- Pode ter certeza, minha filhinha, a mãe fará a melhor festinha para você este ano! Já estaremos na casa nova e vamos chamar vários novos amiguinhos para brincar com você!

 

 

- A senhora vai morar sozinha aqui?
- Sim.
- Mas, há pouco, me falou sobre uma festinha de criança?
- Sim, para minha filha, será no domingo à tarde, algum problema?
- Não, não, até estarei na praia ainda. Ela mora com o pai?
- É, não mora comigo. Sabe como é...

 

 

     A dona Ana chegou da praia à noitinha, tinha ido visitar seus filhos. Os vestígios da festinha estavam por toda a parte, balões coloridos, papel de bala, saquinhos de doces... Dona Ana desceu as escadas a fim de conhecer a filhinha da nova inquilina, mas ela não estava mais, já tinha ido embora. 

 

     No dia seguinte, Dona Ana foi fazer uma limpeza nos porões, um era seu estoque de lãs e tecidos, o outro estava vazio. No instante de entrar no segundo porão, Paula saiu de sua kitnet para saber o que ela estava fazendo. 

- Dona Ana, deixa que eu limpo aí, não se preocupa!
- Ah, eu estou acostumada. Tem um saco de lixo aqui, deixa eu ver...
- Não! É uma coisa que eu guardei aí, não se preocupa que não é lixo algum. 

Dona Ana, então, subiu para a sua casa e foi dar conta do almoço. Seria um dia cheio de trabalho, tinha uma encomenda grande de meias de tricô para entregar. Eram umas quatro horas da tarde, dona Ana escutou passinhos sob sua janela, logo em seguida risadinhas de criança. Ficou curiosa e foi até a inquilina. 

- Paula, sua menina está aí?
- Oi, dona Ana, não está não, por quê?
- Ouvi barulhinhos de criança... Queria conhecê-la...
- Ah, quando ela vier eu aviso a senhora. 

     Voltando ao trabalho, dona Ana recuperou sua concentração, mas ainda de tempo em tempo pensava em ouvir a criança como se ela estivesse brincando pelo pátio. Seus filhos há muito já eram crescidos, já eram casados, mas ainda não haviam lhe dado netos. Sonhava em ouvir as brincadeiras de crianças pelo seu pátio. 

 

     No outro dia, acordou ainda com a mesma impressão de ouvir as risadinhas. Mas afastou os pensamentos colocando como meta falar aos filhos que precisava urgentemente de netos. 
À tardinha, escutou algo vindo do segundo porão, como algo que tivesse caído e pensou ter ouvido choro infantil. Saiu às pressas e, logo, encontrou Paula no pátio. 

-O que foi isso, Paula? Ouvi um barulho estranho, você está bem?
- Sim, estou. Não ouvi barulho algum...
- Devo estar ficando caduca. A cada hora escuto um barulho diferente de algo que não existe! 
- A senhora deve estar passando muitas horas sozinha...
- Pode ser! Mas não tenho o que fazer quanto a isso, trabalho em casa com meus tricôs e costuras e não tenho mais idade para trabalhar fora. 
- Mas faça um intervalo no seu dia e saia para dar uma volta ou venha tomar um café comigo. 
- Pode ser que isso melhore. 

     E assim Dona Ana voltou ao seus afazeres, mas virava e mexia ouvia risadinhas ou passinhos delicados. 
     Quando ela estava prestes a atingir a encomenda das meias, recebeu uma ligação cancelando-a. Menos mal que o cliente pagou a entrada. Mas vou ter de vender todas as peças sozinha! Isso será difícil. Pensou em descer e falar com a inquilina para ver se ela não a ajudava com isso, quando novamente o telefone tocou. Outro cancelamento de encomenda, agora eram os aventais! Menos mal que ainda não tinham sido bordados... Mas, e agora?
     Com o cancelamento dessas duas encomendas grandes, dona Ana perdeu de ganhar muito dinheiro e ficou com muitas peças para tentar vender. Foi muito tempo perdido! Desistiu de descer na inquilina e foi dar um tempo pra cabeça. Adormeceu em sua cama instanteamente. De repente, ouviu passos em seu quarto e acordou assustada, pareciam passos de gente grande! Devo estar maluca mesmo. 
     Levantou-se e foi passar café, surpreendeu-se quando a cafeteira, que antes estava fora da tomada, não quis ligar. Experimentou outra tomada e nada. Que coisa! Pôs água para esquentar na chaleira e preparou o coador. Ao inclinar a chaleira para derramar a água, derrubou tudo sobre si. Menos mal que a água não estava fervendo. Fez a maior sujeira. Após limpar, foi tomar banho para poder trocar de roupas. Enquanto tomava banho, notou que ao redor da lâmpada estava crescendo um mofo que não tinha antes... Mais essa agora, sem dinheiro e com problemas com o mofo! Será que tem telha quebrada? 
     Logo, preparou a janta e foi se aquietar. Mas tinha algo de estranho no ar. Dona Ana pensou muito em Antônio, seu marido, que, se estivesse ali, já teria solucionado o problema da cafeteira e, no amanhã, já subiria ao telhado para verificar o problema do mofo. Sentiu seus olhos encherem de lágrimas e uma mágoa invadiu seu coração.      Resolveu ligar para a filha que a esta hora já deveria estar em casa. 

- Nossa, mãe! Que tanto aconteceu hoje, heim? Depois eu que acho coisa demais. Eu já iria atrás de um pastor, um pai de santo, um padre que seja! Uma vez, uma amiga minha passou uns apuros assim, com suas encomendas, o problema todo foi a inveja que sua prima sentiu por toda a sua prosperidade. Vai saber!

     Dona Ana dormiu logo depois da ligação. Foi uma noite complexa. Acordou se sentindo muito mal na madrugada, parecia que estava com uma mágoa maior que todas as outras somadas juntas. Levantou para tomar um copo d'água. Ao tomar a água, foi enxaguar o copo e deu com ele na quina da pia. Mas que coisa! Ah! Juntou os cacos e os colocou num saco de papel que havia guardado na fruteira, ajeitou-o e pôs no lixo. Voltou para o quarto e dormiu mais umas duas horas e acordou desperta ainda antes do sol raiar. Foi ao banheiro e logo percebeu uma mancha roxa em sua perna esquerda. Doía. Mas não se lembrava de ter se machucado no dia anterior. 
     Tomou o café da manhã e foi para o pátio regar as plantas. A arruda estava murchando. Ixi, a Amanda deve ter razão! Mas de onde deve estar vindo tanta inveja. Vou ligar pra Tetê e ver o que ela acha. 

- Tenho uma pessoa sim, ele já me ajudou algumas vezes. Precisa ligar pra ele e conversar, ver o que ele te diz. 

Sem demora, dona Ana ligou para Everaldo, um pai de santo. Tinha medo dessas coisas porque não entendia nada. 

- A senhora pode vir hoje às quatro da tarde? Preciso jogar os búzios para ver o que pode estar causando isso tudo. Porque se eu não agir na causa, logo o problema vai voltar. 

     Às 15h, dona Ana estava prestes a sair de casa quando a inquilina chegou. Ela comentou com a Paula se ela também não estava tendo problemas estranhos, mas Paula se mostrou incrédula. Porém, mais um cancelamento: Paula anunciou que iria se mudar novamente porque havia conseguido um emprego na cidade ao lado, mas que não receberia o valor das passagens. Dona Ana, já com o horário mais apertado, lamentou, mas seguiu seu rumo. Ao descer do ônibus, virou o pé e quase que o torceu. Ficou dolorido a ponto de chegar mancando na casa de Everaldo. 

- Tudo isso que a senhora está me falando começou há uma semana? Hummm, mas o que mais de diferente aconteceu: alguma visita, alguma entrega suspeita?
- Ah, no meu terreno tem duas kitnets nos fundos que eu alugo. Uma delas foi alugada para uma moça, sozinha. 
- Hummm, mas aqui diz que o problema veio com essa moça. O que ela te disse hoje?
- Ela disse que vai se mudar de novo nessa semana porque arrumou um emprego em outra cidade. 
- Então, vamos deixar ela se mudar e aí eu vou lá fazer uma limpeza. Aqui mostra que ela já está indo. 

Dona Ana chegou em casa e já se deparou com os móveis e algumas caixas da vizinha em sua garagem. Nossa! Que rapidez! 

- É que eu começo amanhã de tarde no novo emprego. 
- Então, boa sorte! Pena que não deu tempo para eu conhecer sua filhinha... Qual é o nome dela mesmo?
- Cíntia. 
- Deixa um beijo pra Cíntia, uma hora nos encontraremos!

     À noite, dona Ana sentiu uns calafrios, achou que estava ficando gripada, os ventos do outono já estavam esfriando. Resolveu ligar para Everaldo para contar que a inquilina já deixara a casa. Sua visita ficou agendada para dali três dias, era impossível ir antes. Dona Ana foi fazer a janta e percebeu que tinha pouco óleo para fritar seus filés de peixe, mas, com economia e paciência, conseguiria fritá-los todos. Enquanto a frigideira aquecia com o óleo, dona Ana se assustou com uma sombra que parecia alguém entrando em sua cozinha e bateu com o cotovelo no cabo da frigideira derramando o óleo sobre o fogo fazendo uma chama alta e perigosa. Correu, molhou um pano e jogou sobre a labareda, desligou o gás. Agora que não vai mais ter filé, desanimou. Aqueceu o arroz e o feijão no micro-ondas e cozinhou dois ovos. Ajeitou a bagunça toda e foi dormir. Nesta noite, não conesguiu dormir, quando ia pegar no sono mais profundo acordava com barulhos estranhos no pátio. Ligou para um vizinho e pediu que viesse verificar, pois poderia ser alguém que viu a mudança da inquilina sair e percebeu que ela estaria sozinha na casa novamente. Mas não tinha ninguém. Mesmo assim, não conseguiu dormir. Ouvia choro de criança vindo dos fundos, mas sabia que estava delirando. 
     

 

     E assim seguiram dois dias. Dona Ana resolveu ir limpar aquele outro porão. Pois se a inquilina estava usando, pode ter deixado algum lixo lá. Acendeu a lanterna e dito e feito! Lá estava o tal saco preto que ela não deixou dona Ana mexer! Arrastou o saco até a garagem, mas achou um peso estranho e resolveu abri-lo: Meu Deus! Dona Ana balançou das pernas... Entrou correndo e ligou para a polícia, ligou para os filhos, para o senhor Everaldo. Suava frio e mal se aguentava nas pernas até que chegasse alguém. 
     Ainda com vestidinho, sapatinho e tirarinha... era tão pequenininha! Lá estava o corpo decomposto de Cíntia! 
A ex-inquilina foi chamada ao local. Ela havia esquecido o pacote, viria buscá-lo no fim de semana... Ela tinha licença para estar com ele, ela iria levá-lo para sua terra natal assim que tivesse dinheiro. 

Everaldo e alguns filhos de santo chegaram assim que a polícia levou Paula e o corpo à sua casa. Dona Ana suava frio ao recontar a história para que todos entendessesm como se isso fosse amenizar seu desespero. 
Um dos médiuns, ao transitar limpando os espaços, viu a alma da meninha pedindo a mãe. No mesmo momento, eis que surgiu um espírito de luz que se abaixou e a envolveu em sua capa prometendo-lhe levar a uma mãezinha que agora cuidaria dela. Everaldo deu conta dos outros que ali se amontoaram em busca de energia. 

 

     No outro dia, o telefone tocou. Dona Ana tinha novas encomendas!!!! 

Marília Francisco
Enviado por Marília Francisco em 31/10/2024
Código do texto: T8186726
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