Odeio bonecas

Um dos dias mais estranhos que tive foi quando despertei com uma faca na minha mão apontada para várias bonecas, uma sem a cabeça e deitada de bruços. Todas vestidas com cores vermelhinhas. Uma faca comum de passar geleia, não que isso mude a esquisitice disso. Tenho histórico de sonambulismo na família. Ou seja, dessa laia eu pertenço. Devia estar sonhando, talvez como uma espécie de paralisia do sono. A tevê de tubo sintonizava num programa brega da Rede TV no qual falava de fofocas inúteis dos famosos.

Assim como lembro que ao ver as bonecas fiquei espantado com a cena, e fui correndo guardar a faca na cozinha. Senti vergonha até porque imagine se meus pais acordassem e vissem uma loucura dessa? Só hoje que sou considerado o esquisitão da família, mas antes eu me esforçava para transparecer uma boa imagem.

Minha irmã tinha várias bonecas, mas três delas eu recordo: Lúcia, Laís e Olívia. Estas eram suas favoritas, pois a caçula me obrigava a brincar com ela, já que sou o irmão o mais velho. Na época eu devia ter uns oito anos. Lúcia era loirinha e com personalidade genérica daquelas patricinhas de seriado. Laís era ruiva e usava um óculos estiloso e tinha personalidade descolada. E tinha a Olívia, uma de cabelos pretos, personalidade descontraída e pele morena. Ela parecia gostar mais desta, criava mais histórias com esta que Lúcia e Laís, apesar que ambas entravam nas brincadeiras.

Na infância até que era legal brincar e ver minha irmã feliz, mas com o tempo, tivemos que nos afastar. A adolescência rebelde chegou, a fase de raiva sem sentido também, com isso, brigávamos sempre. Nada demais até então, só que existia uma raiva sem explicação entre nós, principalmente por parte dela. Disse coisas horríveis para me magoar, só tecia comentários tóxicos para cima de mim. Eu respondia com deboche, e o meu deboche é mesclado com calmaria: ela se irritava mais ainda com isso.

Os anos vão passando, ela não é mais adolescente e nem rebelde, eu não sou debochado, mas sou calmo (apesar do trabalho). Moro sozinho e trabalho home office, nada que exija extrema inteligência, mas cansa e me enche de ódio ter que lidar com tanto cliente estúpido e sem educação.

Certo dia lembrei que novembro estava chegando, no caso, o aniversário de minha irmã. Sinto falta dela. Trocamos mensagens de vez em quando, está certo que nossa relação não é incrível, mas com o tempo ficou razoável, eu diria. Decidi chamá-la para ficar uns dias em minha casa. Ela mora com o marido e com a filha. Admito, por mais que fosse uma decisão simples, estava com medo dela não aceitar.

Oiii. Como você está? Como estão as coisas por aí? A gente já não se fala há um mês, sei que você deve estar bem ocupada cuidando da casa e tal. Não sou muito bom com palavras, mas eu queria te convidar pra ficar aqui em casa. Tô com saudade :/ Seu aniversário tá chegando, queria conversar com você. Vem aqui.

Fiquei ansioso com a resposta. Alimentei-me com um pessimismo dela possivelmente negar o pedido. Andando para lá e para cá, mandei a mensagem às 14h, mas às 14h10, parecia que o relógio retardou: às horas não passavam.

Oiiii. O que deu em vc pra me convidar? kkkkk, respondeu às 14h28.

Repeti sobre a saudade. Não falei nada mais que isso, não consegui fazer demagogia. Ela acabou aceitando.

***

Limpei a casa e arrumei tudo, não sou relaxado, mas é mentira me afirmar como alguém organizado e disciplinado. Comprei salgadinhos, doces e um garrafa de suco. O interfone tocou. E agora? Era só a minha irmã, pessoa que convivi por muito tempo, não sei a razão de eu estar tão ansioso. Atendi.

Cumprimento, abraço e um pouco de desconforto de ambos pela situação. Mas logo isso mudou por conta da filha dela. Ela tem dois anos, mas é muito engraçadinha. A gente ficou conversando sobre coisas inúteis, tal como as fofocas da Rede TV na minha época de sonambulismo. Percebi que ser adulto é não ter nada para dizer, falar sobre qualquer coisa é o suficiente. O relógio parecia ter voltado ao seu estado de funcionamento: já eram 23h.

Em algum momento chegamos a comentar sobre nossas brigas. A tevê, dessa vez não de tubo, mas fininha e de alta resolução, passava um programa infantil para a filha dela. Vi o desconforto pairar sobre o rosto de minha irmã, não era muito legal falar sobre. Contei que me sentia triste sobre nossas discussões.

— Não quero falar disso.

— Por quê?

— Já disse que não.

— Eu só queria esclarecer.

— Se te serve de consolo, também me senti triste — senti um leve tom de ironia em sua fala.

— Você sempre fez isso. Soltar ironiazinha pra logo em seguida me maltratar — protesto.

— Por isso que não quero falar disso. Só cala boca

— Eu que sou mal-educado, né? Você sempre falava isso, que engraçado. Você sempre me acusou de coisas que só você fazia — continuei — depois eu debocho e você fica furiosa.

— É sério que você me chamou aqui pra isso?

— Quer saber? Acho que me arrependi — digo com uma fúria crescente.

Tive que pausar nossa conversa. Não adiantou: ela sempre foi de temperamento colérico, quer estar certa a todo custo. Tentou puxar outra discussão com base no meu arrependimento. Bati a porta do meu quarto e fui dormir. O bebê chorando me irritava mais ainda. Nada pior do que minha irmã: uma ingrata e desrespeitosa. É igualzinho os meus clientes imbecis.

Enfim, o tempo passou, mas nem tanto, até que demorei para pegar no sono. Minha irmã acabou dormindo em casa, pois estava tarde para ela partir, também não tinha dinheiro para pedir um Uber.

O pior me aconteceu... acabei tendo palpitações, minha visão ficou turva e acabei desmaiando. A visão ficou sinistra, não sabia se estava dormindo ou tendo uma paralisia do sono. Tudo preto e diferente do quarto que estou acostumado. Fui à cozinha e peguei um copo d'água, mas minha visão dessa vez começou a piscar, como se fosse frames de ações de filmes, meio que flashbacks de alguma coisa. Cada vez mais fortes, com um estalo no ouvido seguido de um zumbido.

Um piscar, e a criança deitada de bruços no chão, com um vestido vermelhinho. Outro piscar, e a faca grande e vermelhinha. O meu corpo tremia. Minhas pernas se debruçaram em ossos se batendo. Estava paralisado. Meu coração pulsava na sincronicidade do relógio velho da parede; os tic-tacs acompanhavam esse horror e aqueles poucos instantes pareciam décadas. A lágrima do meu olho descia. Ouvi o ranger lento da porta velha que minha irmã dormia.

Quase um surrealismo — a faca desapareceu da minha mão. Sem nenhuma gota vermelhinha. Mas o grito da minha irmã foi bem nítido. Eu só queria acordar logo!

O pior é que a filha dela se chamava Olívia...

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 25/10/2024
Código do texto: T8182059
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