TEM NOITES QUE NÃO CONSIGO DORMIR
TEM NOITES QUE NÃO CONSIGO DORMIR
Acordei num deserto, deitado no pó como se dele tivesse nascido. Ergui-me e comecei a caminhar a esmo. O sol forte no vazio do deserto, o silêncio, a monotonia da paisagem imutável, são desconfortáveis. A claridade ofuscava meus olhos, o calor minava minhas forças e depois de algum tempo, naquela jornada sem destino, perdi a consciência.
Despertei com a cabeça dolorida. Estava num lugar completamente diferente, confortável. Cores e formatos, texturas, o catre, os lençóis, os parcos móveis, as paredes de madeira roliças, lisas, ásperas, a claridade do lado de fora. A cama macia e um travesseiro. A porta se abriu e alguém apareceu, uma mulher usando roupas de cores cinzentas.
─ Não! Não se levante. Você continua fraco.
O tempo começava a marcar os anos no rosto dela. Rugas, irmãs das memórias anciãs, marcas de sabedoria. Eu queria obedecer, mas não havia necessidade. As forças retornaram como se nunca tivessem partido.
─ Estou bem, não se preocupe. — respondi e fiquei surpreso com a própria voz.
─ O que fazia no deserto? Se perdeu? Ainda bem que eu o encontrei. Costumo ir lá buscar sal. Meu nome é Dione. E você, como se chama?
Eu sabia meu nome, e era só.
─ Adão. Não me lembro o que aconteceu! — respondi, desolado. A mulher ficou em silêncio por um momento com uma tigela de sopa fumegando nas mãos. Esboçou um sorriso, compreensiva, e deu-me a sopa.
─ Tome esse caldo, você recuperará as forças. Não se preocupe, tudo ficará bem.
Sacudi a cabeça, aceitando o argumento e tomei a sopa porque estava com muita fome e sede.
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Dione me acordou logo de manhã cedo para ir à floresta, examinar as armadilhas que ela armou para pegar pequenos animais. Saí da cabana, aspirando o ar fresco da manhã. Senti o cheiro da seiva das folhagens, do humo no chão coalhado de folhas mortas.
Remexi o solo, descobrindo os minúsculos seres que viviam sob aquele tapete amarronzado. Ergui-me, estreitando os olhos quando os raios do sol, atravessando as copas, bateu em meu rosto. Aproximei-me do tronco de uma árvore, passei a mão pela casca áspera, cheia de ranhuras, senti sua textura. As folhas sedosas, algumas de cheiro forte, acre, outras com odores suaves, doce.
Para mim, aquilo tudo parecia novo, mas era uma redescoberta, um reencontro com minhas lembranças. Chegando a um riacho, vi minha imagem refletida no remanso das águas. Vi meus cabelos brancos, os olhos, as pestanas, os pelos, a pele, tudo branco. Eu era branco como o sal.
─ Minha pele é diferente da sua. — eu disse para Dione, enquanto caminhávamos pela floresta. Para mim, aquilo parecia um sonho.
─ Você é um albino. Dizem que os albinos são protegidos pelas fadas, espíritos bons da floresta. Nada temas.
Aquela explicação me deixou tranquilo. Dione me ensinou a fazer armadilhas e naquele dia, pegamos um coelho. Tivemos um bom almoço.
Por vezes mulheres vinham à cabana e nessa hora, Dione mandava eu sair, dizendo que homens não podiam ouvir conversas entre mulheres. O assunto era só delas. Fiquei curioso e em certo momento perguntei o que elas queriam.
─ São mulheres da vila. — respondeu ela, preparando um ensopado de cogumelos. ─ Elas vêm em busca de ajuda para resolver problemas do corpo e da alma. Na vila não tem médico e como conheço o poder das plantas medicinais, receito as ervas indicadas para cada caso, inclusive para uma gravidez indesejada.
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Certo fim de tarde eu estava na floresta examinando as armadilhas, quando ouvi gritos na cabana. Imediatamente corri para lá e quando cheguei, encontrei um grupo de homens, cada um com uma tocha na mão. Eles gritavam exaltados, chamando Dione de bruxa. Dois deles a seguravam pelos braços.
─ Vamos queimá-la numa fogueira. — gritou alguém.
─ Isso! Vamos matar essa bruxa e colocar fogo na cabana! — disse outro.
Corri para Dione, tentando protegê-la daqueles sujeitos rudes e ignorantes.
─ Parem! Ela não faz nenhum mal!
─ Olha só! — exclamou o homem que liderava o grupo. ─ Um albino!
Ele me rodeou, examinando-me dos pés à cabeça. ─ Dizem que eles conseguem enxergar o ouro debaixo da terra com esses olhos esquisitos.
─ É um gênio da floresta? — indagou um dos que segurava Dione. Ele olhava para mim com os olhos arregalados, parecendo me temer.
─ É mais ou menos isso. — respondeu o chefe. ─ Acabaremos com a velha e depois cuidaremos dele.
Compreendi logo que eles estavam dispostos a colocar Dione numa fogueira. Investi contra os dois homens, segurei um pelo braço e o puxei tentando derrubá-lo. Mas o chefe não perdeu tempo, deu um passo para frente e me golpeou com a tocha. Senti a pancada. Fagulhas queimaram meu rosto. Fiquei tonto e acabei caindo.
O que se passou em seguida foi confuso. Ouvi gritos de agonia, vultos trêmulos passaram diante dos meus olhos embaçados, iam de um lado para outro, saltavam e voavam e depois, houve um momento de escuridão e tudo ficou em silêncio.
Quando recuperei a consciência, estava de bruços no chão. Me levantei ainda meio tonto e vi os corpos espalhados ao redor. Os homens estavam mortos, com o rosto e braços arranhados, a garganta estraçalhada.
Não vi Dione. Achei que ela estava na cabana. Entrei, procurei por todo canto, mas não a encontrei. Voltei a olhar os corpos, tentando entender o que havia acontecido. Alguma coisa, uma fera talvez, os atacou. Na confusão, Dione fugiu.
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Naquela noite quase não dormi, assustado com aquela matança, preocupado com o sumiço de Dione. Achei até, que a fera a levara. Na manhã seguinte, peguei uma pá e enterrei os corpos. Depois, decidi procurar Dione.
Andei pela floresta em todas as direções, sem encontrar nenhuma pista. Acabei chegando na vila. As pessoas me olhavam com desconfiança, algumas sussurravam entre si. Já passava do meio-dia e eu estava com fome e sede.
Andei pelas ruas estreitas da vila, olhando tudo com curiosidade. Havia tendas com mercadorias, frutas, temperos e ervas. Pedi uma maçã ao homem, mas ele me empurrou. Cai para trás sobre os tabuleiros de outra tenda. Os produtos foram espalhados pelo chão. O dono ficou furioso, começou a me dar pontapés. Logo todos estavam atirando pedras e me enxotando da vila. Fui escorraçado como um cão sarnento.
Uma das pedras havia me atingido a testa. O sangue escorria pelo meu rosto. Limpei-o com a manga da camisa e continuei andando. O corpo doía em várias partes devido às pedradas, mais ainda do lado esquerdo. Era como se uma costela tivesse sido quebrada. Doía quando eu respirava. Continuei caminhando até o escurecer. Atravessei um campo e cheguei a uma casa na orla de um milharal. Corvos crocitavam ao pôr-do-sol.
Olhando pela janela, vi uma cozinha, um fogão de pedra onde uma panela fumegava. Sobre a mesa havia comida, toucinho, pão e queijo. Fiquei com receio de bater na porta e ser enxotado, por isso, como não vi ninguém, pulei a janela e me aproximei da mesa.
Comi um pedaço de queijo, coloquei toucinho no bolso. Estava partindo o pão em um pedaço pequeno, quando surgiu alguém. Assustado, fugi, mas havia uma cadeira no caminho, me enredei nela e acabei caindo. A dor do lado direito foi instantânea.
─ Quem está aí? Papai?
Era uma menina de uns 12 anos. Tinha cabelos pretos, compridos e lisos, o rosto era o de um anjo. Fiquei estarrecido ao ver seus olhos. Olhos brancos, como um campo nevado, sem vida. A menina era cega.
─ Não se assuste, moça! Não vou lhe fazer mal. Só entrei aqui para pegar comida, pois não como há dois dias.
─ E por que não pediu, bom senhor? Eu lhe teria dado com prazer, não somos egoístas. Pegue a comida e saia antes que meu pai volte. Ele não gosta de ver gente estranha em nossa casa.
Ergui-me, soltando um gemido.
─ O que aconteceu? Se machucou?
─ Sim. Cai numa vala e acho que me machuquei por dentro. Mas, eu vou embora, sim.
─ Tem alguém para ajudá-lo?
─ Não, não tenho ninguém. Estou sozinho na minha jornada.
─ Então é melhor não viajar agora. Precisa tratar o ferimento. Fique no celeiro que logo mais levarei comida e remédio para o senhor. Como se chama?
─ Adão.
─ O meu é Leda. Meu pai se chama Hermes. Ele é um homem bom, mas tem medo que alguém me faça mal, por isso, estranhos não são bem-vindos aqui em casa.
****
O celeiro era grande e alto. As grossas traves formavam uma estrutura imponente, robusta. Me deitei sobre umas palhas de milho num canto, atrás de alguns fardos de feno. Através da janela aberta eu via o céu estrelado. Não havia lua. A dor do lado havia diminuído e acabei pegando no sono. Acordei com o rangido da porta. Era Leda. Ela trazia um lampião aceso, não para ela, que não precisava, mas para mim. Fiquei a imaginar as dificuldades que aquela menina passava. As mãos eram seus olhos, através do tato se locomovia pela casa. Cada coisa devia estar em seu lugar para que ela reconhecesse o seu caminho e soubesse por onde andava. Por isso, havia aquela corda com uma ponta presa na varanda da casa e a outra na entrada do celeiro.
─ Adão?
─ Estou aqui. — levantei-me para ajudá-la.
─ Papai está dormindo. Como está cansado, dormirá até amanhã ao nascer do dia, quando o galo cantar.
Ela tirou um pote e uma tira de pano do cesto que carregava.
─ Passe esse unguento no machucado e enfaixe o peito. Eu também trouxe um pedaço de frango assado, pão e um odre com água.
─ Obrigado. Você mora sozinha com seu pai?
─ Sim. Minha mãe faleceu quando eu era pequena. Papai disse que um dia ela foi lavar roupas no rio e desapareceu. Ele acha que ela caiu no rio e morreu afogada. Foi o que meu pai me disse, mas alguns dias depois, quando ele estava na roça, uma mulher apareceu aqui e sem dizer nada, me abraçou, me beijou e foi embora. Sei que era minha mãe, reconheci seu cheiro, mas papai disse depois que era o espírito dela.
─ Talvez tivesse sido mesmo. Minha amiga Dione me ensinou muita coisa. Disse que temos um espírito imortal, que viaja pelo mundo todo sem se cansar.
─ Meu pai disse que espíritos maus moram na floresta. Que eu não devo entrar lá.
─ Seu pai tem razão em protegê-la.
Leda ficou em silêncio por um momento, enquanto eu acabava de enfaixar o peito.
─ Está pronto. Acho melhor você ir para casa, antes que teu pai acorde.
─ Você ainda tem mãe, Adão?
─ Não sei. Perdi a memória.
Leda fez uma expressão triste.
─ Meu pai disse que a cegueira é como uma prisão.
─ Eu também, de certa forma, me sinto preso a esse corpo e dele não posso sair. Mas, já é tarde. É melhor você se recolher.
─ Está bem. Até amanhã, Adão!
─ Partirei amanhã cedo.
─ Gostei de conversar com você, Adão. Venha me visitar algum dia.
─ Sim, virei.
A menina começou a se afastar, tateando a parede em direção da porta.
Fiquei imaginando o quanto era difícil viver em seu mundo, onde a escuridão era perpétua. De repente senti um cheiro forte de animal e percebi alguma coisa às minhas costas. Voltei-me e fiquei estarrecido diante da aparição assustadora sobre a janela. Seu perfil lupino se destacava diante da serena face da Lua. Uma fera selvagem vinda das profundezas da floresta, ou talvez uma criatura das regiões infernais. O lobo monstruoso saltou no chão e com um rugido foi em direção de Leda.
Movido por um impulso instintivo, visei proteger a menina, interpondo-me no caminho. Mas, a criatura com um simples gesto, jogou-me longe. Cai sobre o feno com um arranhão no braço. Não me preocupei com o ferimento. Achei que a fera estraçalharia a menina como uma boneca de pano, mas o que fez foi agarrá-la e colocá-la sobre os ombros. Segurando-a com um braço, pulou a janela e saiu trotando, sumindo nas sombras.
Imediatamente segui seus rastros. Com a lua clara, deu para encontrar as pegadas na areia perto do curral. Logo depois, perdi o rastro na floresta. Continuei caminhando, prestando atenção aos ruídos noturnos. Parava, escutava. Andava mais um pouco e parava.
Súbito, ouvi um grito. Avancei o mais rápido que podia com os galhos baixos açoitando meu corpo. A dor do lado voltou. Corri na direção do grito e depois de alguns metros, cheguei a uma clareira onde havia uma cabana.
Reconheci o lugar, era a casa de Dione.
A porta estava aberta, mas havia escuridão lá dentro. E silêncio. Fui até o depósito de lenha e encontrando a pederneira, acendi uma tocha. Com ela na mão direita, entrei na casa. A luz da tocha revelou uma cena terrível. A criatura infernal estava sobre Leda. Ela permanecia prensada no assoalho, tentando empurrar o monstro. Ele me ignorou, estava mais interessado na garota, nos olhos brancos dela. O dedo esticado, com a unha estendida, parecia querer dar luz àqueles olhos. A baba caia sobre o peito da menina.
Olhei ao redor, tentando encontrar algo para golpear o monstro. Foi então que vi o forcado encostado na parede ao lado da lareira. Nesse instante, um movimento na porta me chamou a atenção. No umbral surgiu um homem troncudo, alto, empunhando um machado.
— Monstro maldito! Larga a minha filha! — gritou ele, avançando e brandindo o machado nas costas da criatura. Mas a fera se esquivou no mesmo instante em que a lâmina cortava o ar e com um som seco, entrou no peito da menina. Leda não emitiu nenhum som, morreu na hora.
Hermes soltou um grito medonho de dor e arrependimento. Ele voltou-se para o lobo e os dois se atracaram numa luta mortal. Larguei a tocha e peguei o forcado. A fera derrubou Hermes e começou a rasgar seu pescoço com os dentes, enquanto cravava as unhas no peito do homem indefeso. Quando enfiei as três lâminas nas costas peludas da criatura, foi tarde demais, Hermes já estava morto.
A fera urrou de dor, cambaleando, saiu com o forcado ainda preso às costas. Corri para Leda, mas não havia mais nada a fazer, ela estava morta. Morto também estava seu pai.
Cansado e abalado por aqueles acontecimentos, deixei a casa. No pátio tinha alguém caído de bruços, nua, ferida mortalmente nas costas pelo forcado.
Era Dione. Dione era o lobo.
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Após enterrar os corpos na floresta, segui por uma longa estrada rumo ao horizonte. O ferimento em meu braço não era muito profundo, estava com as bordas avermelhadas e coçava muito. Quando a lua cheia surgiu por entre as nuvens, senti um formigamento pelo corpo. Senti uma dor horrível nos membros. A coluna dorsal vergou-se como se fosse partir-se. Ergui a cabeça e uivei para a Lua, como se ela fosse a culpada pela dor que eu sentia.
Fim