Quando faísca virou fogo. - CLTS 29

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Antes de entrarmos no caso em si, gostaria de mostrar como as pecinhas foram, uma a uma, caindo e derrubando umas as outras, até chegar ao ponto em questão. Caíque, de 14 anos, caminhava pelas ruas guiado por Maicon, seu padrinho. Tenham em mente que o menino estava numa ansiedade daquelas, se pudesse sairia dando pulos de animação. O motivo? Seria batizado.

As vielas do Conjunto Palmeiras são embrutecidas: areia batida misturada com blocos de pedra disformes; há também a lama, o mato, os entulhos. Maicon ficou a semana toda pilhando o garoto: “Você vai ver se sua vida não vai mudar”. Quem não se animaria? Ser batizado, o grande desejo. Caíque viveu essas preliminares como quem recebe a promessa do céu.

Maicon parou em frente a uma casa, ficava bem no finalzinho duma travessa, e deu algumas batidas. O portão foi aberto, lá dentro mal havia iluminação, e o menino viu a figura de um homem. Recebeu a permissão para entrar. Quando a visão se acostumou à escuridão, percebeu que lá havia mais rapazes de sua idade. Seria um batismo coletivo, então? Algo grande, de ficar na memória. Pouco a pouco os mais velhos foram chegando, a cerimônia estava para começar. Os sacerdotes com seus cordões, ostentando grandes crucifixos de ouro ou de prata no meio do peito, os anéis brilhantes, reluzâncias de todos os tipos acesas apenas pelas velas.

Um a um, os garotos foram apresentados, com seus devidos padrinhos; diziam o nome completo, idade, filiação etc., depois disso recebiam um nome novo, novos parentes… nova vida. Diabinho, Mirim, Pica-Pau… Caíque recebeu o vulgo Faísca. Naquele fim de tarde, cerca de oito rapazes vestiram a camisa. Os mais novos membros da Guardiões do Estado. O ano era 2017, dezembro.

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Você pode se perguntar o significado dos apelidos. Ora, não pense que da noite pro dia alguém simplesmente se torna faccionado, há sempre um estágio, uma observação, para saber se o candidato tem o devido merecimento. Na GDE, os padrinhos analisam a capacidade do candidato em agir em nome do crime. Diabinho, por exemplo, recebeu esse vulgo porque sua mãe vivia lhe chamando de demônio, que tinha vindo do inferno para atrapalhar ela… também os vacilões na rua; Mirim assaltava desde os dez anos e por aí vai. Faísca, antigamente Caíque, recebeu o nome porque no começo do ano de 2017 mostrou seu potencial quando acendeu o isqueiro no álcool derramado dentro do ônibus — havia ainda umas sete pessoas dentro quando o fogo subiu com a fome e suas forças.

Como recém batizado, finalmente, teve direito ao primeiro revólver, além de ganhar o primeiro salário: mil por semana. Se fizesse tudo direitinho, o faz-me-rir aumentaria. Agora tinha sua corrente, a 38 sempre na cintura, grana… Mas o principal: os irmãos. Otário é quem é funcionário e responde a patrão, tem apenas colegas, Faísca não, ele tinha os amigos, uma família. Todo final de semana eles estavam abraçados, apontando as armas para cima, gritando “É TUDO TRÊS! PAZ, JUSTIÇA, LIBERDADE!”. E não posso deixar de falar da adrenalina: a ordem vinha de Itaitinga, na CPPL II: fulano de tal rasgou a camisa, quem matar recebe cinco mil; tal cumade traiu, arranca os cabelos e dá uma sova; invadam a biqueira no lugar tal. E eles iam. Na boca da noite, cara e coragem, latas de spray riscando “CV”, “FDN”, os pilantras, e colocando “745 PASSA NADA”, isso depois de afundar o gatilho, xingar a mãe sabe lá de quem do outro lado, que descontava com tiros que vinham tinindo. Voltavam para casa no mesmo Siena com que tinham chegado, e achando graça.

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As coisas iam bem para Faísca, mas, jovem demais ainda, certas coisas ainda eram difíceis de se lidar. Quem há pouco tempo apanhava porque comia o que estava guardado para o dia seguinte, não pode, de maneira alguma, suportar o peso do poder nas mãos, porque falta poder de si; eles não percebem, mas a pistola nada mais é que o símbolo da própria fraqueza. E foi o seguinte: um moço, lá do conjunto mesmo, mas sem o muito costume de sair de casa, passando, se deparou com Faísca bem na esquina que dava acesso a uma das ruas na qual estava um ponto de drogas. Faísca com aquele jeitão marrento, deixando claro que tinha um revólver, encarando todos, acabou por amendrontar, mesmo sem falar nada, o rapaz. Veja… este olhou de um jeito tão estranho que Faísca não conseguiu discernir: era medo, era nojo, era o quê? Raiva. O cara deu mais alguns passos, e quando já estava de costas recebeu um disparo. Caiu. Quando a ambulância chegou, ele já não se mexia. Deu polícia, óbvio, também reportagem na Verdes Mares; aquele problemão todo — com as viaturas não dando sossego, cerca de 20 kg de maconha foram apreendidos. De quem era a culpa?

Ah, o crime pune. A Sintonia Final, STF, soube da ocasião e Faísca foi chamado. Uma punição exemplar, mas claro que não podiam matar alguém com tanto potencial, nem arrancar dedos ou coisa assim, que daria efeito semelhante. O garoto apanhou até camalear. Quem teve de fazer isso foi seu padrinho Maicon. Claro que Faísca ficou alguns dias pensando no que aconteceu e algum devaneio sobre não ter disso no CV passou pela sua mente, porém ele não era traíra, pouco a pouco foi aceitando os fundamentos e percebeu o tamanho do vacilo. Queria porque queria se redimir. E a oportunidade veio. Mal o ano tinha virado, era 2018, e vendo que o pivete queria mostrar serviço, deram a ele um especial: havia um lugar em que se reuniam os pilantras do CV, lá perto do Barroso, sendo que de lá também é que eles vinham e faziam algum estrago na Babilônia ou por perto, regiões da GDE. Queriam mostrar que quem é Tudo 3 não tem medo.

Era muito simples, iriam alguns irmãos até esse lugar e matariam o quanto possível, mas preferencialmente as mulheres. Faísca topou na hora, era a chance de fazer seu nome novamente.

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Pouco antes da meia-noite, Dona Terezinha viu através da janelinha sair da travessa um Siena preto; lá ia Faísca, junto de outros irmãos, todos de preto, como policiais. A rota deveria passar pela comunidade da Rosalina, onde um Golf branco estaria esperando. Só o pente de bala do Faísca era maior que seu antebraço, e iam chegar metralhando mesmo. Chegando no Barroso, quase entrando nas Cajazeiras, o movimento era ir seco, para não dar brecha. Em questão de minutos viram a placa da rua Madre Tereza de Calcutá, o pancadão nas alturas. Mal abriram as portas e já foram correndo. Os da rua, a vida reduzida àqueles segundos, vendo os vultos com braços estendidos, avançando, fumaça de destruição. Faísca queria descarregar o pente lá dentro, porque do lado de fora quem estava já foi virando sangue, começando por um vendedor de pipoca, tinha 55 e o apelido era Marrom; quem matou foi Gaspar, que, quando entrou, matou mais 4, só mulher. Passado o portão, era aquele povo todo reunido, tudo CV, sentou o dedo e a primeira que matou foi uma das putas dos pilantras. Pasmem, muitos não tinham percebido o que acontecia, bêbados ou drogados, coisa do tipo, e a música alta.

Então, começou a gritaria e aquela confusão. Parecia um formigueiro quando se joga água ou veneno, todas desnorteadas topando umas nas outras. E o tapete vermelho para os pivetes, virado espelho, refletindo o brilho das tantas estrelas-cadentes rasgando o céu. Pisavam nos corpos caídos e avisavam: “Eu vi um se escondendo dentro do freezer!”, “Correram pro banheiro!”. Pra quê confirmar a informação? Metiam bala pra varar, que nem quando Faísca entrou num dos banheiros e atirou na porta, viu só o melaço vermelho escorrendo de lá. Fodam-se eles. Uma mulher no chão, ainda viva, mas baleada no ombro, disse, seja lá pra quem, que “parasse, já chega, pelo amor de Deus!”, mas tinham de terminar o serviço. No IML, constaram ela ter recebido quinze projéteis.

Quando perceberam que os tiros não recebiam mais respostas, correram para os veículos e vazaram. Imaginem: dezenas de viaturas, rabecões, SAMU, aquele luzeiro todo, e as pessoas nos portões, outras segurando os cadáveres, e outras, nos áudios, convocando reunião de emergência, preparando o “salve” pra vingança. Mais tarde, Robin Hood foi quem tacou fogo num dos carros; ofereceram uns cinquenta reais pelo serviço, simplesmente aproveitaram que ele tava moscando no meio da rua, sequer tinha participado.

Faísca e os demais chegaram sem um único arranhão. Dona Terezinha sequer pregou os olhos depois que viram eles saindo, já imaginando coisa ruim, passou a noite toda rezando a ponto de conseguir ver a chegada; lá estava ela emoldurada no vidro, vendo tudo como fantasma, e pedindo misericórdia pelo que ela nem sabia ter acontecido. E o que aconteceu? A maior chacina do estado. O Forró do Gago, conhecido pelas festas noturnas, e também pelo patrocínio do Comando Vermelho, naquela noite virou cemitério; hoje em dia é uma igreja, mas o silêncio sempre sopra na rua Madre Tereza.

Foi um escândalo para o governo, e era ano de eleição. O senhor Camilo Santana, apesar de insistir estar tudo sob controle, precisava dar uma resposta. Em alguns dias, viaturas pararam na frente de certas casas, e foram presos Biel, Gaspar, outros envolvidos… foi como peças de dominó caindo. A pergunta que pairava era: como eles sabiam? Como, tão rapidamente, foram bater certinho onde saiu o cortejo da morte? Mais policiamento, mais prejuízo. Os chefes estavam putos, e estava óbvio que havia algum cagueta pelas áreas. Restava saber quem. O Conselho ordenou toque de recolher, as pichações “ao entrar, tire o capacete, baixe os vidros…” foram espalhadas, quem era de fora precisava explicar de onde vinha. Uma verdadeira força-tarefa, mas ainda nenhuma resposta, o que indignava mais os maiorais. Isso tudo, em tão pouco tempo, queimou um pouco o filme de Faísca, porque o fato dele ter participado da chacina, e matado vários, não teve lá tanta atenção, todos tentavam conter os danos. Ele, porém, se lembrou daquela visagem quando o carro dobrou a esquina. Era mais uma oportunidade, uma cajadada só.

Afirmou bem, “que eu sei quem foi!”. E deu o dito “foi aquela véia…”. Ah, não precisavam de certeza. Primeiro o recado, que o próprio Faísca deixou marcado: “24 horas pra sair, si não agente mete fogo”. Coitada da dona Terezinha, era viúva, e a filha tinha se mudado para o Rio de Janeiro, conseguiu uma bolsa de estudos e mal tinha tempo para uma ligação. Ela não tinha ninguém, sabe? E mesmo que tivesse… O que foi que sentiu quando, de manhãzinha, ia saindo pra comprar o pão e viu aquele aviso em sua casa? Meu Deus, a vida era tão difícil, passava o dia inteiro sem falar com mais ninguém que não fosse Deus, e esperava muito, esperando, quieta, a resposta dele, tão esperada. Aquele aviso exigia uma força que ela perdera há muito tempo. Voltou para dentro, se sentou, pôs os cotovelos em cima das coxas e pousou a cabeça nas mãos, imóvel assim, por horas, olhando para o nada. Minha gente, tinha pelo menos quatro dias que o telefone dela não fazia ligações, não conseguira pagar a conta da operadora.

Faísca conseguiu de volta sua força, até com algum prestígio maior, já que o estado estava fazendo a limpa com Civil, Militar, até Força Nacional. Recebeu de volta seu revólver, e ganhou mais um outro. Tinha tudo novamente, e queria mais. Queria ser um desses da Sintonia, não os que ficam no presídio, mas o que têm apartamentos na Beira-Mar, cinco, dez carros na garagem, ou mesmo um helicóptero, os dedos brilhando com os anéis. Era isso que faltava, mas não reclamava, porque mesmo não tendo isso naquele momento, tinha seus irmãos. Faísca queria mais, também, mais e mais, ser cada vez mais amado por eles, e para isso só provando seu valor.

Já tinha se passado um dia, Terezinha não dormiu, suas olheiras haviam piorado. Tinha o olhar pro tão fundo e a pele ao redor tão escurecida, além da magreza, que havia quem fizesse piada, chamando-lha de “caveira”. A senhora não moveu nada da casa. Você pode não entendê-la. Mova você o que tiver de mover. O mundo é movente até um certo ponto. Existem as margens. Passou a noite toda naquela mesma posição, nem um suspiro. Não pense, também, que algum pensamento alcançou a sua mente. Você já viu uma daquelas estátuas de cemitério? Não podia ligar pra filha, também não tinha como saber se ela atenderia. Como reagiria dona Terezinha ao saber que a filha vinha juntando algum dinheirinho para bancar a viagem da mãe para o dia da formatura?

O dia ainda não vestira a claridade, poucas portas haviam sido abertas até então. O momento certo para que todos despertassem da melhor maneira possível. O salve já tava dado, todo mundo sabe qual o remédio pra cabueta, ainda mais se fosse formiguinha. A verdade é que Terezinha vinha sendo tolerada até demais ali, no Palmeiras, levando em consideração que vinha da Messejana, o que significava ela ser do CV, mesmo que nunca tenha se envolvido. Se mudou para o Jangurussu porque no outro bairro o aluguel aumentava a cada ano, uma covardia. Faísca tinha acordado bem cedo, isso porque Maicon o sacudiu, o garoto não morava mais junto à mãe. O padrinho falou que tinha conseguido tudo, mas o restante era com ele.

Faísca pôs os pés na rua, altivo, com um tamanho que não era o dele, sabendo que dali em diante a coisa seria outra, talvez até fosse rebatizado, porque qual faísca não quer se tornar fogo? Cada passo o aproximava mais da casa de Terezinha. Pensou primeiro em simplesmente atear fogo com ela dentro, mas chamaria os bombeiros, talvez imprensa, além de que o lugar desocupado pudesse se tornar seu novo lar, só seu. Estava começando a usar mais a cabeça, e gostou disso, para ser um torre tinha que saber das coisas.

Por algum impulso falho, fechou os punhos e quase ia batendo à porta, mas retomou a consciência de quem era, e deu um soco. A porta sequer estava trancada, bastava virar a maçaneta. Quando entrou, apenas aquele escuro mal iluminado pela luz vindo de uma telha quebrada. Chegou a repensar se queria aquela casa, de tão acabada, nem reboco tinha.

Demorou um pouco até a visão se acostumar, mas viu a senhora, sentada, calada. Foi o tempo em que ela tirou as mãos do rosto e virou-se para a porta, com os olhos esbugalhados, o rosto surpreso, como de quem desperta de um pesadelo e percebe que ele continua.

Ela viu, ambos à espera, o menino e o pneu.

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Tema: Vizinhos suspeitos.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 02/11/2024
Reeditado em 02/11/2024
Código do texto: T8187577
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