O Décimo Primeiro Sigilo
“Dies Irae Dies Illa Solvet
Cosmos In Favilla Vocamus
Te Aeshma-Diva!”
⛧⛧⛧
Dimitri não conseguia mais ignorar os sinais. A cada ano que passava, a verdade parecia se desvelar como uma ferida pútrida escondida sob o véu do dogma. Ele sabia que sua fé, antes inabalável, estava agora corroída pelas dúvidas que martelavam sua mente. No entanto, ele nunca poderia imaginar que a chave para o enigma estava tão próxima—ali, nas ruínas de Teotihuacán, onde as pedras antigas sussurravam segredos que a Igreja havia deliberadamente ignorado.
Era uma tarde quente e úmida quando Dimitri recebeu a carta do Vaticano. Ele, um arqueólogo e cardeal respeitado, estava ali para investigar inscrições estranhas descobertas em uma pirâmide esquecida. Mas a carta mudaria o rumo de sua investigação. O conteúdo era breve, quase enigmático: "Assunto de extrema urgência. Relatório sobre exorcismo falho. Cidade do México. Não confie em ninguém."
Keila. O nome da possuída que ressoava em todas as páginas do dossiê. A moça que, de acordo com os testemunhos, era a porta de entrada para algo maior, mais sombrio. O padre Brites, que tentou exorcizá-la, falhou de maneira catastrófica. "Natureza anticósmica", diziam os rumores. Uma força que as preces comuns e os ritos sagrados não puderam conter.
Dimitri fechou os olhos e suspirou. "Isso vai além do que posso suportar?", pensou ele, enquanto sua mente vagava para o passado, até Lucy. A mulher que ele amava, mesmo sem jamais tê-la tocado novamente. A única que poderia compreendê-lo agora, talvez. Mas ele havia escolhido a fé, e ela, o mundo. Uma escolha que ele começava a questionar, à medida que os segredos se acumulavam como pedras ao redor de sua alma.
O caminho até a pequena cidade era árido, pontilhado por cactos e desertos. Dimitri se lembrava de suas expedições arqueológicas na região, mas algo naquela viagem parecia diferente. Algo no ar pesava como chumbo. "Este lugar está morto", sussurravam as vozes na mente de Dimitri, ecoando os escritos de Liber Azerate, o livro oculto que ele havia começado a traduzir em segredo.
Ao chegar à igreja onde o exorcismo havia falhado, o cheiro de incenso e morte ainda impregnava o local. As paredes estavam manchadas com símbolos que ele reconhecia de suas pesquisas mais recentes—símbolos antigos e perigosos, relacionados à Caos-Gnose, uma verdade que transcendia o cosmos e zombava da ordem divina.
"Padre Brites tentou expulsar um dos Deuses do Caos." — Pensou ele.
Dimitri parou de respirar por um momento ao se dar conta do que aquilo significava. O padre não havia enfrentado um demônio comum; ele havia enfrentado uma das 11 cabeças de Azerate. Um ser acausal, pertencente a um plano de existência além da compreensão humana, invocado pelos adeptos da Corrente 218. Um deus de destruição que não podia ser contido pelas armas de um clero que conhecia apenas a face benevolente de um criador... e não o horror do que havia além.
Dimitri sentiu um frio na espinha. Ele sabia que a verdade sobre Azerate havia sido deliberadamente apagada da história, preservada apenas por alguns poucos textos esparsos que escaparam à censura do Vaticano. O Décimo Primeiro Sigilo, esquecido por séculos, mantinha o equilíbrio precário entre a criação e o caos. E agora, ele estava prestes a se romper.
A igreja estava silenciosa, quase surreal. Dimitri andava pelos corredores com cautela, sentindo a presença de algo oculto nas sombras. Ele conhecia a sensação; já havia experimentado isso ao estudar antigas civilizações, mas desta vez, o terror era visceral. Ele parou diante do altar, onde a jovem Keila fora possuída. Na parede atrás do crucifixo, ele viu gravada uma inscrição em um idioma que poucos conheciam.
Era a língua de Azerate. Dimitri traduziu silenciosamente:
"Aquele que ousar romper o selo, libertará as 11 faces da destruição."
Foi então que ele entendeu o fracasso do exorcismo. A Igreja estava despreparada para lidar com forças que transcendiam sua própria cosmologia. As ferramentas de Deus, como ele sempre acreditara, eram ineficazes contra aquilo que vinha de fora da Criação.
Ele ouviu passos.
— Padre Dimitri? — uma voz suave interrompeu seus pensamentos.
Ele virou-se e deu de cara com uma mulher que ele reconheceu de imediato. Lucy.
— O que está fazendo aqui? — perguntou, incapaz de esconder o choque.
Lucy sorriu de uma maneira que fez o coração de Dimitri parar por um segundo.
— Acha que eu sou a mesma de antes? — perguntou ela, sua voz suave, mas carregada de uma sabedoria que parecia ultrapassar qualquer experiência terrena.
Dimitri ficou em silêncio, tentando processar o que estava acontecendo. Estaria delirando? Tendo uma visão? Como Lucy poderia estar ali? Ela era parte de um passado que ele sempre tentou, e falhou, esquecer.
— Há coisas que você não pode entender ainda, Dimitri — disse ela, aproximando-se com passos leves, quase flutuantes. — O Vaticano sabe muito mais do que revela. O sigilo que você está investigando... Azerate... não é apenas uma lenda. Ele é real, e está retornando.
Dimitri franziu a testa. — Como você sabe disso?
Lucy suspirou. — Porque eu sou parte disso. Sempre fui.
A revelação caiu sobre Dimitri como uma avalanche. Lucy, sua amada, era parte da Corrente 218? Sua fé, já abalada, agora pendia por um fio. Ele olhou para ela, tentando discernir se aquilo era verdade ou apenas mais uma ilusão diabólica.
Enquanto se desvanecia a aparição que tomara a forma de sua outrora amada Lucy, disse aumentando a dúvida, a brecha que se abrira em sua fé.
— Não precisa acreditar em mim — disse ela. — Mas sabe, lá no fundo, que tudo isso que você foi ensinado... as preces, os rituais... são mentiras. Criadas para manter as massas subjugadas. O verdadeiro Deus não é quem você pensa que é.
Dimitri cambaleou. Ele havia passado anos traduzindo textos antigos, em segredo, encontrando pistas que o levaram até Azerate, o dragão de onze cabeças. Mas ouvir isso de Lucy, de sua amada, era uma tortura.
— Você me deixou... para seguir a Igreja — continuou Lucy, sua voz agora melancólica. — Mas a verdade sempre esteve aqui. O cosmos é uma prisão, Dimitri. E Azerate é a chave para quebrar essas correntes.
O coração de Dimitri disparou. Ele sabia que ela estava certa. Toda a evidência apontava para isso, e ainda assim... ele não queria acreditar.
O Décimo Primeiro Sigilo pulsava em sua mente, uma espécie de código oculto que apenas ele podia decifrar. E quanto mais ele mergulhava nesse conhecimento proibido, mais ele via a farsa do mundo que o rodeava. Deus, como ele fora ensinado, não era o criador benevolente, mas uma entidade limitada ao nosso universo, uma figura de controle.
A verdade, a Caos-Gnose, revelava que o cosmos era uma anomalia, uma distorção da verdadeira realidade, e que Azerate, o Dragão, estava destinado a destruí-la. Era a única maneira de alcançar o estado acausal, a verdadeira liberdade.
Dimitri sentiu a loucura invadir sua mente, mas também a libertação. Ele estava no limiar entre dois mundos—o da fé e o da verdade, o da ordem e o do caos. Lucy sorriu novamente, agora com uma compaixão sombria, como se soubesse que ele tomaria a decisão correta.
— Agora você entende, Dimitri. Agora você vê.
Ele olhou para ela, sentindo a dualidade esmagadora da escolha que tinha diante de si. A Igreja, o mundo que ele conhecia, ou a verdade caótica, a Caos-Gnose, onde o próprio Deus seria destruído.
Dimitri estava sentado diante de um pesado altar de pedra, numa sala mal iluminada. A penumbra se misturava com o cheiro de incenso, criando um ambiente claustrofóbico. O livro de Azerate estava aberto à sua frente, suas páginas de pele humana, envelhecidas pelo tempo, irradiavam uma energia quase palpável. As palavras que ali jaziam estavam escritas num alfabeto antigo, codificado com símbolos que nenhum ser humano comum conseguiria decifrar. Mas Dimitri não era comum. Ele havia passado anos imerso nas sombras da arqueologia proibida, onde descobrira fragmentos de uma verdade esquecida.
Suas mãos tremiam levemente enquanto seus olhos percorriam as linhas de texto. Ele sabia que estava cruzando um limite. Era mais do que conhecimento oculto; aquilo era um abismo, uma porta para o caos. “Azerate...”, murmurou, sentindo o nome queimar em sua língua como um fogo gelado.
A imagem de Lucy enfim desvaneceu com um sorriso nos lábios, enquanto o observava pela última vez.
Enquanto lia, fragmentos do sigilo se formavam em sua mente, como peças de um quebra-cabeça antigo. Ele começava a entender. Azerate não era apenas uma entidade, mas um portal, uma força que conectava os mundos. E o sigilo? O sigilo era a chave. Uma chave mantida fora do alcance humano por uma sociedade secreta que, de alguma forma, havia se infiltrado até nos recônditos do Vaticano. Ali, escondidos à vista de todos, estavam guardiões silenciosos desse conhecimento.
Dimitri sentiu uma mistura de medo e fascínio. Como poderia uma igreja construída sobre a verdade de Deus manter um segredo tão obscuro? E o que isso dizia sobre o próprio Deus?
O toque da madeira gasta do crucifixo que ele trazia ao peito parecia, de repente, insuportavelmente pesado. Ele fechou os olhos, murmurando uma oração para encontrar alguma paz, mas, em vez disso, a escuridão lhe devolveu imagens de Lucy.
Lucy, a única mulher que ele amara. Seu rosto surgia em sua mente com uma clareza assustadora, como se estivesse ali, ao seu lado. Dimitri lembrou-se de suas viagens até a pequena cidade onde ela morava, a observando de longe, como um fantasma. Ela nunca soube, e ele nunca teve coragem de se aproximar. Como poderia, agora, quando estava tão longe de quem costumava ser? O fardo de seu amor não correspondido agora pesava tanto quanto o conhecimento que adquiria sobre o universo.
Dimitri abriu os olhos e voltou ao livro. A passagem seguinte descrevia um ritual antigo, destinado a trazer um dos 11 deuses anticósmicos à nossa realidade. A descrição do ritual era perturbadora, com sacrifícios humanos e sangue sendo usados para quebrar as barreiras entre o mundo material e o acausal. O nome do deus invocado não estava claro, mas Dimitri sentiu uma conexão. Keila. O exorcismo falho. Estaria ela possuída por essa entidade?
Ele sabia que precisava agir rapidamente. O Vaticano já havia enviado sua convocação, e os murmúrios entre os clérigos eram de que algo terrível havia acontecido no México. Os detalhes eram vagos, mas Dimitri sabia que as respostas estavam ligadas ao sigilo, à Corrente 218 e, mais do que tudo, ao que ele acabara de descobrir sobre Azerate.
Com o livro em mãos, ele se preparou para deixar a sala de pedra. O peso do conhecimento queimava em sua mente, mas ele precisava de respostas. Não apenas sobre Azerate, mas também sobre sua fé. E sobre Deus. Afinal, se Azerate e os deuses anticósmicos eram reais, o que isso dizia sobre o Criador? Seria o próprio Deus uma entidade menor, uma ilusão projetada para manter os humanos escravizados ao mundo material?
Ele caminhou rapidamente pelos corredores do mosteiro, sentindo a pressão de séculos de silêncio e segredo à sua volta. A igreja era um labirinto, não apenas físico, mas de almas. Quem mais sabia sobre Azerate? Quantos clérigos estavam cientes do sigilo, do caos que ele representava?
– Dimitri, precisamos conversar. – A voz fria de uma figura ecoou pelas sombras do corredor.
Dimitri se virou rapidamente, seus olhos arregalados ao reconhecer o homem que se aproximava. Era o padre Brites, mas algo estava terrivelmente errado. O rosto do sacerdote estava mais pálido que o habitual, quase translúcido, e um brilho espectral parecia envolver sua forma. Seus olhos, outrora cheios de vida, agora refletiam um vazio sombrio, como se pertencessem a alguém que já não estava mais entre os vivos.
Dimitri sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Brites e a jovem a quem exorcizara, Keila, haviam morrido no exorcismo ali mesmo, naquele local! Soubera das mortes ocorridas ali pelo telejornal. E, no entanto, ali estava ele, parado diante dele como se nunca tivesse partido. Era uma aparição.
– O Vaticano está em alerta. O exorcismo que fiz em Keila... foi um desastre, Dimitri. Há forças que não compreendemos. – A voz de Brites tinha um tom oco, quase como se viesse de algum lugar distante, e as palavras saíam com uma estranha hesitação, como se não pertencessem inteiramente ao momento presente.
Dimitri engoliu em seco. Ele sabia o que estava vendo. Sabia que Brites estava morto, mas ali estava o espírito do padre, inquieto, retornando do além para dar um aviso.
– Você acha que essas forças têm algo a ver com o sigilo? – Ele perguntou, a voz mal saindo de sua garganta seca.
Brites não respondeu de imediato. Um silêncio pesado caiu sobre o corredor, e quando ele finalmente falou, sua voz parecia carregada de uma gravidade ainda mais sombria.
– Há coisas que não devem ser ditas, nem mesmo pensadas. – Brites olhou ao redor, como se estivesse sendo observado por entidades invisíveis. Ele estava temeroso, como se, mesmo na morte, estivesse sob vigilância. – O que está acontecendo vai além da igreja. Além da nossa compreensão. Você precisa ser cauteloso!
Dimitri sentiu o peso dessas palavras, mas ao mesmo tempo, seu coração pulsava com perguntas que precisavam de respostas. Se Brites havia voltado do além para adverti-lo, isso significava que as forças que eles enfrentavam eram mais perigosas do que ele jamais imaginara.
– A Igreja está escondendo mais do que sabemos, Brites. – Dimitri respirou fundo, tentando manter a calma. – Há uma conspiração dentro dos próprios muros do Vaticano. Não podemos simplesmente ignorar isso.
O espírito de Brites deu um passo à frente, a tensão crescendo. Seu semblante pálido contrastava com a escuridão ao redor, e o ar em volta parecia gelar.
O silêncio era quase ensurdecedor.
– Você não sabe com o que está lidando. – A voz de Brites, agora quase um sussurro, parecia mais fantasmagórica do que antes. – Se continuar com isso, você será marcado. Perseguido, não apenas pela Igreja, mas por algo muito mais antigo. Algo que esteve aqui antes mesmo da primeira pedra do Vaticano ser colocada.
Dimitri sentiu o frio das palavras penetrar sua alma. Sabia que o padre estava morto, sabia que isso que via não era um homem, mas o que restava dele. Brites havia cruzado o limiar da vida para entregar essa advertência, e isso só confirmava que o perigo era real, mais real do que ele poderia suportar.
Enquanto o espírito de Brites recuava, desaparecendo lentamente nas sombras, Dimitri sentiu um peso invisível cair sobre seus ombros. As sombras ao redor pareciam se mover, como se vivas, e ele sabia que o tempo estava se esgotando. A Corrente 218 estava em movimento, e seus olhos agora estavam fixados nele.
Sua viagem ao México foi apenas o começo. O exorcismo falho, Keila, o sigilo... tudo estava interligado, e Dimitri estava no centro dessa teia de caos. E, no fundo de sua mente, uma voz sussurrava, suave e traiçoeira, como a serpente no Jardim do Éden: "Você está pronto para saber quem realmente é Deus?"
⛧⛧⛧
Enquanto o avião sobrevoava o México, Dimitri refletia sobre suas descobertas recentes. Resolveu retornar ao Vaticano e não revelar suas descobertas, por hora, mas investigar em segredo o quanto a Igreja sabia sobre a verdade, e porquê resolvera manter a humanidade nas trevas da ignorância, seria apenas por poder?! O livro de Azerate havia revelado muito, mas ele ainda sentia que mal arranhara a superfície. As visões de Lucy, o sigilo, os segredos que Brites – ou o que restava dele – insinuara... tudo estava levando-o a uma única conclusão: sua fé estava em ruínas. Deus, aquele ser em quem confiara toda a sua vida, poderia não ser o Criador que ele acreditava. E, pior ainda, o verdadeiro Deus poderia ser algo além de sua compreensão, algo vindo do caos, da escuridão primordial.
O vento sacudia o avião com uma violência que parecia ecoar o conflito interno de Dimitri. Ele sabia que sua jornada estava apenas começando, e que, ao fim dela, ele poderia não ser mais o mesmo homem.
A cabine do avião parecia diminuir ao redor de Dimitri, apertando não só seu corpo, mas também sua mente, comprimindo sua sanidade e suas emoções. Cada sacudida da aeronave intensificava o turbilhão dentro dele. Seus pensamentos se desdobravam em espirais caóticas, enquanto a realidade e o sonho se entrelaçavam. Ele sabia que algo profundo estava prestes a mudar, algo que destruiria os alicerces de sua existência e o faria mergulhar em águas desconhecidas.
O som monótono das turbinas começava a afastá-lo do presente. Seus olhos, pesados, se fecharam lentamente, enquanto o cansaço o arrastava para o abismo do sono. Foi então que tudo escureceu, e a visão começou.
No vazio infinito, Dimitri se viu flutuando, suspenso em um lugar sem tempo, onde o espaço se curvava e o silêncio absoluto ecoava em sua mente. De repente, uma figura emergiu da escuridão: uma sacerdotisa, flutuando diante dele. Não era uma mulher comum. Sua presença era imponente, quase esmagadora, e seus olhos... aqueles olhos o encaravam com uma profundidade que atravessava sua alma. Mas o mais perturbador era sua dualidade; a sacerdotisa possuía duas cabeças, ambas conhecidas e, ao mesmo tempo, estranhamente distorcidas. De um lado, o rosto de Lucy, do outro, o de Keila, duas mulheres que haviam marcado sua vida com cicatrizes profundas.
"Dimitri..." murmuraram ambas, suas vozes se entrelaçando em uma harmonia inquietante, ecoando no vazio. Ele tentou falar, mas sua voz foi sufocada pelo peso de sua própria confusão.
Então, em uníssono, as duas cabeças começaram a recitar, suas palavras carregadas de um poder sombrio que perfurava sua mente como um veneno adocicado.
“Eu clamo a ti, ó minha mãe sem nome, levante-me além das barreiras com tua silenciosa voz e com tuas invisíveis asas ascenda o meu espírito encarcerado! Abraça-me com tua absorvente e devoradora chama amorfa e faça-me eternamente um com ti! O meu desejo é meramente uma forma, o meu ódio é uma ilusão e o meu amor é só um sonho. Tu, e só tu, és a essência que afirma a minha Divina Chama Interna!”
Aquilo não parecia um sonho comum. Dimitri sentia-se puxado para mais fundo no vazio, como se a gravidade cósmica da sacerdotisa o envolvesse em um abraço maternal, mas ao mesmo tempo devorador. Era como se cada palavra da litania estivesse arrancando pedaços de sua identidade, de sua humanidade, transformando-o em algo novo, algo que ele ainda não compreendia completamente.
"Eu clamo-lhe no silêncio que rompe os grilhões dos meus pensamentos, e com os olhos fechados contemplo tua invisível beleza! Todas as palavras diminuem teu poder, todas as emoções levam-me para longe do teu caminho, e todos os pensamentos negam a tua verdade!”
O calor que irradiava da sacerdotisa queimava sua alma, mas ele não resistia. Dimitri queria ser consumido por aquilo, aceitando a dor, aceitando a perda de quem ele pensava ser. Ele sabia que, para alcançar o que estava além, precisava se desfazer de tudo que o prendia à antiga realidade.
“Portanto eu lanço-me sem medo na escuridão do desconhecido, e deixo a tua chama amorfa que queima em mim, incendiar-me e elevar-me para o além que é o teu eterno reino! Tu és o tudo que é nada, Tu és o tudo que eu quero ser!”
O vazio ao seu redor começou a se agitar como se respondesse ao chamado. Dimitri podia sentir cada célula de seu corpo vibrar ao som da litania. A sacerdotisa estendeu os braços, e ele foi tomado pela chama amorfa que a cercava. Era uma sensação de queimação e êxtase, dor e elevação. Ele estava deixando de ser o que era para se tornar parte do todo, para se fundir ao Caos.
“Teu silêncio soa como um trovão e traz para a vida a Chama Negra do meu espírito. Tua ausência abriu meus olhos para a angústia sem sentido que é toda a vida. Tu és um, Tu és tudo, tu não és nada, e somente em ti posso eu encontrar a eterna paz!”
No auge do delírio, Dimitri gritou. Não de dor, mas de libertação. As palavras finais da litania o envolveram como um manto, enquanto ele sentia seu espírito se dissolver e se elevar ao mesmo tempo, preenchido pela certeza de que estava renascendo em algo além do humano.
“Tu és o tudo que é nada, Tu és o tudo que eu quero ser! Tu és o Caos que está além de tudo! Tu és o Caos que tudo deve ser! Tu és a Caosofia, o conhecimento e sabedoria que tornará o meu espírito livre! Tu és unicamente o que foi, e o que sempre há de ser!”
Dimitri acordou com um sobressalto, seu corpo suado e tremendo. O avião tocou o solo, e a realidade se impôs de volta com força, mas ele sabia que algo havia mudado. Aquilo não fora um sonho comum, não era algo que ele pudesse simplesmente ignorar. Olhou ao redor, os passageiros estavam alheios à sua transformação interna. Ele era uma nova pessoa, um homem com um propósito que, até aquele momento, estava além de sua compreensão.
Ao sair do avião, sentiu o peso do pentagrama partido pendurado em seu pescoço, o símbolo dos proscritos. Ele sabia que o caminho à frente estava cheio de perigos, e não demoraria muito para que o caos o engolisse de vez.
No saguão do aeroporto, Dora o aguardava. Seus olhos negros e sedutores o analisaram de cima a baixo, como uma predadora que observava sua presa. "Você sentiu, não é?" Ela perguntou, sua voz doce como veneno.
"Sim," ele respondeu, sua voz rouca e carregada de cansaço. "Eu senti."
Dora sorriu. "O caminho não tem volta. Agora você faz parte do Caos. A Igreja enviou seus cães, mas não se preocupe, Jano está cuidando deles. Nosso próximo passo é profundo, Dimitri. O pentagrama que você usa te marca como um proscrito, um renegado aos olhos do mundo."
Dimitri respirou fundo, sentindo o peso de cada palavra. Ele sabia que sua vida nunca mais seria a mesma, mas, no fundo, isso o excitava. A perspectiva de se perder no caos, de deixar para trás as amarras da vida comum, o fascinava de uma maneira que ele jamais imaginaria. Seu sonho durante o voo, na realidade, foi uma iniciação aos planos internos da Corrente 218.
E, com um último olhar para trás, ele seguiu Dora, pronto para enfrentar o abismo que o aguardava.
(Prelúdio ao Universo Negro de L. Mandrake).
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