A Sombra de Vlad

 

           A névoa densa abraçava os picos escarpados dos Cárpatos como um véu fúnebre, envolvendo a vila de São Miguel em um manto silencioso e opressor. A pequena comunidade vivia em um ciclo interminável de medo, o castelo sombrio de Vlad pairando no horizonte como um lembrete constante de que suas vidas não lhes pertenciam inteiramente.

 

           Zanoni, um caçador de vampiros experiente, se aproximava lentamente da vila. Seu rosto estava marcado pelo tempo e pela perda. Atravessando as ruas desertas, ele sentia o peso daquilo que vinha caçar. O cheiro metálico do sangue não se dissipava. Estava sempre presente, como uma sombra que o perseguia, como se ele mesmo carregasse o fardo da morte. Seu caminho o levava até a taberna local, onde histórias sobre Vlad, o vampiro imortal, se tornavam o único entretenimento para aqueles que não ousavam cruzar o portão do castelo.

 

           Naquela noite, na taberna, Zanoni conheceu Bianca. Não era apenas sua curiosidade que a levava ao castelo, mas um desejo profundo e reprimido, uma fome de se libertar de sua vida provinciana, de tocar o desconhecido. Eles beberam juntos, conversando sobre o que os unia: o desejo de enfrentar Vlad. Bianca, obstinada e corajosa, parecia ser uma mulher fora do comum, algo que despertou a admiração imediata de Zanoni.

 

           O clima pesado na taberna foi interrompido pela entrada de uma figura sinistra e iracunda, Siderol, um homem de feições esqueléticas e olhos profundos como poços de escuridão. Era conhecido na vila como alguém que prestava serviços incomuns ao nobre recluso do castelo da colina, um servo leal de Vlad, o morto-vivo. Siderol havia ouvido a conversa de Zanoni e Bianca, suas intenções claras de eliminar o senhor que ele tão fielmente servia. Para ele, aquilo não era apenas uma ameaça ao seu ganha-pão, mas uma afronta pessoal à escuridão que abraçava sua alma.

 

           — Então, é isso que vocês planejam? — Siderol murmurou enquanto se aproximava lentamente. Sua voz era um sussurro áspero, impregnado de malícia. — Dois tolos que pensam que podem desafiar o próprio Vlad? Vocês subestimam o poder que reside naquele castelo.

 

           Zanoni se levantou, seus olhos fixos no homem que agora zombava dele. 

 

           — Vlad não é invencível. E servos desprezíveis como você não passarão despercebidos quando ele cair. — A voz de Zanoni carregava uma mistura de cansaço e ira, uma sombra de todos os combates que já havia travado contra as trevas.

 

           Siderol riu com desdém, o som de sua risada era como o farfalhar de folhas mortas. 

 

           — Vocês não têm ideia do que enfrentam. Pensam que conhecem o terror, mas Vlad... Vlad é a sombra que se estende além da morte. E vocês, meros mortais, não são nada além de marionetes à mercê do verdadeiro mestre deste mundo.

 

           Bianca, até então silenciosa, observava a cena com um olhar afiado. Ela sabia que não se tratava apenas de uma provocação. Siderol não estava ali por acaso. Ele queria algo — talvez separá-los, enfraquecê-los.

 

           — Por que não foge agora, enquanto ainda pode, Bianca? — Siderol provocou, com um sorriso torto nos lábios.— Vlad já ceifou sua família. Ele fará o mesmo com você, mais cedo ou mais tarde. Mas talvez... talvez você possa encontrar algum consolo em meus braços, se souber implorar.

 

           A tensão no ar se condensou em um silêncio mortal. Zanoni, com os músculos tensos, já exausto de tantas batalhas, não resistiu à provocação. Com um rugido furioso, ele se lançou sobre Siderol. A luta que se seguiu foi brutal, derrubando mesas e cadeiras, com o choque de punhos e o tilintar de armas escondidas. Siderol era ágil e traiçoeiro, movendo-se como uma sombra viva, e num momento de descuido, ele desferiu um golpe profundo em Zanoni. O caçador caiu no chão, gravemente ferido, enquanto o sangue jorrava de sua ferida.

 

           — Zanoni! — gritou Bianca, ajoelhando-se ao lado dele, os olhos arregalados em desespero. Ela pressionou as mãos sobre a ferida, tentando conter o sangue, mas o caos na taberna só aumentava. Siderol, com uma risada cruel, aproveitou a confusão para escapar.

 

           — Venha me buscar, Bianca! — zombou ele, já na porta da taberna. — Venha atrás de mim... ou fique aqui para lamentar o caçador derrotado. De qualquer forma, Vlad está esperando por você.

 

           Bianca sentiu o ódio e a sede de vingança queimarem em seu peito como brasas incandescentes. Não era apenas sobre Zanoni agora. O passado sombrio de sua família, massacrada pelo vampiro quando ela ainda era criança, emergiu de suas lembranças como uma onda avassaladora.

 

           — Isso acaba agora, — ela sussurrou para si mesma, com uma intensidade fria.

 

           Ela olhou para Zanoni, que, mesmo ferido, conseguiu murmurar com dificuldade:

 

           — Não... Não vá sozinha...

 

           Mas Bianca já havia decidido. Este não era apenas um acerto de contas para salvar um amigo. Era um confronto inevitável com seu destino e com o monstro que a perseguia desde sempre.

 

           Ela se levantou, com os olhos fixos na trilha que Siderol havia tomado em direção ao castelo. — Espere por mim, Vlad. Eu estou indo.

 

           Com uma última olhada para Zanoni, Bianca saiu da taberna, a escuridão dos Cárpatos a engolindo, enquanto seu coração batia não apenas por vingança, mas pela certeza de que, de uma forma ou de outra, sua vida mudaria para sempre naquela noite.

 

           Bianca sabia que sua jornada era perigosa, e a cada passo, a escuridão parecia se aprofundar. Mas ela não hesitava; sua coragem e sua ciência bruxesca ancestral lhe davam forças. Ela sabia que o caminho era perigoso, mas dentro de si, um antigo poder sussurrava que esta era a batalha que estava destinada a travar.

 

           Quando ela cruzou o portão enferrujado, o ar ao redor mudou. Ali, as noções de tempo e espaço se diluíam como uma névoa carregada de fetiches ocultos e insinuações inexploradas. Cada sala que ela atravessava revelava retratos de nobres antigos, cujos olhares pareciam cravar-se em sua alma. Não eram apenas olhares de julgamento; havia algo de profundamente perturbador neles. Um misto de desejo e dominação. As paredes carregavam memórias, a materialidade da pedra e do mofo se confundiam com o intangível da sedução. Bianca sentia-se simultaneamente observada e desintegrada.

 

           Finalmente, Bianca encontrou Vlad no topo das escadas. Ele não era apenas uma figura mítica, mas uma representação viva daquilo que as sombras podem fazer com a mente humana. O vampiro a observava com olhos frios, mas com um sorriso que denotava sua confiança inabalável.

 

           — Seja bem-vinda ao meu lar — disse Vlad, sua voz ecoando como um sussurro íntimo. — Beba comigo, Bianca, e se junte a mim em algo maior do que a própria existência.

 

           O vinho — ou seria sangue? — deslizava por sua garganta com uma suavidade que contradizia a náusea que rapidamente se instalava. Era um convite para a rendição. O vampiro oferecia mais do que poder ou imortalidade; ele prometia libertá-la de si mesma, despedaçando qualquer noção de identidade que ela ainda mantivesse. O olhar de Vlad, penetrante e vazio, era como um espelho sombrio que refletia os pedaços fragmentados de Bianca, expondo seus medos, suas inseguranças e seus desejos mais obscuros.

 

           — O que você realmente quer, Bianca? — perguntou ele, sorrindo enigmaticamente, enquanto ela tentava disfarçar o tremor que corria por seu corpo.

 

           Ela sabia que tinha que ser rápida. A batalha que se travava ali não era apenas física, mas psicológica e espiritual. Vlad não a queria simplesmente para se alimentar; ele queria corrompê-la, dominar sua mente e alma. Sentindo o efeito do vinho, Bianca se lembrou de lendas antigas, de feitiços que sua avó lhe ensinara, sussurrados em noites de inverno. Se ela pudesse usar a astúcia ao invés da força bruta, talvez conseguisse se salvar.

 

           Com a visão turva, mas a mente ainda clara, Bianca recitou uma antiga invocação, um feitiço há muito esquecido. Ela sabia que Vlad reconheceria o que estava por vir, mas não se importava. Era uma aposta arriscada: ou ela quebraria as correntes de sua mente, ou seria consumida por ele, tornando-se parte do vampiro para sempre.

 

           — Não pode escapar de mim, Bianca — sussurrou Vlad, se aproximando como um predador prestes a dar o bote. — Você já é minha.

 

           Ela sorriu, mas não com medo. O poder de Vlad vinha da dominação psicológica, da manipulação dos desejos mais profundos de suas vítimas. Mas Bianca estava disposta a usar o mesmo jogo contra ele.

 

           — Nem sempre as sombras obedecem à vontade de seu mestre, Vlad — disse ela, seus olhos brilhando com determinação.

 

           Em um último ato de desafio, Bianca lançou a invocação, um feitiço antigo que aprisionaria Vlad em sua própria sombra. O vampiro riu enquanto as palavras ecoavam pelo salão, mas sua risada foi silenciada à medida que sua figura começava a distorcer-se, sua carne sendo absorvida pela escuridão ao seu redor. Ele não se deu conta de que seu maior poder — a manipulação do medo e do desejo — também seria sua maior fraqueza.

 

           Quando Bianca saiu do castelo, sentia-se diferente. Algo nela havia mudado, e não sabia se para melhor ou pior. O anel negro que agora usava, com o pentagrama quebrado e invertido, era um lembrete de que, embora Vlad estivesse aprisionado, a escuridão continuava a rondar sua vida. O terror não havia acabado; ele apenas mudara de forma.

 

 

 

 

(Prelúdio ao Universo Negro de L. Mandrake)

L Mandrake
Enviado por L Mandrake em 26/10/2024
Reeditado em 06/11/2024
Código do texto: T8182393
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.