Amarga percepção

Mara havia decidido começar a psicoterapia e, há dez dias, vinha frequentando o mesmo prédio antigo, recentemente reformado, no centro da cidade. Todas as terças e quintas, às 10 horas da manhã, ela chegava pontualmente, seguindo a recomendação de um amigo.

A atendente da recepção chamou seu nome e Mara foi confirmar as informações do cadastro. Novamente estava na sala que não era espaçosa; tinha algumas cadeiras já gastas pelo uso, um sofá bem pequeno e nenhuma poltrona. Na verdade, era um ambiente não muito acolhedor. As paredes precisavam de um retoque na pintura, o aparelho de ar condicionado não estava gelando bem e o teto parecia ser baixo demais.

Próximo à mesa da secretária, havia um vaso com uma planta de porte médio que estava precisando ser podada. Ao lado,em um móvel de madeira rústica escura estava um purificador de água novo, garrafas térmicas com chá e café, e recipientes cheios de sachês de açúcar e adoçante e um pote com biscoitos.

No primeiro dia da sua visita à psicóloga, estava tão ansiosa que bebeu três copos de água e dois de café. Contudo, mesmo assim, não se sentiu à vontade, o ar ao seu redor pesava como uma nuvem cinzenta e Mara teve que respirar fundo várias vezes para se acalmar. O que aliviou seu incômodo foi a obra de arte pendurada na parede branca bem à frente de onde estava sentada. Admirou o magnetismo das cores quentes e frias, numa mistura bela de tons.

Naquele momento olhava para o quadro como se estivesse hipnotizada. Hoje tinha conseguido vir mais cedo e estava com tempo de sobra para analisar a imagem. Era quase como se fosse uma fotografia, de tão perfeitos que estavam os traços, o colorido, o ambiente retratado: uma manhã ensolarada, a areia da praia, o mar esverdeado e de agitadas ondas, pássaros no céu. Podia até sentir a brisa no rosto ao fechar os olhos. “Um dia, quem sabe, eu possa estar num lugar desse, paradisíaco e lindo.”

Tudo o que desejava era ter seu problema resolvido. Ansiava por descanso físico e mental. Não sabia na verdade qual o número 1 da sua lista de necessidades mais urgentes. Entendia que estar bem consigo mesma era fundamental para que prosseguisse com seus inúmeros afazeres e responsabilidades. Encontrava-se sem condições de dar conta de tudo por estar debilitada e sem coragem para nada.

“Senhora Mara, pode entrar na sala 5.”

Cristina percebia que sua paciente era uma mulher sobrecarregada, cansada, sofrendo de Transtorno de ansiedade generalizada e precisava de descanso, apoio e com certeza de uma licença médica. Era necessário que ela se afastasse do trabalho para se cuidar de maneira mais eficaz. Não havia problemas gigantescos que não pudessem ser sanados. Com dedicação e foco, as inseguranças e dificuldades iriam diminuir aos poucos. Já a tinha encaminhado a um psiquiatra para que ela pudesse usar uma medicação a fim de tratar a fibromialgia também.

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Mara chegou meia hora antes da consulta e foi logo buscar seu momento de contemplação do quadro da praia. Sorte é que não havia nenhuma cadeira próxima e assim ninguém ia se sentir incomodado com ela olhando fixamente, encantando-se com aquela paisagem tão bela. Após alguns minutos, distraiu-se com o barulho da porta da sala da recepção sendo aberta e tirou a vista; quando voltou o olhar, levou um pequeno susto: a pintura parecia estar se movendo, as ondas e as aves estavam numa posição diferente…

Mara piscou algumas vezes, olhou com cuidado e… outro espanto — o mar tinha mudado de cor, estava azul! Ela baixou a cabeça, depois virou o corpo de um lado para o outro, bem devagar, tentando ver se um dos pacientes presentes estava prestando atenção, mas os dois que estavam ali permaneciam digitando mensagens no celular.

Tentava entender se a sua visão estava pregando peças. Chegou mais perto do quadro e buscou em cada canto se tinha alguma iluminação diferente, ou alguma coisa que explicasse aquela ocorrência estranha. Ao chegar mais perto, uma das aves da imagem parecia estar vindo em sua direção! Mara sufocou um grito e pôs a mão na boca, fazendo um esforço para controlar a respiração. Ficou se perguntando o que é que estava acontecendo, sem entender aquilo e já sentindo uma terrível palpitação no peito.

Ao mesmo tempo em que se esforçava para sair dali, também desejava ficar e continuar olhando o quadro no intuito de provar a si mesma que era tudo fruto da sua imaginação. Algo dentro dela orientava que deixasse tudo de lado e fosse se sentar; no entanto, o desejo de desvendar até onde poderia ir a situação inusitada a forçava a insistir.

Reparou que os outros pacientes não estavam mais na sala de espera. Nem lembrava em qual momento eles foram chamados e achou esquisito que ninguém mais tinha chegado. Suspirou de alívio e voltou ao seu intento de acabar com as dúvidas sobre o que ocorria com ela. Achegou-se mais da pintura, que estava a um palmo e meio acima da sua altura e, bruscamente, percebeu um vento forte soprando, seus cabelos balançavam num ritmo frenético; logo em seguida, recebeu como se fosse um balde de água no rosto, concomitante ao som intenso das gaivotas que sobrevoavam a praia.

Sem entender nada, quis se recompor, mas o vento estava trazendo areia salgada que açoitava seu rosto impiedosamente, assemelhando-se a uma tempestade de areia e teve que usar os braços para proteger o rosto, porém seu empenho estava sendo em vão: os grãos estavam machucando sua pele... Notou seus pés escorregando, sem conseguir permanecer no lugar. Mara não conseguia raciocinar, só continuava na tentativa de se livrar daquele tormento inexplicável. Já não havia mais força para resistir àquele choque do vento, e agora, inesperadamente, o mar tinha chegado até ela, levando-a embora, em uma onda que a envolveu por inteiro. Sentiu-se cair, mergulhando nas profundezas do oceano e depois um vazio total.

p.s. Agradeço à querida Juliana Honorato pela leitura-beta.

Lidiene Costa
Enviado por Lidiene Costa em 23/10/2024
Código do texto: T8180424
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