A CRIATURA DO SUBSOLO
Sempre que chego em casa depois das aulas na universidade, dou uma checada nos e-mails antes de dormir.
Naquele dia não foi diferente, mas um dos e-mails me deixou surpreso e intrigado, a ponto de eu perder o sono. A mensagem estava escrita em italiano. Como sou professor de arqueologia, pesquisador de antiguidades e línguas, falo alguns idiomas, entre eles, o italiano. O remetente da mensagem era nada mais nada menos que o secretário-geral da Santa Sé, monsenhor Gaetano Pasquale.
Ele principiava dizendo que havia encontrado meu endereço eletrônico através de um de meus artigos acadêmicos na internet. Não entrou em muitos detalhes, mas disse que, por solicitação do Camerlengo, me convidava para ir ao Vaticano examinar um documento antigo, escrito numa língua desconhecida encontrado entre os alfarrábios da Biblioteca Apostólica Vaticana. Garantia que eu seria remunerado e que já tinha solicitado à universidade, em nome do Vaticano, licença para a minha viagem. Uma passagem aérea para a Itália estava reservada em meu nome para daqui a 5 dias.
Lembrei-me que o papa tinha falecido e que haveria eleição para um novo pontífice. Pressupunha um período de muita agitação no Vaticano. Nem imaginava que o tal documento tinha relação com a morte do papa. Na manhã seguinte recebi um telefonema do reitor, me concedendo férias de trinta dias. Assim sendo, parti.
Quando cheguei em Roma, encontrei uma limusine à minha espera. No Vaticano me hospedei num dos apartamentos ao lado da basílica. Na manhã seguinte, fui convidado a comparecer ao escritório do monsenhor Gaetano Pasquale. O secretário me recebeu efusivamente. Eu estava intrigado e surpreso. Que documento era aquele que deveria ser examinado por um obscuro professor universitário brasileiro?
O escritório era aconchegante, ricamente decorado, e Gaetano era simpático, falava num tom amistoso, quase paternal como convém a um religioso. Após conversarmos por alguns minutos sobre assuntos corriqueiros, como acontece entre duas pessoas que recém estão se conhecendo, Gaetano entrou no assunto que me levou ali.
一 Como o senhor sabe, estamos em processo de eleição para um novo papa. Por ordem do Camerlengo, convidamos o senhor a ajudar-nos a resolver um problema muito sério. Ele pede desculpas por não poder recebê-lo pessoalmente, pois se encontra muito ocupado em organizar o Conclave.
Gaetano fez uma pausa, abriu uma gaveta da escrivaninha e pegou um documento com duas páginas timbradas.
一 Antes de mais nada, devo dizer-lhe que necessitamos de sua discrição sobre sua visita e o motivo que o trouxe aqui. Queremos que mantenha absoluto segredo sobre o que vou lhe revelar.
Gaetano empurrou o documento na minha direção.
一 Esse documento é um contrato que o senhor precisa assinar para firmar esse acordo. Faça o favor de ler.
Peguei os papéis e li. Era um contrato onde eu me comprometia a não revelar para a mídia, ou qualquer pessoa em particular, o teor e os motivos do meu trabalho no Vaticano e as questões pertinentes a ele. Seguiam-se outras exigências e condições. A remuneração era boa, as penalidades por quebra de contrato, não. Havia muito mistério naquilo, mesmo assim, assinei. Gaetano sacudiu a cabeça, satisfeito. Voltou a guardar o documento, debruçou-se sobre a mesa e me encarou, muito sério.
一 Diferentemente do que a mídia tem anunciado, o papa não teve morte natural. Acreditamos que alguém, ou alguma coisa ainda não identificada, o tenha matado. Ele foi encontrado no subsolo da basílica com a garganta esmagada e o pescoço partido. Quem o estrangulou tinha uma força descomunal. Fomos obrigados a disfarçar e ocultar o ferimento para o funeral. Tivemos o cuidado de não revelar as circunstâncias da morte, para não causar especulação e tumulto.
Ele fez uma nova pausa, recostou-se para trás e continuou: 一 O pontífice andava muito inquieto nos dias que antecederam seu falecimento. Estava obcecado com a ideia de se tornar um homem santo. Na condição de chefe supremo da Igreja, ele era considerado um homem santo, já que possuía todas as condições e virtudes para isso. Porém, me parece que ele desejava tanto poder quanto um santo no verdadeiro sentido da palavra, e não um simples homem com suas faculdades físicas e mentais limitadas. Isso me deixou perplexo!
O secretário cerrou os punhos, se inclinou para frente, falando com ênfase. 一 Ele se tornou egocêntrico, egoísta, ambicioso. Andava com ideia fixa em outra coisa a ponto de inventar desculpas para não executar tarefas do dia a dia!
Gaetano respirou fundo soltando o ar com força. Tornou a abrir a gaveta e desta vez tirou um velho pergaminho que ele estendeu com cuidado em minha frente. Nele havia inscrições desbotadas pelo tempo, mas mesmo assim, legíveis.
一 Encontrei esse documento numa gaveta no quarto dele. Um idioma desconhecido que nossos peritos não conseguiram identificar. Por isso pedimos a sua ajuda, pois achamos que se trata de alguma fórmula de magia negra. Se precisar, o senhor pode dispor da Biblioteca Apostólica Vaticana. Ali temos, além de obras de referências, um laboratório de informática.
一 Acho que não precisa. - respondi.
一 Sabe do que se trata?
一 Sim, são duas palavras que estão escritas, mas me parece que esse pedaço foi arrancado de um outro documento. De qualquer maneira, posso ver que se trata de um idioma semita, extinto, mas que tem o mesmo significado em latim. Anima e Mors, que significa, Alma e Morte.
Gaetano ia dizer alguma coisa quando soaram batidas na porta. Ele pediu licença e foi atender. Conversou alguns minutos com alguém e retornou, perturbado. Voltou a guardar o pergaminho.
一 Houve outra morte. Praticamente no mesmo lugar. O mordomo do papa foi encontrado morto próximo da Capela da Confissão. Me acompanhe, por favor.
Levantei-me e o segui. Saindo, atravessamos o pátio e entramos na basílica por uma porta lateral. Me detive por um momento, extasiado com a beleza e a grandiosidade da Basílica de São Pedro.
一 Lamento não podemos nos deter agora para apreciar, talvez mais tarde.
Disse Gaetano e continuou andando apressado. Procurei acompanhar seus passos.
一 São várias esculturas de santos e monumentos funerários. Existem 45 capelas e 11 altares. O prédio tem 218 metros de comprimento e 136 de altura. O túmulo de São Pedro está localizado embaixo do altar-mor.
Com o olhar, acompanhei o gesto dele. O altar-mor era magnífico, majestoso. Levamos quase vinte minutos para chegar ao nosso destino, uma escadaria de mármore que levava à Capela da Confissão.
一 O nome se refere à confissão de São Pedro, que foi condenado ao suplício da cruz após confessar que era cristão. Ele foi crucificado de cabeça para baixo.
Passando pela capela, seguimos por um longo corredor e descemos outra escada até uma sala pequena que parecia ser um depósito. O corpo do mordomo estava estirado no chão. Os sapatos dele estavam sujos de barro e havia uma lanterna ao lado. Guardando o morto estavam dois funcionários. O mordomo estava com os olhos abertos, arregalados e, a princípio, julguei que estava vivo e então, Gaetano examinou-o detidamente e cerrou-lhe os olhos.
一 Não encontrei nenhum ferimento. Parece que ele teve um infarto. - disse Gaetano e em seguida ergueu-se e me entregou um retângulo de papel.
一 Estava na mão dele.
No papel estavam escritas duas letras do alfabeto fenício, alef e mêm.
一 A e M.
一 Sabe o que significa? - perguntou Gaetano.
一 Com relação ao pergaminho, pode ser A de Alma e M de Morte.
Gaetano deu algumas ordens aos homens e em seguida pegou a lanterna do chão e outra de um armário de metal e me deu uma.
一 Vamos ver se encontramos alguma coisa lá embaixo.
Ele dirigiu-se para um corredor às escuras. Hesitei, mas depois o segui. No fim do corredor chegamos a uma porta que estava aberta. Descemos uma curta escada até o que parecia ser uma gruta. Do lado esquerdo havia alguns túmulos de pedra, do lado oposto, grandes blocos de concreto que seriam a base da basílica. O teto se perdia na escuridão, o chão era de terra úmida e fofa.
一 Estamos na base de uma das sete colinas, onde havia um cemitério no segundo século da Era Cristã.
Gaetano falou em voz baixa, como se temesse despertar os mortos. Súbito, minha lanterna apagou-se. Bati com ela na palma da mão, apertei o botão diversas vezes, sem resultado.
一 As pilhas devem ter se esgotado. - disse Gaetano. Naquele instante, ouvimos ruídos. Um grunhido e passos pesados soaram em algum lugar. Meu coração disparou e senti minhas pernas bambas. Gaetano jogou o facho de luz em todas as direções. Um som que parecia um rosnar soou mais próximo. Alguma fera, ou coisa mais horrível se aproximava e pensei em correr para a saída, mas naquela escuridão eu não sabia para onde me dirigir .
一 Professor, fique perto de mim!
Corri na direção da luz, mas esbarrei em alguém, ou alguma coisa de pele lisa, úmida, pegajosa e fétida.
Mãos duras e grandes tentaram me segurar, mas com um safanão, consegui escapar. Tropecei e caí. A coisa grunhiu como um porco enfurecido. Gaetano soltou um grito e o facho de luz saltou para cima e depois foi para baixo, ficando imóvel. Sons de passos abafados soaram, um resfolegar, um grunhido. Fiquei paralisado, sem reação, apavorado. Ouvi o gemido de Gaetano, o roçar áspero do monstro. Ele também não enxergava no escuro, mas ouvia muito bem e devia ter bom faro.
Súbito, a luz da lanterna movimentou-se em todas as direções até que caiu sobre mim, ofuscando meus olhos.
一 Vamos, professor! - gritou o secretário. Ele praticamente me arrastou para a saída. Corremos de volta ao depósito. Sentamos num banco em silêncio, até regularizar a respiração e os batimentos cardíacos.
一 O que era aquilo? – Indaguei.
一 Eu o vi de relance. Deve ter uns dois ou três metros de altura. Com certeza não é humano. Vi o que parece ser duas marcas na testa dele. Parecem ser letras iguais aquelas que o mordomo tinha no papel.
一 Letras na testa? Acho que sei o que é aquele monstro. É um golem, monstro da lenda judaica. Diz a lenda que no século 16 o rabino cabalista Judá Loew, criou um gigante para proteger o gueto. Ele o moldou do barro e deu-lhe vida gravando duas letras em sua testa. Mas o rabino não conseguiu controlá-lo, apagou a letra M, dando-lhe a morte.
一 De onde surgiu tal criatura?
一 Não entendeu ainda? O golem só pode ser criado por um homem santo.
Gaetano olhou-me, espantado.
一 O papa! Na sua ambição de ser como o Criador, ele criou um homem de barro, que se tornou um monstro.
一 Que ele também não conseguiu controlar. O mordomo sabia que o pontífice havia praticado uma heresia e como não revelou a ninguém, sentiu-se culpado pela morte dele e procurou destruir o monstro. Mas o aspecto da criatura o assustou tanto que ele teve um infarto.
一 Nós vamos ter um Conclave. - afirmou o sacerdote, preocupado. 一 Todo o clero vai estar no Vaticano. Não podemos deixar aquele monstro à solta!
一 O único jeito de destruí-lo é apagar a letra M e para isso precisaremos de ajuda para derrubá-lo e imobilizá-lo no chão.
一 Trataremos disso depois do conclave. O mais urgente agora é selar a entrada da gruta.
E foi isso o que fizeram. Um novo papa foi eleito e o golem continua lá, encerrado no subsolo do Vaticano. O monstro está debaixo da Basílica de São Pedro até que possa ser destruído... ou libertado!
Fim
2015