fulminando aquele corpo com assombro: ela era negra, mas de um negrume espesso, muito maior do que o seu. Contudo, em seu abdômen, havia uma grande circunferência vermelha, como um olho infernal que o observava soberbo e maquiavélico. Era hipnotizante, aquela da sua espécie; e grande, enorme, o dobro do tamanho do rei, que imediatamente se sentiu arrebatado. Não à toa roubara seu poder: toda a sua essência transpirava majestade e facilmente poderia ocupar o lado direito do trono, preenchendo o vazio que ele experimentava nas cavernas. E ela queria isso, ah, bem queria! Era como se dois oceanos escuros tivessem se fundido em um redemoinho de trevas. Na linguagem dos plebeus: amor à primeira vista.
Palavras não mais precisaram ser ditas. As duas aranhas negras caíram em um enlace medonho, a que os habitantes da floresta não ousavam lançar a visão, de tão nefasta. E lá permaneceram por dias no tronco limoso, em um namoro ignóbil do submundo.
Enfim, passada a cópula das trevas, o casal voltou-se aos palácios reais, e habitaram-nos sobejamente por gerações.
O lótus roxo
A floresta não era mais a mesma. O poder dos monarcas abismais era quase total, ninguém lhes fazia frente, e a escuridão avançava sobre todos os seus habitantes. Contudo, esse negrume também expandia seus tentáculos para o interior das almas, ocupando os espaços da vida, principal e paradoxalmente a do rei.
Nos recantos de sua mente, sentia as garras da dúvida crescerem. Sabia que já não reinava com a força de antes, pois agora repartia o poder; mas, ao olhar para a imponência da parceira, convencia-se de que, talvez, valesse a pena. “Ela é a razão de tudo”, dizia a si mesmo, embriagado, enquanto dobrava mais uma vez as patas em devoção:
– Minha deusa, o que posso fazer por ti?
– Traga-me um grande gafanhoto!
E assim, ele ia à sua despensa recolher o alimento real. Tornava-se paulatinamente um escravo de suas paixões, enredado pelas teias da monarca, habilmente tecidas nas cavidades de seu espírito.
O tempo passou. Os filhos estavam a caminho, e o ventre da rainha crescia tal qual o seu apetite. Suas exigências avultavam-se em audácia na mesma medida da servidão do outro. O rei, ainda absorto pela paixão desenfreada, não percebia em que armadilha caía.
Ele não mais reinava, pois estava muito atarefado satisfazendo os caprichos da esposa. Quem comandava o governo era a insólita imperatriz das sombras. E, quanto mais avançava essa crescente viciosa, também se intensificava a aversão da imperatriz àquele monarca que antes ela amara, mas que agora não passava de um servo.
Ampliavam-se os desafios à sua autoridade e o antigo rei era reduzido a um ser desprovido de autonomia. Aceitava as provocações todas, pensando vãmente que isso lhe ganharia novo respeito da esposa. Até que um dia, quando a prole estava para nascer, ela trouxe uma exigência das mais escabrosas, com um riso irônico no canto da mandíbula:
– Quero uma flor de lótus roxo para celebrar o nascimento de nossos filhos!
O marido, pela primeira vez, decidiu protestar contra essa nova cobrança: era um completo absurdo.
– Minha rainha, isso não posso cumprir. Todos sabem que o lótus roxo possui um veneno mortal que tolhe a vida de quem o toca!
– Não interessa! Existe prêmio maior do que esse para os nossos filhos? Todos haverão de tremer ante os reis que recolheram a flor da morte!
Ele, pensativo, retrucou:
– É impossível... Não posso trazer esse veneno para dentro do palácio!
– Faça isso ou te expulso daqui, rei frouxo!
Aquilo veio como uma seta no orgulho do monarca, mas, naquele momento, ele quase não se via como tal. Tinha a autoestima de um inseto insignificante, inteiramente domado pela déspota doméstica.
Submisso, saiu à caça do lótus roxo. Grandes foram as dificuldades para encontrar a planta peculiar, que só crescia nos úmidos pântanos ao sul do reino. Lá, os perigos eram enormes, pois a cobertura da floresta escasseava, de modo que o rei ficava desguarnecido contra os bichos grandes, como cururus e garças.
O solo era traiçoeiro e as sombras já não lhe ofereciam refúgio. Tudo ao redor parecia conspirar contra ele: o ribombar distante dos sapos era um presságio; as asas cortantes das libélulas, ameaças veladas. Ele, que antes dominava as trevas, agora parecia um estrangeiro no próprio império.
Açoitado pelas palavras da tirana, foi intrépido até os mais asquerosos lamaçais, onde enfim encontrou a flor da morte. Viu que seria difícil alcançá-la, pois o caule era alto e um beijo de suas pétalas lhe traria o fim.
Mas ele, então, arquitetou um plano: poderia revestir a planta com sua teia espessa, tal qual embrulho do presente perverso, desfazendo-o no retorno ao reino. Quando começava a envelopar as protuberâncias com sua rede, aproximou-se uma esperança, verde como a relva alta do pântano.
– Salve, ó grande rei! Seus feitos o precedem!
Ele hesitou ao ouvir tais palavras, pois não mais lembrava de seus tempos de glória, em que era temido e respeitado na floresta.
– Feitos que não passam de memórias! – Enfim disse, num grunhido cheio de rusga e ressentimento. – Veja a minha situação: só estou aqui, diante do lótus roxo, como agrado à minha esposa.
– Ora, mas não perdeu a majestade! – A esperança retrucou.
– Só no título. Na prática, sou um servo!
– Então foi enredado pela trama da aranha! Mas ainda não totalmente, pois tem consciência disso. Escute-me se for capaz: tome como nova esposa a Sabedoria, abandone suas posses e procure um novo caminho! Ainda há tempo!
Após o discurso, a esperança voou longe e o rei observou como ela se misturava feliz à luz solar que tanto lhe cegava, já que era acostumado às sombras. Nesse momento, um sopro de liberdade e vida atravessou-lhe as entranhas, afastando as teias há muito tecidas dentro de seus interiores.
“Não, não posso fazer isso”, ele pensou. “Agora, tenho filhos. Não posso simplesmente ir embora”. Esses pensamentos ressoaram fundo em seu ser, como se lutassem com a brisa vital que o invadia, numa contenda entre dois gigantes poderosos, mas invisíveis. E, no alto, a flor de lótus coroava a cena com suas pétalas tóxicas, ora indicando perigo, ora revelando a beleza que lhe era peculiar.
Até que um terceiro gigante entrou no ringue. Era o temor da matriarca, um verdadeiro colosso que pilhara as reservas de amor próprio do rei. Como lutar contra esse poderoso usurpador? Porém, a Sabedoria vinha vigorosa, lançando raios luminosos sobre os ciclopes sombrios, numa peleja épica que arrebentava as entranhas do monarca.
– Basta! – O rei grunhiu.
O monumento macabro
Os habitantes da floresta fitavam aquela cena com assombro, num parlamento de olhinhos arregalados. Lá estava o soberano das trevas, abatido, tropeçando em meio à vegetação com uma grande bolota de seda em suas costas, feito um mendigo com sua trouxa. O grilo, muito sagaz, logo entendeu:
– Eis aí o rei de coisa nenhuma! Batamos palmas ao grande monarca! – Tripudiou.
Mas o rei não respondeu. Estava exaurido e intoxicado pelos venenos que emanavam da planta. Ainda assim, conseguiu atravessar o reino e chegar à boca das cavernas. Lá contemplou, uma vez mais, a escuridão costumeira, que agora lhe parecia estranha e repugnante. Hesitou e o tempo transcorreu, os insetos e pássaros eram testemunhas atemorizadas. Até que ouviu uma voz chamando-o.
– Ó rei, não tenha medo...
Não saberia dizer de onde vinha. Das profundezas subterrâneas de seu palácio? Da floresta? De dentro dele próprio? Aquilo tudo era uma tortura: a indefinição, a rixa interna. Perdia a sanidade. De modo que, crispando as patas, reuniu todas as forças que ainda lhe restavam e ingressou no breu da gruta.
As ressonâncias profundas e trevosas haviam ganho a luta mortal, afastando a Sabedoria. O rei estava derrotado, pois sua vontade era débil e ele não empreendera tudo o que tinha para lidar com os gigantes sombrios. Sobrara um serviçal fraco e tolo que se prostrava diante do trono da matriarca das trevas, cada vez mais imensa e arrogante. Ao vê-lo do alto de sua coleção de olhos, ela soltou um esgar de nojo.
– Aqui está, minha rainha, o lótus, símbolo de meu sacrifício e lealdade... não mereço ao menos um olhar de estima?
As palavras saíram trêmulas, ecoando fracas pelas paredes da caverna fria. A resposta, porém, veio num sibilo de escárnio.
– Então, você voltou! E trouxe a flor tomada pela teia!
– Sim...
– Você estragou as pétalas! É um imprestável!
Ao ouvir aqueles dizeres que desciam como navalhas, o rei sentiu-se quebrado, como uma presa diante do predador. Sabia que fora apenas um joguete nas teias da esposa, que, em última análise, eram também as de suas próprias paixões. Ficava claro que ele era o único responsável e nunca sairia daquele inferno.
– Tudo bem! Já sei como decorar o meu palácio! – A rainha declarou, num ímpeto irônico e debochado. O pobre coitado inicialmente não compreendeu. Observava perdido a grande mancha vermelha no abdômen da matriarca, que lhe retribuía o olhar diretamente do fundo de algum precipício. Foi quando vislumbrou sua perdição.
Subitamente a monarca saltou sobre ele, fraco e indefeso por causa da exaustiva jornada. O corpanzil do monstro esmagou-o e, depois, introjetou o poderoso veneno. Em segundos, ele jazia paralisado, exceto pelas pernas chacoalhando em tremores obscenos, os quais denunciavam os últimos indícios de vida. Não demorou muito até que sua alma passasse para o Hades.
Depois, a horrenda criatura do submundo embalsamou o corpo do ex-marido com suas teias, colocando o cadáver numa hedionda sepultura logo à entrada do palácio. Agora era conhecida como a viúva negra, a imperatriz das sombras, e poucos ousavam questionar sua majestade, vacilantes que estavam ao observar o monumento macabro de seus portões.
“Não te deixes levar por tuas paixões
e refreia os teus desejos.
Se cedes ao desejo da paixão,
ela fará de ti objeto de alegria para teus inimigos.”
(Eclesiástico 18, 30-31)
Tema: fábulas de terror