A CASA DOS BONECOS
Depois de uma manhã inteira visitando possíveis lugares para a realização da festa de casamento, Christian e Lucélia se sentaram à mesa em uma churrascaria à beira da Rodovia Régis Bittencourt, no município de Juquitiba, São Paulo.
Os noivos estavam eufóricos com a possibilidade de alugar uma bela chácara que acomodasse os convidados. Por isso conversavam alegremente sobre os espaços visitados e as providências que deveriam tomar.
– O que achou desse último sítio, meu amor? - Perguntou Lucélia.
– É muito bonito de fato, mas achei muito longe. A maioria dos convidados terão dificuldade para encontrá-lo. - Ponderou Christian.
– É verdade. Eu também gostei, mas tenho a mesma impressão. Dos três que visitamos hoje, qual lhe agradou mais?
– O segundo me pareceu perfeito. Fácil acesso... do tamanho ideal, e preço justo. Embora a piscina não seja aquela maravilha toda da foto no site.
– Acho que precisamos pesquisar mais. Porém não podemos demorar tanto. Nossas opções parecem se esgotar com o tempo para organizar tudo, e enviar os convites. Afinal, a data se aproxima com rapidez.
A conversa discorreu tranquila por mais tempo. Saborearam uma deliciosa sobremesa, feita com sorvete de creme e bolo de chocolate recheado com calda quente. O cardápio dizia que na França, chamam aquela combinação de “petit gateau”, mas Christian não tinha tanta certeza disso. Lembrou do pão francês e outras coisas brasileiras que nos acostumamos com nomes estrangeirados para parecerem melhores, e justificar os preços altos.
Após pagarem a conta no caixa, dirigiram-se abraçados até a saída. Mas antes de cruzarem a cancela onde depositariam a comanda eletrônica, foram abordados por uma senhora muito bem-vestida, porém com um aspecto muito frágil. A pele enrugada não pode ser disfarçada pela forte maquiagem, tão pouco os olhos fundos na órbita, dando aquela sinistra expressão cadavérica. Passada a surpresa inicial, procuraram saber do que se tratava o contato.
– Boa tarde. Sabiam que vocês formam um lindo casal? - Disse a velha senhora com um sorriso estranho nos lábios.
Os dois se olharam admirados com os elogios e sorriram de volta. Ela continuou.
– Não pude deixar de ouvir sua conversa à mesa ao lado. Estão procurando um lugar para fazerem sua festa de casamento, não?
– Sim, é verdade! - Lucélia, disse surpresa.
– Desculpe! A gente deve ter falado tanto que não percebemos que estávamos atrapalhando sua refeição. - Emendou, Christian.
– Não incomodou nada. Adoro as histórias de amor. Eu mesma vivi uma linda história de amor, com meu Agenor. Que Deus o tenha!
– Sinto muito por sua perda. - Disse Lucélia, penalizada. – Quanto tempo?
– Fomos casados por mais de quarenta anos, há treze anos ele deixou esse mundo, mas ele continua vivo em meu coração.
– Lindo...
– Perdoe, que cabeça a minha! Nem me apresentei. Me chamo Lara, muito prazer.
– Christian, e eu Lucélia, pode me chamar de Lu.
– Prazer. - Disse Christian, ao estender a mão para cumprimentar Lara, mas soltou de imediato ao sentir um arrepio subir pela espinha ao toque lânguido e frio que vinha daquelas mãos.
– Por acaso, minha chácara fica aqui perto. Que tal vocês irem lá comigo agora, conhecerem?
– Eu acho que já estamos cansados por hoje. A senhora dá seu contato, e podemos marcar outro dia.
– Que bobagem rapaz. Vocês já estão aqui. Não vai demorar nada. Estou dizendo, é muito perto.
– Acho que dar uma olhada não custa nada, Chris.
– Se você acha...
– Ótimo. Vocês ficarão hipnotizados com o lugar. Eu garanto.
– Tá! E como chegamos lá? - Disse Christian, impaciente.
– Me deem uma carona no seu carro. É tão perto que eu vim caminhando, mas como estão com pressa...
– Ok, vamos então.
Depois de alguns metros na Rodovia, Lara no banco de trás, se inclinou entre o casal, sentados na frente, apontando a saída para uma estreita estrada de chão batido. Conforme se afastavam da pista, a mata em volta tornava-se mais fechada, estreitando ainda mais a estradinha acidentada, de modo que só passava um carro por vez. Felizmente, ou não, nenhum outro veículo parecia transitar por ali naquele dia. O terreno acidentado obrigava Christian a manter a velocidade reduzida, fazendo o trajeto parecer demasiado longo e demorado, afligindo-o cada vez mais.
– A senhora disse que era perto. A senhora faz esse caminho todo dia a pé? - Perguntou Christian, com ironia.
– Sim, mas não sempre. Gosto de ficar em casa trancada com minhas coisas, sabe?
A resposta da mulher deixou Christian pensativo. Lucélia por sua vez, emendou a conversa.
– Ah! Sabe que eu também gosto de ficar em casa quietinha no meu canto? As cidades estão muito perigosas hoje em dia.
– É o que eu digo... Vejam, ali à esquerda você entra.
A ladeira de terra esburacada pela erosão das chuvas era à beira de um precipício, forrado pela vegetação espessa. A aflição de Christian estava em seu rosto.
– Desce devagar aqui.
A sugestão da estranha mulher incomodou o pobre Christian, como se ele não soubesse. Já preocupado com o retorno por aquele precário caminho.
Quando finalmente alcançou o terreno plano a mulher indicou:
– Chegamos. Entre aqui nesse portão à direita.
A deslumbrante visão da paisagem parecia compensar o tenso trajeto.
O portão de ferro fundido aberto, levava por uma alameda calçada com paralelepípedos, até o jardim central, em frente à mansão em estilo neoclássico, com largas colunas em mármore travertino branco. Tudo do mais absoluto bom gosto. Em volta, um impecável gramado recém aparado.
– Deixe o carro aqui. Vamos andando, conhecer a propriedade. - Sugeriu a anfitriã.
Contornando a imponente casa, puderam ver o playground muito bem conservado, a enorme piscina olímpica, e mais ao fundo um lago onde nadavam cisnes e patos.
– Sua casa é realmente muito linda. E a senhora mora aqui sozinha?
– Sim, moro sozinha. Bom que gostou. Você ainda não viu nada... Venham comigo. Vamos entrar por aqui.
Subindo um lance de escadas em frente à piscina, chegaram a uma grande porta que se abria do meio para os lados, e um enorme salão se descortinou.
Um grande balcão de bar, repleto de todos os tipos de bebidas atrás dele, na parede. Uma pista de dança estilizada ao centro e um pequeno palco ao fundo. Somente os móveis estavam cobertos com lençóis bancos.
– Este salão é uma maravilha! Exultou, Lucélia.
– Realmente é espetacular. De frente para a piscina, parece coisa de cinema. - Concordou Christian.
– A Dolores vai morrer de inveja! - Deixou escapar Lucélia, inebriada com a possibilidade de realizar sua festa de casamento naquele espaço luxuoso.
– Acho que estão satisfeitos com o que viram. Venham, vou apresentar o restante da casa.
Uma das portas levava à cozinha igualmente luxuosa e impecavelmente equipada. À essa altura não restava dúvidas de que ali a festa seria um sucesso.
– Aceitam um chá? Ofereceu, Lara. O que ambos recusaram.
Continuaram até chegar ao hall da porta principal.
Um aparador em mogno preto, chamou a atenção e curiosidade do casal. Centenas de bonecos e bonecas, feitas em porcelana fina, com roupas muito bem costuradas em tecidos nobres. Em estilos de várias épocas, desde as famosas bocas-de-sino, dos anos setenta, retrocedendo até a era vitoriana, no século XIX.
– Que linda sua coleção, dona Lara! Exclamou Lucélia.
– Minha filha, estes são minha família.
– Como assim?
– Cada boneco ou boneca representa um parente. Sempre que alguém morre, um boneco é confeccionado e adicionado à coleção.
Um frio involuntário atravessou, de cima para baixo, o corpo de Christian. Pela primeira vez o semblante de Lucélia endureceu.
Após a explicação de Lara, a sensação imediata era de que os bonecos os estavam observando com aqueles olhinhos penetrantes.
Lucélia sem parecer acreditar, ainda perguntou:
– Que interessante. E o seu falecido esposo, qual desses bonecos seria?
– Aqui está o Agenor. - Disse Lara, apontando para um boneco de paletó escuro, de rosto pintado com expressão de assustado.
Lucélia então engoliu em seco, e deixou de fazer perguntas.
– Vamos conhecer lá em cima. Por aqui. - Indicando uma suntuosa escadaria que termina em frente a uma pintura retratando um homem austero, posando sentado em uma poltrona vermelha, ladeado por uma jovem simpática, muito bem-vestida em tom champanhe, apoiada com o braço contornando seu ombro.
O corredor superior era um mezanino oval, cheio de portas em torno da sala de estar, abaixo. Oferecendo uma visão ampla do luxuoso ambiente.
– Estes quartos estão sempre vazios. Vocês poderão acomodar seus convidados mais íntimos, depois da festa. Vocês sabem, depois de algumas doses, o melhor é ter um bom lugar para descansar. - Sugeriu, Lara.
– Não gostaríamos de incomodar, afinal é sua casa.
– Não é incômodo nenhum. Será um prazer tê-los comigo. - Disse enquanto empurrava uma das portas, aparentemente destravada, pois nem sequer tocou a maçaneta. Apenas se ouviu um longo rangido de dobradiças enferrujadas.
– Este é o meu quarto. Entrem.
O casal se adiantou, atravessando os batentes, à frente da estranha senhora.
O que viram sobre a grande cama de casal, provocou um forte disparo em seus corações.
Uma mulher de vestido champanhe deitada em estado avançado de decomposição.
Com o susto, Lucélia deus dois largos passos de costas, em verdadeiro estupor. Olhou para os lados e não viu mais a velha mulher que os trouxera até ali. Christian tentou segurar-lhe pelas mãos, mas ao bater o quadril no guarda corpo, foi subitamente levantada, e com as pernas para o ar despencou para a morte na escada.
Desesperado, Christian correu para sua amada, mas já era tarde. Decidiu sair daquele lugar rapidamente em busca de ajuda. Como a porta da frente estava trancada, saiu após quebrar uma das janelas, indo direto para o carro. Deu partida várias vezes até ele pegar. Ficou aliviado ao ver o portão da propriedade ainda aberto.
Pegou a estrada em alta velocidade com o intuito de subir a ladeira acidentada de uma só vez, mas os pneus começaram a derrapar, patinando em pedregulhos secos. Quanto mais Christian acelerava, mais o carro parecia sem controle.
De repente a imagem da estranha mulher surgiu mais pálida que antes ao lado do veículo, dizendo para Christian:
– Fique conosco.
De um grito amedrontado, Christian pisou fundo no acelerador, perdendo totalmente o controle da direção, lançando-se penhasco abaixo, capotando inúmeras vezes. Até chegar destruído ao sopé do morro.
Passaram-se quatro dias até que, finalmente, a polícia localizou o veículo, após o relato de desaparecimento do casal.
– Que tragédia... - Lamentou um dos policiais, enquanto o veículo era içado com dificuldade por uma espécie de guindaste.
Ao encontrarem somente um corpo, começaram a investigar as casas na região. Na verdade, só encontram uma por ali.
– Caramba! Este ligar me dá medo.
– Deixa de ser frouxo. Só por que a casa é velha e abandonada? - Replicou o outro.
– Faz muito tempo que ninguém vem aqui. O mato está tomando conta!
– Vamos entrar logo.
Os policiais, sem saberem, refizeram o caminho do casal, contornando a antiga mansão.
– Não tem nada aqui. Veja a piscina. É um lodo só. Tem até sapo.
– Vamos entrar na casa. Fique preparado.
– Sim, mas o que pode haver aí?
– Não sei. Vamos descobrir.
A porta aberta do salão de festas facilitou a entrada. Avançaram pelos corredores sem notar a decoração, até avistarem o corpo destruído de Lucélia na escadaria. Revistaram a casa até encontrarem o esqueleto no quarto de cima.
O relatório da polícia registrou as mortes de Lucélia e Christian como acidentais e o da mulher na cama como suicídio. Mas não foi possível identificar o DNA. A investigação presumiu se tratar da antiga proprietária da casa, Lara de Albuquerque Rezende Sobral.
Depois do ocorrido, ninguém mais voltou naquela casa. Nem mesmo para apreciar a coleção de bonecas, agora ampliada com três novos personagens.