Viagem de volta

Devo confessar: já estou de saco cheio dessa rotina!

E dizer que, uma das coisas que me levaram a aceitar esse emprego seria justamente a de viajar por várias cidades do estado, todas elas não tão longe e ao mesmo tempo não tão perto de casa. Foi fácil imaginar que não seria um trabalho tão chato visitar as mais de quinze filiais da empresa vistoriando suas instalações e trocando ideias com os colegas. Ou seja, mesmo que esporadicamente, colocar o pé na estrada acabaria sendo uma necessidade, pois ações como essa também fazem parte das competências de um gestor de tecnologia como eu. O que não se poderia imaginar era que isso um dia fosse se tornar uma rotina cansativa, a ponto de começar a fazer de tudo para evitá-las, sempre buscando qualquer tipo de contorno sobre elas. E não é para menos, cada uma dessas viagens leva no mínimo três horas de estrada (quando não sete ou oito) entre a matriz da empresa, daqui em Santa Maria, até a filial de destino, algo que já não me atraía há um bom tempo. Para potencializar meu desgaste e repulsa a essas viagens, minha ansiedade compulsiva passou a não aceitar muito o pernoite em cidades interioranas. O bucolismo e melancolia de suas aparências urbanas decadentes e esquecidas passaram a me deixar inquieto fazendo-me tomar por completo por uma sensação de isolamento e esquecimento. Instaurava-se aí o pânico numa mente não tão equilibrada emocionalmente quando apresentada a cenários como esse associado à solidão de um quarto simples de, em certos casos, único hotel da cidade. Restava, entao, apenas jantar uma torrada na lancheria do posto de gasolina da cidade situado na beira da estrada acompanhada de um refrigerante a alguns comprimidos de ansiolíticos. E caso esses demorassem a fazer efeito, me via obrigado a abrir algumas garrafas long neck da única cerveja disponível, até quase cair de sono no tampo do balcão para só acordar cedo da manhã do outro dia.

Para evitar esse tipo de tormento, a melhor saída que encontrei foi delegar essas indiadas para alguém da minha equipe, desde que devidamente capacitado e com o olho clínico para detalhes técnicos, essenciais para o bom cumprimento da missão. O cara deveria ser um baita dum chato (tanto quanto eu) para avaliar as instalações elétricas e de telecomunicações com seus devidos acabamentos. Por conta disso, de um tempo pra cá, deixei como encarregado dessa tarefa o Eliézer, o técnico da minha equipe responsável pela infraestrutura de telecomunicações. E nele realmente dava para confiar esse tipo de missão, afinal, era uma cria profissional minha, transformando-se num baita mala quando se tratava de cobrar serviço bem-feito pelos fornecedores.

Eis então que surge mais uma demanda dessa natureza. Dessa vez, a diligência seria até a filial na cidade de Dom Pedrito, a duas horas e meia da matriz. Chegara a hora do sonho de nossos colegas dompedritenses se concretizar, estando eles às vésperas de realizar a mudança da loja para o novo endereço, onde o prédio moderno e confortável, não apenas atenderia melhor os clientes daquela cidade, como elevaria o prazer e orgulho de trabalhar na empresa. E já não era mais tempo, pois já se questionava como que uma empresa daquele porte permitiria manter uma filial em instalações tão precárias como a atual.

Para tanto, e como de costume, duas semanas antes eu já havia notificado Eliézer sobre sua viagem de supervisão ao tal novo prédio. Diga-se de passagem, algo que ele detesta! Era só falar em viagem e já estava ele providenciando uma viatura da empresa, reservando quarto no hotel da cidade e decidindo o sabor do xis que ia jantar a noite. E dessa vez, não foi diferente, bastou vinte minutos após a missão dada para ele se dirigir até minha mesa me comunicando que já estava tudo certo para sua empreitada. Mas, tudo isso somente seria possível se o infeliz não me contraísse covid pela quarta vez, sendo obrigado a se afastar do trabalho por meio de um atestado médico ficando de molho em casa por uma semana. E o pior, ainda infectou metade do resto da minha equipe. Diante dessa situação, estando todos ferrados, adivinhe a quem sobrou a deliciosa tarefa de então vistoriar as instalações do novo prédio?

Eu, né!

Tudo bem. Já que é inevitável, que seja o menos doloroso possível. Às vésperas da viagem, tomo as chaves da viatura da empresa já alocada para essa. Deixo-as na minha primeira gaveta para que no outro dia, as seis horas da madrugada (sim, para mim seis horas ainda é madrugada) eu as apenhe e tome o rumo a Dom Pedrito, deixando meu carro no estacionamento da matriz. Não haveria problema algum em deixá-lo ali, pois estaria longe dos meus planos o pernoite naquela cidade. Minha intenção era chegar, vistoriar e vazar fora, de modo que pegaria a estrada de volta no mais tardar as dezesseis horas a fim de chegar em Santa Maria no máximo até as dezenove horas. Só em pensar que estaria de volta no mesmo dia, a despeito das duas horas e meia de estrada, já era um alento no meu coração.

Além da covid, Eliézer me apronta outra: o carro que ele locou, e que por consequência seria usado por mim, era uma indecência. Um Fiat Uno 1.0 sem ar-condicionado, sem direção hidráulica (ainda fazem carros assim) e com a suspensão dura feito um pau. Ainda por cima, se previa um frio de lascar, fazendo com que aquele caixote de lata se transformasse num freezer às seis horas de uma manhã em pleno julho. Meus planos de retorno cedo começaram a melar quando o pessoal do setor de peças me atrasou 40 minutos separando peças e as acondicionando no porta-malas do pé-de-boi que seriam levadas por mim para a filial aproveitando o translado, uma prática comum entre as filiais. O carro já era uma charrete com o porta-malas vazio, imagina então com ele cheio de peças agrícolas pesadas.

A viagem até Dom Pedrito é um tanto quanto desoladora, mesmo que tenha lá seus pequenos encantos, pois corta a campanha gaúcha, apresentando uma paisagem que instiga os sentimentos solitários de reflexão que de certa forma me fascinam, mesmo que a noite se complemente com um desespero, pois se ocorrer algum imprevisto, não há o que fazer senão esperar uma santa alma passar e lhe socorrer. São quilômetros e quilômetros entre uma cidade e outra, um posto de gasolina e outro. A coisa fica bem mais divertida entre Rosário do Sul e o entroncamento da BR-293 com a BR-158. Sinal de celular, nem pensar. Mas tudo bem, pois veria aquela estrada somente cedo da manhã e ao entardecer do mesmo dia.

Aquele deslocamento duraria entorno de duas horas e quarenta minutos, chegando pelas dez horas e cinquentas minutos ao local. Logo ao chegar, não me faço de rogado e dou logo início aos trabalhos de avaliação da infraestrutura acompanhado do gerente da filial, Miguel, e demais fornecedores cujos serviços de instalação foram terceirizados. Após fazer incontáveis check-lists, fotografias das instalações para documentação, solicitações e sugestões de adequações das mesmas de minha parte e da parte do Miguel aos fornecedores, nos liberamos indo todos almoçar num pequeno restaurante local próximo das treze horas. Já estava empolgado com a ideia de início de retorno à Santa Maria antes mesmo das quinze horas, bem antes do esperado, pois havíamos nos adiantados nos afazeres.

Findando o almoço, dirigimo-nos agora ao antigo prédio onde a filial ainda operava. Começo os preparativos para retorno me despedindo do Miguel e demais colegas, não esquecendo de consultar a equipe de peças da loja se haveria alguma pequena carga de itens a serem transferidas para a matriz. Os colegas daquele setor me responderam de forma afirmativa, já embarcando devidamente os itens no porta-malas do pé-de-boi. Com isso, minha expectativa, no entanto, de que aquela condução pudesse ter um pouco mais de performance ao retornar devido ao porta-malas estar vazio, e, portanto, mais leve, foi para o espaço.

Após o acondicionamento das peças no porta-malas e as devidas despedidas, me vi pronto para tomar a estrada quando um dos colegas da loja me chama dizendo que havia uma ligação telefônica para mim lá no telefone do balcão de peças. Embora tivesse achado estranho o fato de alguém ter me procurado através do telefone de linha fixa da filial (pois praticamente recebo ligações somente pelo meu celular), não hesitei em atendê-la. Do outro lado da linha uma voz envelhecida de homem saldou:

- Boa tarde Augusto, como vai. Aqui é o Valdir.

- Valdir, Valdir, Valdir... desculpa, mas não tô lembrado de ti.

- Ah, me desculpa. Sou daqui do setor de peças de Santa Maria. Faz pouco tempo que assumi aqui, é por isso que tu não me reconheceu.

Realmente, não reconheci o Valdir. Algo que também não era de se espantar, pois a empresa havia crescido muito aumentando bastante o número de novos funcionários e esse senhor deveria ser um desses. Sua voz suave e nitidamente de um homem com idade mais avançada chamou minha atenção, pois não é comum contratações de pessoas mais velhas. Apesar disso, a sensação de calma e tranquilidade que suas palavras me passaram fizeram com que eu ignorasse qualquer outro tipo de indagação sobre quem seria aquele homem.

- Augusto, fiquei sabendo pelo pessoal daqui da matriz que tu estás em Dom Pedrito. Preciso que me tragas uns itens daí. Só tem um problema, os itens ainda não estão nessa loja.

- Como assim Sr. Valdir?

- Pois é, uma situação incomum. O que posso te dizer é que a transportadora ficou de entregar aí e eu preciso delas aqui. É coisa importante.

Não preciso dizer como ficou minha cara após ouvir isso. Pergunto para os guris do setor de peças que horas a transportadora costuma chegar na loja: por volta das dezoito horas.

Puta...

Que...

Pariu...

- Ok Sr. Valdir, vou ter que esperar então. Fazer o que?!

- Muito obrigado Augusto. Que Deus te abençoe!

Bah, mas a entrega desses itens é tão crítica assim? "Deus te abençoe". Logo imaginei esse tal Valdir um senhor que está se esforçando para que seja efetivado na vaga de vendedor de peças lá em Santa Maria como que "demonstrando serviço". Enfim, como disse a ele, só me restaria esperar. Se eu soubesse o que estaria por vir, não teria deixado de perguntar o que seriam os tais itens, coisa que não fiz por induzir meu pensamento automático a serem apenas mais uma pequena carga de peças.

Mas eu deveria ter perguntado...

O sol começa a se pôr, a temperatura cai vertiginosamente, o expediente da loja se encerra, os colegas da filial vão para casa... e nada da transportadora.

Já era quase dezenove horas. Miguel se despede de mim ao fechar o portão me deixando do lado de fora da loja com o carro da empresa. Antes de ir, porém, dissera a mim estranhar uma carga de peças estar por chegar naquele horário, embora isso já tenha ocorrido em algumas pouquíssimas ocasiões. Bastou alguns minutos após a partida de Miguel e uma caminhonete Chevrolet C-10 bastante velha aponta na esquina estacionando ao lado do Uno. Um senhor baixinho e atarracado desceu do veículo chamando pelo meu nome com sua voz baixa e grave:

- Augusto?

- Sim, sou eu.

- Aqui estão os caixotes. Boa viagem.

O homem que aparentava aproximadamente uns setenta anos, além de não apresentar nenhum tipo de expressão facial, evitou me olhar mantendo-se sempre de cabeça baixa, descarregando com rapidez três pequenos caixotes os deixando no meio-fio da calçada. Com uma pressa desconcertante, o atarracado senhor retornou para a cabine da caminhonete arrancando aquela sucata sem dizer uma única palavra. As caixas, embora lacradas, eram lisas, sem nenhum tipo de identificação de algum fornecedor. Não perdi tempo e as acomodei sobre as demais no porta-malas do carro. Já estava frio e meus planos de estar em casa cedo já tinham ido para o espaço. Embora tenha cedido brevemente lugar para a estranheza, meu sentimento de irritação ainda era grande por ter que encarar algumas horas de estrada escura e deserta à noite num frio de rachar.

O Uno já estava abastecido e carregado, restando apenas tomar a estrada para retorno. E assim iniciei minha viagem de volta para Santa Maria. Apesar da carga prejudicar o desempenho do judiado motor 1.0 daquela caixa de fósforos, uma certa serenidade pairou sobre mim. O trecho da BR-293, entre a cidade de Dom Pedrito e o trevo de acesso à Santana do Livramento havia ganho nova pavimentação, o que propiciava uma viagem tranquila e confortável, fazendo com que se pudesse manter uma velocidade baixa, porém constante, dando a sensação de estar deslizando sobre a via. Viajar ouvindo um bom rock n'roll também estava ajudando a relaxar, graças à conexão de bluetooth estabelecida entre o som do carro e meu celular (ao menos isso funcionava bem naquele carro).

Apesar de toda essa tranquilidade, aos poucos comecei a tremer feito uma gelatina sem saber se essa sensação surgira devido ao frio ou pelo puro nervosismo devido à solidão daquela viagem de volta. A ansiedade de chegar logo em casa era grande, afinal viajar sozinho naquela estrada deserta, onde um veículo passa lá de vez em quando, não é nada alentador. Por isso que, nessas situações, adquiri o hábito de escutar o som em volume alto, para abafar qualquer outro som menos ruidoso, evitando me assustar por qualquer coisa. Isso significava que, a essas alturas, baixar o som não seria uma opção, muito menos desligá-lo, pois a sensação de desespero se tornaria incontrolável devido ao silêncio e isolamento, mesmo que em pleno movimento. E, para piorar, na medida em que o sol caía e a luz natural se ia, minha ansiedade só aumentava. Admito: já não era uma viagem confortável. E confesso: já estava começando a ficar com medo.

A viagem, no entanto, iria ficar melhor, a ponto de me dar reais bons motivos para começar a sentir de fato medo e pânico.

Em determinado momento, minha concentração na estrada e na música que tocava se quebrou quando tive uma estranha sensação. Por um momento, pensei ter ouvido um choro de criança, baixinho, porém perfeitamente identificável como de um bebê. Olhei para o painel do carro e para o celular procurando identificar se aquele som viria daqueles dispositivos, se fossem parte de uma composição musical de tantas do estilo heavy metal que costumava escutar ou mesmo um ruído mecânico mal identificado, mas sem sucesso. Por alguns insistentes segundos continuei ouvindo aquele som cada vez mais fantasmagórico, ficando cada vez mais nítido aquele apelo choroso.

O som choroso, de repente, cessou abruptamente.

Um frio na espinha me tomou conta.

Por puro instinto, comecei a conferir sem parar o retrovisor do carro, mesmo que não pudesse ver absolutamente nada devido a escuridão densa daquela noite. Minhas mãos começaram a congelar devido ao frio e ao suor em decorrência do nervosismo que havia me tomado. Na tentativa de relaxar, abaixei um pouco o vidro do carro na tentativa de fumar um cigarro, mesmo não sendo permitido fumar nos carros da empresa, "ligando o foda-se" para essa regra. Uma péssima ideia, pois a pequena fresta que deixei do vidro só gelou mais ainda o interior do carro me obrigando a jogar o cigarro fora e fechar novamente o vidro.

O choro de bebê novamente volta a ser ouvido por mim.

Incrédulo com o que estava ouvindo, decidi imediatamente suprimir por completo o som do carro para que finalmente pudesse identificar afinal que porra era aquela. Ao fazê-lo, baixando o volume do som carro, o choro do bebê ficara mais nítido. Meu coração quase saiu pela boca fazendo com que eu freasse abruptamente o carro provocando, como consequência, uma derrapagem e um rodopio sobre o a estrada recém pavimentada, parando por sorte sobre o acostamento em boas condições. Assustado com o ocorrido desci do carro já todo atravessado entre o acostamento e parte da pista, enfrentando o vento gelado daquela noite que caíra. Instintivamente pulei fora do carro deixando-o ligado e com a porta aberta. Olhei ao redor sem enxergar absolutamente nada devido ao breu dominante.

"O que tá acontecendo?"

Recuperei um pouco a calma e, após alguns minutos, retornei vagarosamente ao carro. Já não ouvia mais o choro de criança. Não sei por que cargas d'água, mas alguma coisa naquele momento me veio a ideia de abrir o porta-malas e verificar a carga que estava transportando, o que fiz com a lanterna do celular ligada segurando com uma das mãos totalmente trêmula. Aquelas alturas, já estava sentindo uma sensação de grito presa no peito, como se um sufocamento em decorrência do pavor que me tomou conta.

Sem saber o que deveria procurar, abri a tampa do porta-malas vasculhando toda a carga ali acomodada. Nenhum daqueles itens me chamava a atenção, pois estavam todos padronizados e devidamente lacrados, inclusive aqueles dois últimos entregues pelo estranho velho no início da noite. Inspecionei aquelas embalagens analisando-as externamente. Uma era um pouco mais pesada que a outra. Tomei a mais leve nas mãos e a chacoalhei, ouvindo um barulho, como se várias peças estivessem soltas e não bem acomodadas no seu interior. Não vi nada de suspeito, recolocando tudo no porta-malas e embarcando novamente no carro. Agora, estava com o pé lá no fundo, na expectativa de que pudesse acabar com aquela cena de terror o mais breve possível, mesmo que a realidade impusesse ainda quase duas horas de estrada naquela noite fria e tenebrosa.

Agora, durante o trajeto que faltava, me vinha a sensação de que alguma coisa pudesse estar no banco de trás do carro, deixando mais apavorado. Tudo por conta daqueles filmes de terror que costumava assistir, onde o motorista está sempre no primeiro plano da câmera e do nada salta alguma coisa de trás ou simplesmente aparece no retrovisor. Isso me deixava em completo pânico. Para tentar me acalmar um pouco, joguei meu celular com a lanterna ligada no banco de trás para iluminar um pouco aquele interior.

Dez minutos após retomar a estrada, os fachos de luz dos faróis do carro em luz alta iluminavam a certa distância o que parecia ser um homem coberto por um poncho escuro e botas correndo ao longo do acostamento com o braço direito levantado, segurando o que identifiquei ser uma espécie de faca grande ou adaga. A cena era impressionante, completamente inusitada e absolutamente assustadora. Na medida em que me aproximava com o carro daquele indivíduo, conseguia visualizar à frente dele outra pessoa em movimento. Correndo. Reconheci a silhueta de uma mulher de longos cabelos negros balançando ao vento e enrolada sobre o que parecia ser uma espécie de manta de cor clara e de pés descalços. Eu já estava a velocidade próxima dos 100km/h, fazendo com que a passagem por aquelas pessoas viesse a ser bastante rápida, mas o suficiente para entender que a pessoa de trás, que já deduzira ser um homem, estava tentando alcançar daquela outra, a mulher. Então consegui ver que o objeto que o homem segurava era, de fato, algo semelhante a uma faca, sendo o complemento para explodir meu desespero. Por conta disso, comecei a murmurar sozinho, dentro do carro e para mim mesmo:

- Meu Deus, Meu Deus... O que tá acontecendo?... Meu Deus, me tira daqui...

Meu pavor só aumentava, agora principalmente devido aquela cena. Em sentimento só aumentava quando me dava conta cada vez mais de que aquilo ainda estaria longe de acabar. Não havia sinal de posto de gasolina, casa ou mesmo algum veículo passando por ali, ao menos para dar a sensação de que não estaria sozinho na estrada ou que ela teria um fim.

Eu não parava de olhar para o retrovisor, quando de repente ouço um grande estouro e o carro começa a cambalear e a dançar sobre a pista. Me esforcei para manter o seu controle até conseguir pará-lo novamente no acostamento. Desci do carro para averiguar o que havia acontecido, percebendo de imediato que o pneu traseiro direito havia estourado. Agora, já do lado de fora, ficava constantemente olhando na direção que viera na expectativa pavorosa de ver aquelas duas pessoas correrem em minha direção sem sucesso, pois estava muito escuro. Entrei no carro novamente e o manobrei posicionando-o no outro lado da faixa de modo que os faróis iluminassem o sentido da pista em que estava vindo, tentando identificar alguém que se aproximasse. Sem perder tempo algum, descarreguei todo o porta-malas do carro em busca do estepe, o que felizmente estava em dia e calibrado. Apesar do estado de nervos sem igual, me concentrei em trocar logo aquela porcaria de pneu. O frio já não me incomodava mais, apesar do suor do nervosismo potencializar a sensação de congelamento, como se atingisse os ossos. Enquanto macaqueava o carro, ficava de olho naquela estrada totalmente escura iluminada apenas alguns metros pelos fachos de luz dos faróis na expectativa daquele encontro sinistro.

E nem sinal deles...

Nunca havia trocado um pneu tão rápido na minha vida. Ao terminar, nem penso em recarregar o porta-malas com a carga que trouxera, muito menos com o pneu estourado, ficando tudo espalhado pelo acostamento. Que se dane! Voltei ao carro e dei a partida. No entanto, antes de acelerar para retomar a estrada me pondo a fugir de toda aquela situação sinistra, alguns pensamentos mandavam eu tentar entender o que estava ocorrendo. Parecia que alguma coisa fizera com que eu me acalmasse novamente mandando eu averiguar a carga que estava levando, desta vez, de forma mais incisiva. Assim, desci do carro e catei as embalagens que ficaram no acostamento me detendo a atenção nas duas embalagens que o misterioso velho da caminhonete havia me entregue. Que entrega da fábrica nada! Alguma coisa fez com que eu começasse a pensar com um pouco mais de racionalidade sobre aquilo tudo. Valdir? Que Valdir? Nada se encaixava, mas eu já começava a maquinar que havia relação entre tudo aquilo.

Tomei uma daquelas embalagens na mão, a mais pesada, arrancando seu lacre para averiguar afinal o que tinha nela. Então minha primeira surpresa, tanto estranha quanto frustrante: três rolamentos de trator velhos e desgastados embrulhados sobre velhas folhas de jornal para dar mais volume e acomodar as peças na embalagem. Não entendi absolutamente nada. Por que raios me fizeram esperar até tarde para uma carga como essa? O que alguém iria querer com aquele ferro-velho?

Deixei de lado aquela caixa largando-a ao chão com aqueles rolamentos, agora soltos em seu interior. Apanhei logo em seguida a segunda caixa, rasgando de modo violento o lacre que a envolvia. Me acomodei sentando-me ao chão para inspecionar aquele volume abrindo suas tampas e iluminando seu interior com a lanterna do meu celular e revelando algo que pareceria impossível me deixar mais apavorado ainda. O conteúdo parecia ser uma ossada de um bebê, identificando facilmente seu pequeno crânio.

Eu queria, tinha vontade, mas não conseguia gritar. Minha única reação foi de paralisia diante daquilo tudo. Fiquei parado, atônito, com os olhos vidrados naquela caixa, quando de repente ouvi um latido e um rosnado. Buscando a origem daquele som tenebroso, me virei para trás me deparando com um enorme cachorro preto a poucos metros de distância. Seus olhos brilhavam e sua postura de ataque desnudava seus enormes dentes caninos, iluminado precariamente pela difusão da luz dos faróis do carro. Logo ouvi outro rosnado, agora vindo da minha esquerda, sobre um pequeno morro formado ao lado da pista. Mesmo através daquele breu, consegui identificar outro cachorro de mesmo porte que olhava fixamente em minha direção. O pavor que me dominou impedia qualquer reação minha. Mas, logo percebi, no entanto, que os cães não rosnavam para mim e sim para algo que estava mais adiante, onde surgiria a figura daquele homem de poncho e botas. Estando ele já diante dos faróis do carro, consegui ver nitidamente seu rosto enrugado e feio, sua barba longa, grisalha e desgrenhada segurando uma enorme faca, longa e fina. Ele se afastou lateralmente dos fachos de luz do carro dirigindo-se mais para a penumbra, o que permitiu exibir seus apavorantes olhos vermelhos e brilhantes. Então ele se dirigiu a mim:

- Larga isso! Deixa isso! Vai embora! Não te mete nessa história!

Lateralmente a ele, porém a alguns metros de distância, surgiu um outro vulto que, ao se aproximar da luz dos faróis, identifiquei pelas suas vestes que se tratava da mesma mulher que estava sendo perseguida por aquele homem. Vendo-a mais de perto, reparei em seus cabelos negros e feições bugras, quase indígenas. Ela estava com o rosto, as mãos e parte e sua manta sujas de sangue. Me voltei para aquele homem horroroso também vendo sinais de sangue em suas mãos e no facão que segurava. A mulher se dirigiu a mim aos gritos:

- Vai moço, leva ela, por favor! Salva ela, não deixa ele pegar ela de novo! Por favor, vai!

O homem então apontou a comprida faca para a mulher e esbraveja:

- Cala a boca desgraçada! tu nunca vai ter ela contigo!

Vi a mulher pondo-se a chorar desesperadamente. Ela continuava me olhando com seu rosto totalmente molhado de lágrimas de desespero, implorando a mim para que eu "vá e a leve". O homem, nitidamente emanando rancor e maldade, começou a dar passos em minha direção fazendo com que os dois cachorros começassem a latir para ele e a rosnar, sinalizando estarem prestes a atacá-lo. Percebi naquele momento que o homem havia mudado de postura, abaixando a longa faca e mudando sua expressão facial, demonstrando um medo aterrorizante daqueles animais, pondo-se a correr para fora da estrada, campo a fora sob a densa escuridão. Os cães então se lançaram em perseguição daquele homem numa ferocidade demoníaca fazendo-os sumir através da escuridão naqueles campos. Instantes após, passei a ouvir gritos do homem em conjunto com rosnados dando a entender que cães alcançaram-no, concluindo sua caçada. Nesse instante, a mulher voltou-se e me disse:

- Vai agora! Vai! Leva ela! Não deixa nada para trás senão ele vai atrás de ti. Vai! Carrega tudo e vai. Anda logo, por favor...

Eu estava completamente travado sentado no chão, assistindo incrédulo aquela cena de terror sem conseguir me mover.

Não sei por qual motivo, mas num sobressalto simplesmente me levantei a comecei a fazer o que aquela mulher me dizia. Recarreguei o carro do modo mais rápido possível colocando tudo o que tinha espalhado pelo chão de qualquer forma no porta-malas do carro, mas sem deixar de dar a devida atenção àquela sinistra caixa. Quanto a esta, foi perceptível a sensação de alívio daquela mulher ao vê-la ser acomodada no carro, desta vez no banco de trás. Após fechar o porta-malas e a porta traseira direita do carro, me voltei para a mulher com o objetivo de fazer perguntas e entender o que estava acontecendo.

Mas ela havia desaparecido, assim como o homem e seus gritos, os cães e seus rosnados. Não havia mais ninguém ali.

Buscando não perder tempo com meus pensamentos, entrei no carro, dei a partida fazendo meia volta com o carro retomando a viagem. Por todo o restante do caminho até a cidade de São Sepé, eu vi por mais três vezes a imagem daquela mulher em diferentes pontos da estrada, na medida em que os faróis iluminavam brevemente a via, acenando para mim como se estivesse acompanhando minha viagem com aquela macabra carga. E assim fui, por todo o restante daquela pavorosa viagem, assombrado por aquela mulher.

No fim das contas, havia saído de Dom Pedrito pelas dezenove horas chegando à loja matriz em Santa Maria pelas vinte e duas horas e trinta minutos, tempo que parecia uma eternidade. Não é preciso descrever muito como foi meu sentimento de alívio ao adentrar no pátio da empresa, sentindo estar rodeado de luzes e com sinal de celular num ambiente urbano novamente. A sensação de segurança voltou a tomar conta de mim, mesmo que o sentimento de incredulidade em tudo o que havia se passado nessa viagem viesse a perdurar ainda por um bom tempo.

"Será mesmo que tudo aquilo aconteceu".

Por incrível que pareça, creio que sim. A caixa no banco de trás do carro confirmava isso. Sabia, no entanto, que relatar tudo aquilo a alguém não seria algo fácil. Na verdade, quase impossível, pois iriam rir de mim, me chamar de louco, cascateiro ou até mesmo sugerir que viajei chapadão. Provavelmente irão me sugerir a escrever uma história a respeito (ops!). E aquela carga? Meu Deus, o que vou fazer com aquele troço? Como é que vou mostrar isso para alguém?

Ao estacionar o carro no pátio da matriz, não conseguia sair dele pensando nessas coisas. Porém, decidi que deveria elucidar o máximo possível, a começar por procurar o tal Valdir e questionar ele: "que porra de peças são essas"?

Meus olhos ardiam de cansaço, eu estava extenuado com tudo aquilo. Por alguns minutos me debrucei no volante do carro procurando relaxar e respirar um pouco. Foi nesse momento que voltei a ouvir aquele já familiar choro de criança, dessa vez acompanhado de um outro som, agora conhecido, vindo do lado de fora do carro. Levantei a cabeça e vi aquela mulher morena, parada bem à frente do carro, dirigindo-se a mim gritando o que pude entender:

- Cuidado, cuidado, cuidado!

Pelo retrovisor vi o horrendo rosto daquele homem, dessa vez com o rosto completamente sujo de sangue, postado no banco de trás do carro pronto a me atacar apunhando aquela longa faca.

Batidas no vidro lateral do motorista são dadas pelo vigilante em serviço.

- Vamos Augusto! Já são seis horas da manhã!

Sentia o calor de raios de sol sobre o meu rosto. Fui acordado. Olhei ao redor percebendo ter chegado são e salvo daquela viagem, devidamente estacionado no pátio da matriz da empresa. E ali caí no sono ficando inerte até o amanhecer. Um sentimento enorme de alívio toma conta do meu ser ao concluir que tudo não passou de um baita pesadelo.

Eu precisava ir embora, tomar um banho, me recompor e voltar a trabalhar. Mas antes, precisava desocupar aquele carro, o que implicava em descarregá-lo. Ao sair dele, Rogerio, o vigilante, me pergunta:

- Augusto, tu viu que a porta traseira direita do carro está aberta?

- Como assim Rogerio?

- Olha aqui, ó!

Rogerio me apontou a porta direita traseira estando ela apenas encostada, como que aberta recentemente. Imediatamente passei a inspecionar o interior do carro a procura de algo inusitado, pois o tal sonho ainda estava bem vívido em minha memória. Queria ter certeza se tudo foi realmente um sonho ou se aqueles ossos de fato existiam e foram trazidos por mim naquele carro. Flashes de memória me vinham à tona, como o inusitado pedido do tal Sr. Valdir e o frete que chegou tarde. Não encontrei sinal algum daquela caixa, o que de imediato me trouxe alívio, senão quando me deparei no porta-malas do carro com a estranha caixa de rolamentos velhos.

- Pra que isso? - Pergunta Rogerio, segurando um dos rolamentos velhos.

- Não faço ideia. Isso é coisa do Valdir. Aliás, Rogerio, quem é esse tal Valdir das peças? Ele é novo aqui na loja?

- Valdir? Não tem nenhum Valdir não!

- Como é que é?

- Não tem nenhum Valdir, Augusto. Conheço todo o time de peças daqui. Não tem não!

Fiquei mudo e perdido em pensamentos, só interrompido quando o Rogerio me chama novamente:

- Augusto, o que tu fez com esse estepe? Olha o talho nesse pneu tchê! Parece que tu enfiou uma adaga nele!

Continuei mudo, agora mais incrédulo com o que estava vendo. Imediatamente, minha cabeça se inundou de perguntas que fazia a mim mesmo: Era ou não um sonho? E esses rolamentos velhos? E esse pneu? E essa tampa do porta-malas aberta? Será que alguém a abriu e tirou alguma coisa daqui? Seria aquela caixa?

De repente, ao passar os olhos em direção à rodovia que passa bem à frente da matriz da empresa, avistei um homem de meia idade, aparentando uns sessenta anos, grisalho, alto, com tez serena e um suave sorriso no rosto conduzindo dois cães grande e pretos, com cada um deles em seus flancos, sem coleiras. Os cães imediatamente são reconhecidos por mim, assim como aquele homem: Valdir. Ele parou diante do portão da empresa como se me chamasse para conversar. Me desloquei ao seu encontro sendo recebido por ele com a mão estendida. Eu o cumprimentei sem trocar uma palavra sequer.

Então ele diz, ainda com um sorriso afável no rosto.

- Olá Augusto. já deve saber quem sou. Te peço desculpas por mentir pra ti, mas foi necessário. Meu nome não é Valdir e não sou seu colega na empresa. E sim, recolhi a caixa que tu trouxeste e tu sabes por quê. Ela precisava voltar para junto de sua mãe. Estava na hora. Obrigado.

O homem se despede com um sorriso, dando meia volta e desaparecendo bem diante do meu nariz.

- Tu viu isso Rogério?

- Isso o que?

- Nada, esquece - percebi que Rogério não havia testemunhado aquela conversa.

Algumas semanas se passaram com minha rotina restabelecida. certo dia, num dos intervalos de expediente, Eliézer se depara diante e mim e diz:

- Augusto, tu viu o que aconteceu em Dom Pedrito, bem quando tu foi pra lá?

- Não!

- Andaram roubando uma ossada de criança do cemitério municipal de lá. Cara, te lembra da história pirada que tu me contou?

Eliézer me chama diante do seu notebook me mostrando um artigo do blog de curiosidades e acontecimentos curiosos da fronteira do estado, uma espécie de tabloide daquela região, que relatava um roubo de ossada de uma criança. O artigo, além de descrever a notícia daquele furto, destacava que sobre essa ossada pairava uma história bastante triste e sombria que acabou tornando-se uma lenda de assombração local. Tratava-se de uma criança que foi tomada de sua mãe pelo seu avô por ela tê-la concebida solteira e, por conta disso, "sendo desonrada diante de todos". Conta o relato que o pai da moça, um rude e temido capataz de instância, devido a sua fama homem mau, sem limites e despido de sensibilidade, fora acometido por um estado de fúria por não aceitar a gravidez de sua filha, muito menos por ter dado a luz. Ele então, não mais tolerando a situação, teria sequestrado a criança e a matado, não permitindo ainda que a mãe sequer pudesse vela-la, nem mesmo aproximar-se de seu corpo após a morte. O texto ainda relata que o desnaturado homem fez sua filha deixar a cidade após o horrendo assassinato, tendo esta encontrado socorro e abrigo junto a uma família de grandes proprietários de terras que mudara seu domicílio para Santa Maria. O homem acabou sendo condenado e preso, morrendo na cadeia. Tudo isso ocorreu em meados dos anos 30. O artigo sensacionalista também vincula o desaparecimento da ossada à lenda da mãe da criança, cujo espírito era frequentemente visto pelo cemitério de Dom Pedrito rondando o tumulo de seu famigerado pai e de sua filha, pois o já velho condenado havia sido sepultado junto ao tumulo da criança, um assombroso descuidado por parte das autoridades e, provavelmente, o desejo macabro daquela alma desgraçada. Diz a lenda que o espírito da mãe sempre reivindicara sua filha, mas que o espírito de seu pai a impedia de tê-la de volta, mesmo em morte.

Dois anos se passaram após aquela mórbida viagem. Estava eu visitando uma loja de brinquedos a procura de um presente de aniversário para minha afilhada, quando ouço um choro de bebê que certa vez já tivera ouvido. Por mais uma vez, aquele arrepio tomou conta da minha espinha. Logo após o choro, no entanto, uma gostosa risada tomou seu lugar após doces e acolhedoras palavras da mamãe que a carregara. Eu me lembrei daquela voz também. Então, diante de mim estava aquela mulher de longos cabelos negros, cuja pele bugra e feições delicadas mostravam uma beleza singular da mistura mestiça entre o índio e o europeu, tendo em seu colo um bebê tão lindo quanto, sorrindo cintilantemente para mim.

- Dá "oi" para o tio, Verônica!

Sim, eu reconheci aquela mulher. Ela sorri para mim emanando um brilho sem igual. Ela dá as costas para mim e segue em direção à porta da loja. Vira-se brevemente e por último diz:

- Obrigada!

Quanto ao velho, o "Valdir que não é Valdir", até hoje não faço a mínima ideia de quem ele seja. O fato é que, nunca mais eu o vi.

Mas tudo bem. Se eu contar essa história, ninguém vai creditar.

Nem mesmo o Eliézer, que até hoje zomba de mim.

Lupus Noctem
Enviado por Lupus Noctem em 30/09/2024
Reeditado em 01/10/2024
Código do texto: T8163243
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