O RELOGIO BATE A MEIA NOITE
O relógio bate meia-noite, e você está sozinho no banheiro, com um ar que domina ao seu redor. A luz pisca de repente, o silêncio é perturbador por um frio que rasga o espaço. Detrás do espelho, ouve-se uma voz rouca, pesada, que sussurra como uma onda de repulsa. “Sou eu, a Morte”, ela diz. "Vim para buscar você."
Seu coração dispara, mas você está paralisado, como se cada célula do seu corpo fosse prisioneira naquele instante. "Não adianta correr, esconder ou implorar. A sua vida foi um rascunho manchado, um esboço que já não serve, mas para o meu patrão... ah, para ele, você já é uma boa aquisição." Você se lembra, com um nó no estômago, de todas as vezes que riu daqueles que te alertaram sobre o fim. Agora, um arrependimento tardio corrói seu peito, mas a voz continua debochada e sombria, como se houvesse prazer em cada palavra.
De repente, o chão se abre sob seus pés, e você sente o puxão como se fosse arrastado pelo peso do próprio crédito. Cai direto numa fossa, cercado por fezes, barata e o cheiro podre de projetos antigos. Um baque molhado e surdo marca sua queda. Você tenta se agarrar a qualquer coisa, mas as paredes escorregadias são cobertas por uma lama viscosa que te mantém preso.
"Olha só aonde você veio parar," zombou a voz. "Cada partícula dessa sujeira, cada inseto e cada cheiro nauseante, é o reflexo dos restos que você deixou ao longo da vida. Uma sequência de resíduos, assim como você." Tenta nadar para fora, mas a massa flutua, girando ao redor, prendendo-o cada vez mais fundo. O fedor é insuportável, uma miséria palpável que envolve você.
Na tentativa de escapar, você sente uma correnteza, como um rio escuro e pulsante que arrasta ainda mais para baixo. À medida que desce, percebe um redemoinho de restos humanos, uma fusão de tudo o que um dia teve valor e que agora é apenas desperdício. E, no meio desse rio sinistro, seu corpo é sugado, comprimido, uma mera adição ao fluxo implacável da decadência humana. Você, agora, faz parte dessa massa esquecida.
Ao final, quando seu corpo já se mistura à corrente, uma voz reaparece, sussurrando como um vento gélido: "Esse é o ciclo, meu caro. Tudo entra, tudo sai. Somos todos parte do mesmo fluxo de restos e sombras. Aqui, a vida e a morte são apenas uma dança entre a superfície e o submundo."
Enquanto, você é apreendido para sempre na escuridão, condenado a flutuar, insignificante, entre as correntes sombrias do subsolo.
O redemoinho de resíduos te engole cada vez mais fundo, e a luz do mundo acima se transforma numa lembrança longínqua. Em volta, tudo parece pulsar, como se aquele rio tivesse vida própria. A correnteza, com seus projetos girando ao seu redor, se estreitando, e você é comprimido em uma escuridão tão densa que sente cada partícula de ar sendo roubada de seus pulmões.
Sem aviso, você é cuspido num espaço ainda mais estranho: uma caverna imensa, úmida, onde o ar é denso e quente, e as paredes parecem tremer, quase como se fossem feitas de carne viva. Pedaços de ossos, destruições de outras vidas, flutuam ao seu redor. Algumas dessas figuras têm feições que te lembram, assustadoramente, pessoas que já conheceram, mas cujas formas estão distorcidas, retorcidas pelo peso de algo pior que o tempo. Vozes sussurram palavras indecifráveis, num som roco, que ecoa pela caverna.
A Morte, que antes parecia uma voz distante, agora surge diante de você em uma figura coberta por um capuz, seu rosto encoberto pelas sombras. Ela se aproxima, e você sente o frio cortante que emana de sua presença. Seus dedos esqueléticos se erguem, apontando para você com uma certeza inabalável.
— Bem-vindo à última parada, — ela sussurra com uma voz gelada. — Aqui estão os esquecidos, os vazios, aqueles que ignoraram o chamado. Todos os que, como você, se tornaram resíduos no ciclo da existência.
E antes que você possa gritar, antes que você possa implorar, um grupo de sombras começa a te envolver. Cada uma delas sussurra memórias fragmentadas, verdades que você prefere nunca ter escutado, detalhes sórdidos dos próprios erros e reclamações. Você tenta se afastar, mas as sombras são como correntes, você segura com força. A Morte observa em silêncio, satisfeito, enquanto o peso dessas lembranças arrasta você mais fundo na escuridão.
Você sente que está se dissolvendo, que seu corpo está se desintegrando, fundindo-se com as sombras ao seu redor. Já não é mais você, mas apenas mais uma entre as centenas de almas vazias que agora vagam pela caverna sem propósito, sem forma, e sem esperança.
Em meio a essa fusão final, um pensamento cruelmente claro surge em sua mente: esta é a eternidade. Não há fim, não há problema, apenas a reprodução interminável de tudo o que você trouxe até aqui.
À medida que você se dissolve na escuridão, o tempo perde qualquer sentido, tornando-se um abismo de fragmentos, de ecos das escolhas que, um dia, parecem tão insignificantes. As sombras ao seu redor são incessantes, cada uma sussurrando promessas de colapso, apenas para mergulhar você ainda mais fundo na agonia. De repente, uma luz fraca se acende ao longo, como uma chama vacilante no fundo da caverna. No início, você acredita que é apenas um último truque da sua mente, uma ilusão.
Mas a Morte se aproxima novamente, e pela primeira vez, ela sai do capuz. Seu rosto é um vazio absoluto, um abismo dentro de um abismo. Ela olha em direção luz distante e murmura:
— Essa chama, — diz ela, em uma voz cheia de uma emoção quase imperceptível — é o traço do que você poderia ter sido.
Cada sombra ao seu redor sussurra em desespero, como se temessem aquela pequena e frágil luz. Um impulso incontrolável surge em você, um desejo ardente de alcançá-la. A Morte, contudo, bloqueou seu caminho, a mão elevada, fria e intransponível.
— Apenas aqueles que renunciaram completamente ao passado conseguiram tocar essa chama. Mas será que você, com tantas lamentações e desejos, poderia abandoná-los? — ela desafia.
É então que você entende: aquela luz é o único resquício de paz, a última chance de se libertar da escuridão eterna. A Morte observa atentamente, seu rosto ainda vazio, mas sua postura sugere curiosidade. Uma decisão final precisa ser tomada, uma escolha de verdade.
Você fecha os olhos, concentrando-se em cada sombra, em cada arrependimento que o aprisiona. Solta cada um deles, um a um, abandonando o peso do que foi deixando para trás os erros, as risadas zombeteiras, as omissões. Sente as sombras se desprenderem, esvaindo-se em murmúrios até que nada resta.
Ao abrir os olhos, a chama agora brilha mais intensamente. Você se aproxima dela, lentamente, e, quando a toca, um calor agradável o envolve. A caverna desaparece, as sombras se dissipam, e a figura da Morte também desaparece na penumbra.
No momento final, não há medo nem lamentar. Você é apenas luz, uma pequena centelha que se dissolve no silêncio, libertando-se da correnteza que arrastava as almas vazias. A modernidade que antes parecia um poço de sombras agora se abre como um campo vasto e luminoso, e, em paz, você finalmente desaparece para além do ciclo.