inferno
abriu os olhos e p céu estava vermelho. sem nuvens. o silêncio imperava de forma auspiciosa em meio à total confusão de sua mente. sentia ainda a pressão em seu pescoço. com certeza admitiria que se sentiu assustado quando o ar deixou seus pulmões e se recusou a retornar, mas de repente o escuro o abraçou e agora ali estava, em um lugar silencioso e vermelho.
levantou-se para verificar seu redor. sempre teve curiosidade sobre seu destino. apostava no inferno e aparentemente estava correto, mas era um lugar muito mais vazio do que imaginava. procurou os caldeirões, as chamas, os tridentes e até mesmo o demônio em pessoa, mas nada ali havia. o chão era de terra, pensou inicialmente, mas percebeu que era de fato cinzas. não havia montanhas, mas de repente um estranho e suave vento o acariciou. não estava quente, pelo contrário, foi um toque gentil e agradável. não se lembrava muito bem desta sensação, durante sua vida não experenciara muitos deste tipo.
olá - uma voz masculina, disse às suas costas
ele se virou e não escondeu a surpresa de encontrar ali não somente outra pessoa, mas uma pessoa em uma cadeira em um cachorro a seu lado. um vira lata de sorriso simpático, língua para fora, olhos tão expressivos...
imagino que esteja confuso - continuou, afagando o cachorro, que se alegrou, exibindo seus dentes no que chamaríamos em uma pessoa de sorriso. "cachorros sorriem" pensou pela primeira vez em sua existência.
bem, pode-se dizer que sim - respondeu, sentindo-se de repente cansado, suas costas cedendo, como tantas vezes aconteceu durante sua vida - honestamente, não esperava encontrar este cenário quando tudo terminasse. em minha mente sempre sonhei com portões cercados de luz divina e um santo com uma lista ou olhos desvairados e famintos do demônio com meu nome em suas intenções.
talvez isto venha depois, mas no momento somos apenas nós três - explicou o anfitrião, sorrindo simpaticamente enquanto esticava o braço - por favor, sente-se.
o visitante estranhou. sentar no chão? nem mesmo uma cadeira para si? além do mais, o que era esta interação, qual seu objetivo? se quisesse conversar não teria se matado, teria marcado uma sessão com o inútil do seu psicólogo ou psiquiatra.
- deseja uma cadeira? - perguntou o anfitrião - sinto muito, mas não possuo uma para lhe oferecer. não sou exatamente daqui, assim como você acabei de chegar.
- onde estamos? - finalmente perguntou o visitante.
- não se apresse, amigo. sente-se, por favor. tenhamos uma conversa agradável. além do mais, o cachorro parece gostar de você.
- ele tem nome?
- ninguém aqui possui nome, pecador. nem mesmo eu.
o visitante caminhou e sentou-se, não muito satisfeito em sujar sua calça. o cachorro caminhou até ele, lambeu seu rosto e apoiou o focinho em sua perna. ele não percebeu que sorria ao observar a criatura.
- impressionante a marca em seu pescoço, nunca havia visto ao vivo, mas é como imaginei. realmente tinha a tarefa bem planejada, hã?
- não sei se desejo conversar sobre isso, mal o conheço.
o anfitrião sorriu: você se engana, apenas não se lembra de mim.
- não, eu me lembraria de seu rosto. raramente esqueço um.
- você realmente é estúpido, amigo. estúpido e teimoso.
a súbita mudança de tom assustou o visitante: - quem pensa que é? não lhe dei o direito de falar neste tom comigo.
- como disse, você é estúpido. aqui você fala somente porque desejo. além do mais, eu não deveria estar aqui, muito menos desejo estar aqui, mas como fui obrigado quero que me diga, porque a corda? por que a morte?
o visitante não se justificaria para um estranho e abriu a boca para dizê-lo, mas de repente sua voz havia sumido. o cachorro levantou sua cabeça e o encarou com olhar curioso. ele também desejava saber?
- ok, estranho. é simples e vou colocar no mínimo de palavras possível: sou um homem fraco que visitou um mundo maligno. um lugar onde não existe misericórdia. um lugar que o devora aos poucos, lentamente arrancando pedaços em sua interminável tortura. sou um homem roubado de decisões e encarado por consequências. sou um homem cansado, pequeno, indesejado, inundado de secura de lágrimas. assombrado, escarrado, raivoso e derrubado pelo peso de uma série interminável de enganos. negado no amor, negado em talentos, negado na felicidade. sou um homem doente, incapaz de me encaixar na multidão que tanto amo quanto odeio. sou um peso, um fardo. sou um ponto insignificante num quadro de infinitas cores sem margens. sou um homem inteligente que através da lógica errou em todas suas atitudes, salvo, talvez, a última. gosta da marca em meu pescoço? não? pois eu sim. a visto com honra, a visto com orgulho de finalmente ter encontrado o acerto. acha que tenho medo de você? do que vem depois? ferro, fogo, sofrimento eterno? EU NÃO TENHO MEDO. EU ODEIO O MEDO. ODEIO VOCÊ. ODEIO ESTE CACHORRO. ODEIO ESTE CÉU. ODEIO AQUELE MUNDO. ODEIO MINHA VOZ. ODEIO A VOZ DO MEU AMOR. entende agora, idiota? finalmente estou onde pertenço. FINALMENTE NÃO PRECISO MAIS ODIAR. ESTOU FARTO DE PENSAR, SENTIR E FALAR.
o visitante se levantou e sem qualquer aviso atingiu o anfitrião. um soco, dois, três.. até o rosto ficar irreconhecível na massa de sangue, com dentes espalhados e outros perfurando sua mão. o cachorro havia corrido, não estava em lugar algum para ser visto. percebeu que não conseguia mais lembrar seu nome, mas finalmente toda sua raiva havia se manifestado. sempre possuíra orgulho em seu autocontrole. não fazia mais diferença.
o anfitrião, para sua surpresa, abriu sua boca destroçada para gargalhar. ele ainda podia falar.
- idiota, eu sempre soube de tudo isto. sei muito mais que isto. para sua diversão, quis apenas ouvir de minha boca.
"sua boca"? pensou o visitante. estava delirando?
- cale a boca, não desejo mais estar aqui. desapareça com sua figura miserável e permita que eu siga para meu destino, inferno ou qualquer coisa amaldiçoada que me aguarde.
quando piscou o anfitrião havia desaparecido. o vento o acariciou novamente, não mais agradável. procurou algum caminho, mas não havia nenhum. uma voz ecoou e suas palavras trouxeram um novo desespero, muito maior do que carregara durante toda sua infeliz vida.
- quem lhe disse que está morto?