Meryem

 

  Quando o assunto é assassinato, crueldade, tortura ou crimes brutais, a nossa mente tende a evocar a figura masculina. É um truque que ela nos prega, uma ilusão enraizada. No entanto, por trás da aparente fragilidade feminina, muitas vezes se escondem almas tão cruéis e sanguinárias quanto as de qualquer homem.

  Meryem veio ao mundo no ano de 1874; marcada desde o nascimento por uma aura inquietante. Com 5 anos de idade, ela já demonstrava um estranho fascínio pelo grotesco.  Suas brincadeiras não envolviam chá de bonecas ou contos de fadas. Em vez disso, ela passava horas sozinha, no canto do quarto, com suas bonecas preferidas. Preferidas, porque eram as mais resistentes ao seu "tratamento".

  Suas brincadeiras favoritas: arrancar as cabeças das bonecas de pano, ela sabia exatamente onde aplicar a força. Não satisfeita, abria as barrigas com uma delicadeza perturbadora, desvendando o vazio, procurando algo mais profundo, mais obscuro. Os braços, frágeis em suas mãos pequenas, também não escapavam de sua compulsão.

  De uma beleza quase irreal, que desmentia a escuridão que habitava seu interior, a pele de Meryem era tão pálida e translúcida que, sob a luz do sol, parecia brilhar suavemente, como porcelana fina. Os traços delicados de seu rosto eram de uma perfeição: um nariz pequeno e reto, lábios finos e rosados, e olhos grandes e expressivos, de um tom de azul tão claro que lembravam a água cristalina de um lago. Quando ela olhava para alguém, havia uma doçura em seu olhar que fazia todos acreditarem na sua inocência e despertassem o desejo instintivo de protegê-la.

    Com o tempo, entrando na adolescência,  as bonecas tornaram-se obsoletas. O apetite por algo mais real, mais pulsante, foi despertado e crescia à medida que ela envelhecia.   O pano frio e inerte não era suficiente para saciar a inquietude que habitava em seu ser. Passou, então, a prestar atenção nos pequenos seres coloridos e graciosos que a rodeavam.

  O fascínio por bonecas foi transferido aos pássaros. Meryem se encantava com os filhotes recém-saídos dos ovos, tão vulneráveis e indefesos. Passava horas a fio observando as árvores, procurando por ninhos. Quando finalmente os encontrava, uma  excitação tomava conta. Suas mãos tremiam levemente enquanto subia, delicada e silenciosa, para alcançar aqueles pequenos e coloridos seres. Apesar de sua alma ser vazia, fria e envolta em trevas, ela se encantava pelo belo e vibrante, pelo frágil.

  Ela sentia o calor dos filhotes em suas mãos, a suavidade de suas penas lembrava o toque de suas bonecas de pano, e algo dentro dela despertou. Era a mesma sensação de estar lidando com as bonecas novamente, mas desta vez havia vida, movimento, uma pulsação que a intrigava e encantava. A curiosidade a consumia. E o poder… vida e  morte. 

  E Meryem foi tomada por uma nova forma de prazer, e ela se tornou uma caçadora de ninhos, meticulosa em sua busca. Cada descoberta era uma nova oportunidade para explorar os limites de sua fascinação, para entender o poder que sentia ao ter em suas mãos a capacidade de dar ou tirar a vida. A garota que arrancava as cabeças das bonecas agora experimentava algo muito mais real, o prazer que sentia era tão intenso quanto perturbador.

  Seus sonhos começaram a refletir o fascínio que ela nutria pelo frágil e o vulnerável. Nas noites silenciosas, enquanto o mundo ao seu redor mergulhava no sono, sua mente a levava a lugares onde a linha entre o belo e o perturbador se tornava indistinta.

   Meryem percebeu que os pássaros e seus ninhos, antes tão fascinantes, haviam novamente perdido o encanto. A facilidade com que os encontrava e a previsibilidade do processo haviam drenado toda a emoção. Aquilo que antes despertava sua curiosidade agora parecia banal, sem a excitação.

  Sentiu a necessidade de um novo desafio, algo que pudesse novamente lhe proporcionar aquela sensação de poder e controle que tanto a atraía. Decidiu, levar seu fascínio a outro nível. Se os pássaros já não eram suficientes, talvez algo maior e mais difícil de capturar pudesse preencher o vazio que sentia.

  Com a mesma precisão meticulosa que usava em suas antigas brincadeiras com as bonecas, Meryem começou a preparar armadilhas. E aprendeu sobre diferentes tipos de iscas, como posicionar laços e criar mecanismos que garantissem o sucesso de sua caçada. Seus dias eram preenchidos com a preparação cuidadosa de cada armadilha, e as noites, com a expectativa de encontrar o fruto de seu trabalho.

  O fascínio que sentia ao preparar uma armadilha e esperar pelo sucesso era algo que ela não experimentava desde os tempos em que começou a explorar sua curiosidade por pássaros. Agora, essa excitação estava de volta, mas em uma escala muito maior.

  Ela sabia que estava cruzando uma linha, que aquilo que antes era apenas um fascínio estava se transformando em algo mais sombrio e perigoso. Mas, quanto mais avançava, mais difícil se tornava voltar atrás. Ela estava presa em uma espiral de obsessão, onde a cada passo se aprofundava mais em sua própria escuridão.

***

  Os anos trouxeram para Meryem um ar melancólico. Aos 25 anos, sem amigos, ela começou a sentir falta de suas antigas bonecas de pano, aquelas que arrancava as cabeças e despedaçava, em seus momentos de solidão.

  Apesar da estranha saudade das bonecas, preparou uma armadilha, tomada por uma inquietante excitação, mal podia esperar pelo amanhecer para descobrir qual criatura teria sido capturada. A noite se estendeu como um véu sufocante, transformando a expectativa em uma agonia interminável.

  Sua surpresa foi absoluta ao encontrar, presa em sua armadilha, uma boneca. Mas não era uma boneca comum. Era de tamanho real, uma cópia quase perfeita dela mesma, com olhos vazios que pareciam segui-la.

 

Juliana Duarte Honorato
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 13/10/2024
Reeditado em 20/10/2024
Código do texto: T8172786
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