Aquilo que se Perde
Há uns dois meses eu deixei cair um dos dedos. Não sei, só amoleceu como dentes de leite e se soltou quando tentei pegar um copo. Queria acreditar na fada dos membros, mas acho que essas partes não nascem de novo.
Coincidiu com o projeto promissor de um cliente grande que eu acabara de assumir na empresa. Fiz apresentação da maquete com a mão para trás, por orientação do meu gerente. Um sucesso! Demos início à empreitada com um prazo menor do que o da concorrência e orçamento mais em conta. O desconto, obviamente, recaiu sobre a comissão da equipe e o material da obra, casas populares.
Não é sempre, nem em sequência cronológica. A primeira vez, uma unha do pé caiu, acordei e dei falta, o dedo matinha sua forma saudável, sem cicatriz ou ferida. A pressa não me deixou pensar muito sobre, quase sempre uso sapatos, vai ver eram os fungos ou bactérias. Em duas semanas, os cílios do olho esquerdo haviam desaparecido. Fui ao médico, ele perguntou se eu estava bêbado na noite anterior, se fumava (incidentes com isqueiros são comuns), mas logo cresceriam e não havia relação entre a queda da unha com a dos cílios, “coisas diferentes”.
Eu percebi que era sério quando senti que a caixa torácica havia diminuído: ao contar as costelas notei que faltavam-me duas do lado esquerdo. O médico relatou a complexidade que seria removê-las, sem falar que um procedimento deste seria impossível sem anestesia, além do que, para onde teriam ido? Não sei, mas a ausência me deu uma deformidade na coluna.
Na repartição, meu supervisor me notificou por excesso de atestados, ameaçou abrir uma investigação por tantas idas ao médico. Haviam prazos, eu precisava retornar, dobrei minha carga para dar conta da obra, refiz a planta durante a madrugada de sábado para domingo e meu olho esquerdo se diluiu como uma pedra de gelo quando peguei no sono.
A primeira situação presenciada por terceiros foi num jantar, fazendo sala para meu sogro. No momento em que ele falava sobre o campeonato brasileiro, ou da falta de moral da juventude, a orelha caiu na mesa, sem mais nem menos, despencou, sem vestígios de sangue, como uma peça do Cabeça de Batata. O silêncio pairou por um instante, depois minha mulher a retirou com um guardanapo. No final da noite passei no P.S., mas nada foi constatado; a orelha enrolada num pano mais parecia um brinquedo de mau gosto.
Depois de uma partida de futebol, no vestiário, a patela desligou do corpo. Mais uma vez na emergência, após muito insistir, fui levado para avaliação de uma junta médica. As partes aparentemente se soltavam sem impacto ou bloqueio de fluxo sanguíneo, de forma indolor. Uma noite sonhei que ao mijar meu pau caía no vaso. Acordei apavorado, “o pau não”! Eu precisava corrigir esse erro biológico, mas como? Tudo o que os médicos me passavam eram orientações, remédios para cicatrização, antibióticos, mas não havia nada inflamado ou necrosando. Era impossível saber o que viria a cair da próxima vez.
Em dois anos, um quinto de mim já havia se desprendido do corpo, os pedaços costumavam variar de tamanho. Eu só temia não conseguir entregar no prazo o pedido do cliente. Após a constatação de que nada havia de errado no âmbito biológico, fui encaminhado ao psiquiatra.
A conclusão foi que não havia perdido nada que já não faltasse em mim. Eu chegava ao hospital reivindicando um membro que nunca tive. Desde a unha caída era como se, com a queda de cada membro, a memória coletiva fosse reajustada. De médicos a conhecidos, amigos e familiares, parecia um combinado para se silenciarem diante de minhas perdas. Assim, o mundo seguia seu curso, adequando que era improvável a normalidade cotidiana.
Digitando apenas com uma das mãos, ao concluir o trabalho, deixei do lado do teclado o braço que desencaixou na noite anterior. Procurava ver o lado positivo pois, ainda que me deteriorando, as pessoas me acolhiam, evitavam falar sobre. Eu pensava como seria quando os órgãos vitais começassem a se diluir dentro mim. Especificamente uma coriza cinzenta, lenta, mas ininterrupta, me preocupava.
A obra foi entregue no prazo, as congratulações vieram em forma de tapinhas nas costas, um sonho de valsa na mesa do computador e duzentos reais a mais no salário. Outras conquistas, não menos importantes, como o piso do hall de entrada da casa de meu gerente que foi trocado mais uma vez. Com a devolutiva positiva do cliente, ganhamos o privilégio de mais duas empreitadas do mesmo porte.
O sacrifício foi recompensado: “Olhe pelo lado positivo, você ainda tem 70 por cento, é muito mais do que se pode querer!” A próxima obra já tinha data para começar, teria início assim que a reintegração do terreno fosse feita, já que a comunidade que ali residia perdeu o direito da terra para uma empresa do ramo da hotelaria.
Antes da reunião com os acionistas, eu senti dor no peito e uma pressão na barriga com uma súbita cólica intestinal. Corri ao banheiro. Após um parto intenso, olhei na privada e vi uma massa vermelha pulsante, senti um misto de assombro e alívio, pois, apesar do desconforto no reto, eu poderia viver pleno, sem o coração.
Este e outros contos disponíveis no Livro
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