Assombração no gas station
Cemitérios, igrejas, hotéis... Quem sabe hospitais, escolas ou casas antigas. Quando o assunto é assombrações esses seriam os locais mais propícios para registro de atividades dessa espécie. Disse seriam porque a esfera sobrenatural costuma contrariar as regras – isso se existirem regras – e às vezes um ambiente não lá muito apropriado, como o banheiro de um posto de combustível, pode servir de morada para uma assombração ou talvez uma mera alma errante se manifestando durante breve passagem.
Do lugar de onde vim, postos de combustíveis não servem somente para abastecer os carros. Essa até pode ser uma das funções mais desimportantes do local içado por um amontoado de ferro, sustentados pelo conjunto de vigas interligadas ao piso lajeado. Debaixo das placas de cimento, há um paquidérmico tanque recheado de material inflamável, portanto bastaria apenas uma centelha flamejante para colapsar a estrutura, colocando tudo pelos ares.
Ainda assim, dizem que postos de gasolina são locais muito seguros e a prova disso são as chamadas lojas de conveniência, que acabam servindo como uma ponte para estreitar a distância entre amigos imposta pela vida. Afinal, quem nunca reuniu a galera ao redor de um carro estacionado no posto. Cada um pode escolher – e melhor ainda pagar – pela própria bebida, jogando conversa fora a noite inteira, com direito até a trilha sonora, mas sem abusar demais do volume.
O nosso posto era o Gas Station. Passava ao largo de ser o point, embora estivesse sempre aberto, seja durante a semana ou nas fogosas noites de sexta e sábado, quando não se tinha nada melhor para fazer, e naturalmente, isso quase nunca ocorria. E mais uma noite, marcando o começo do fim de semana, era inaugurada em nossa segunda casa, tendo sobre nossas cabeças a estrutura em ferro corroído, já carecendo de reforma, antigas bombas de abastecimento reclamando por aposentadoria, além do piso escurecido com sua coleção de fissuras. Em contrapartida, a antiga loja de conveniência esbanjava precisão em reabastecer o estoque de bebidas estupidamente geladas e a melhor parte: praticava preços bem abaixo da concorrência.
Eu já estava na terceira lata de Coca-Cola, as duas primeiras foram batizadas com algumas gotas de vodca, afinal ninguém é de ferro. Enquanto Thiago protagonizava um monólogo sem fim, sobre a possibilidade de o Gas Station fechar temporariamente para reforma, os outros dois amigos se entretinham no celular e eu me limitava a observar os fachos de luz, provenientes dos faróis dos carros a vararem a escuridão da via. Nessa toada, enfim notei a necessidade de esvaziar a bexiga e nunca fiquei tão satisfeito em ocupar o sanitário fétido, a oportunidade perfeita para debelar o insuportável assunto.
Logo na entrada do banheiro havia uma pia equipada com duas torneiras e um espelho paramentado por manchas escuras, comprometendo a reprodução de imagens. Com mais alguns passos, e tentando respirar o mínimo possível, cheguei ao urinol. Alguns segundos foram o bastante para debandar minha agonia e voltar para os amigos e a Coca-Cola, terceira lata não batizada.
Já estava pronto para marchar de volta, quando fui surpreendido por uma estranha figura, postada defronte ao velho espelho. Mais do que a presença em si, estranhei o fato de não ter escutado o som de passos anunciando a chegada. Aparentemente se tratava de uma mulher, bastante maltrapilha, usando calças com várias partes esgarçada, permitido mirar as pernas mirradas com inúmeras marcas de sangue coagulado. A blusa também tinha rasgos suficientes para deixar à mostra uma parte do abdômen, repleto de traços roxos. Talvez aquela mulher precisasse de ajuda, só não estava necessariamente diante de um herói.
- Não sei se percebeu, mas a senhora entrou no banheiro masculino. O das mulheres é logo... – O silêncio dela, mais do que incômodo, passara a ser agoniante e me fazia desejar sair logo dali. - Está tudo bem com a senhora?
Àquela altura não sabia ainda se a mulher mais parecia uma mendiga, se foi espancada em alguma mostra de crueldade humana ou a pior hipótese: vítima de violência sexual.
- A senhora precisa de ajuda, precisa que chame alguém? – Lógico, eu não era o alguém capaz de ajudá-la e tinha um reencontro marcado com meu refrigerante.
A mulher insistia em permanecer de cabeça baixa, emudecida, apenas encarando o espelho de soslaio. Não havia observado antes, mas as mãos executavam um estranho movimento rítmico, talvez parte de um estranho e involuntário estímulo cerebral. Agora, com deslocamento paulatino, passou a lançar seu olhar, movendo a cabeça em minha direção.
Confesso não ter permanecido no banheiro para acompanhar o desfecho. Do lado de fora, estava crente que meus amigos, logo quando saísse, estariam entregues ao riso compulsivo. Só que não exibiram qualquer gargalhada. Thiago continuava falando sobre a iminente reforma no posto e agora Paulo lhe emprestava atenção, só Nando seguia firme no celular. Talvez estivessem fazendo cena, os risos iriam irromper apenas quando a mulher deixasse o sanitário. No entanto, os minutos transcorriam e tanto ela não cruzava a soleira da porta como eles não diziam nada.
- O que foi, Daniel? Parece ter visto fantasma! - Thiago me surpreendeu, seguindo para o sanitário. Em meu íntimo, respondi que talvez tivesse mesmo visto algum. Quando regressou, indaguei Thiago quanto a ter percebido algo estranho, talvez a mulher também o tivesse assustado.
- O cheiro? Hoje parece pior do que nunca, como se houvesse algo podre lá dentro.
Ainda hoje, não sei se me arrependo por não ter tido coragem de entrar novamente e observar se a mulher permanecia no banheiro do Gas Station. Estava claro, todos naquela noite ocuparam o sanitário, lidaram com o cheiro pútrido, mas somente eu fui contemplado pela estranha presença.