O Boi Fantasma - Esse texto é dedicado as Escritoras Cristina Gaspar e Iolandinha Pinheiro e também a um belo cãozinho chamado Ralph.

Há segredos que deveriam ficar guardados até que os vermes, gananciosos e sedentos, venham devorá-los e, enfim, regurgitá-los para sempre no fundo da terra.

Foi por volta dos anos quarenta quando trabalhava na Fazenda da Paineira. O proprietário: Senhor Chico Reis, tinha como meta alcançar a perfeição da raça Nelore. Naquela época não havia inseminação artificial e transferência de embrião. Tudo era precário, e se contava apenas com a monta natural, o que reduzia de forma drástica o número de indivíduos a serem selecionados. Foi então que por um capricho da natureza nasceu o Boi Fantasma. O bezerro precisou ser puxado e, com uma severa hemorragia, lua branca, matriz importada da Índia, veio a óbito. Meu único trabalho era cuidar do recém-nascido; assim seguia às recomendações do dono, que ao vê-lo ficou radiante com tamanha perfeição. Fui eu quem deu a primeira mamadeira, cujo colostro ordenhei ainda quente do cadáver da mãe. Não demorou para que o animal de pelagem rubra se destacasse entre a boiada. Era comprido, com costelas longas, arqueadas e espaçadas. Tinha a garupa e o peito amplos e a musculatura bem distribuída e volumosa na região onde se encontra os cortes mais desejados.

Com o passar do tempo os pelos vermelhos deram lugar a uma pelagem branca acinzentada. Comecei a chamá-lo de Fantasma, visto que em dias de prenúncio de tempestade, no alto do morro tendo ao fundo o céu cor de chumbo, ele se confundia com o firmamento. Depois como em um passe de mágica surgia imponente e brilhante como prata recém polida.

Famoso na região o garrote se tornou alvo de propostas exorbitantes, até que desapareceu. Chico Reis ofereceu uma grande recompensa a quem encontrasse tão diferenciado e promissor animal. Juro que chorei, eu tinha um carinho especial por aquela criatura. Mil coisas passaram pela minha cabeça. Entretanto, a que mais me atormentava era pensar que o coitadinho, antes de provar seu potencial genético, fosse abatido. Peguei meu cavalo, e sem pedir permissão ao patrão saí na vã esperança de trazê-lo de volta.

Foram meses até encontrá-lo em meio a uma boiada de invernada. Fui à sede da fazenda onde o animal estava e fingi estar a procura de trabalho. Falei sobre minhas habilidades, e para provar tive de montar e ferrar cavalos xucros. Contratado, não demorou para que chegasse ao meu conhecimento as atividades ilícitas as quais teria de participar. O proprietário, Coronel Cícero, era um homem sem escrúpulos que mantinha os empregados em regime análogo a escravidão. Seu braço direito era um sujeito de rosto pequeno e ossudo, o que lhe dava a alcunha de Cara Seca. Ouvi vários relatos sobre a disciplina imposta que adotavam para manterem os empregados cativos e aterrorizados. Mas tive sorte...

***

Vi a moça desesperada com a criança desfalecida nos braços. Apeei do cavalo e fui logo perguntando o que havia acontecido. Cristina era o nome da mulher que foi logo dizendo que a neném estava engasgada com um pedaço de pele de pato. Fiz os procedimentos de praxe e a garotinha voltou a respirar. A noite Cara Seca veio me agradecer. Eu não sabia que aquela criança era filha dele. Fiquei surpreso, Cristina era muito jovem e o crápula mais de cinquenta.

A imensidão das terras veio através da matança de posseiros. Cara Seca e seu bando faziam o trabalho sujo: dizimavam famílias para depois arrancarem as cercas e ampliarem os domínios do Coronel.

Passou algum tempo até que eu falasse sobre o belo animal que se destacava na invernada. Cara Seca estava com a filha que salvei nos braços. Iolandinha... até hoje me lembro da criança linda, que sempre que me via dava os bracinhos e sorria. Foi então que disse com naturalidade:

- O Senhor me permite falar sobre um boi da invernada?

O homem fez um muxoxo, colocou a menina no chão, que logo saiu correndo atrás de alguns pintinhos. Depois falou alterando a voz:

- O que tem a rês?

- Está com uma bicheira enorme na base do cupim e precisa de cuidados...

- E o que tem isso? Se morrer os capa preta agradecem.

- Com todo respeito, Senhor. É uma pena deixar um animal tão bom virar comida de urubus. Talvez o Senhor não tenha ainda conhecimento do touro que pode ser depois de erado. Sei avaliar um bom reprodutor. Pense na bezerrada grossa que vai nascer...

Cara Seca sorriu exibindo um dente quebrado e depois de zangar com Iolandinha, que finalmente havia capturado um pintinho para esmagá-lo, disse:

- Pode trazer pra sede.

Estava escuro e a majestosa sinfonia de galos ainda não havia começado a desvirginar a madrugada quando pulei da cama. Tomei uma caneca de café, arriei o cavalo e fui buscar o Fantasma.

O bicho estava amuado, deitado embaixo de uma árvore. Ágil girei o laço no ar e o capturei de primeira. Não reagiu a aspereza da corda. Sabia que era eu...

Determinado outra vez me dediquei a salvá-lo. Precisava deixá-lo forte para a longa viagem de volta. Já no curral, bastante debilitado, apliquei antibióticos e servi água e silagem de boa qualidade. A conversão alimentar era impressionante, e em pouco tempo já havia recuperado todo o escore corporal. O desenvolvimento acelerado e a beleza racial chamou a atenção do Coronel, que até então só tinha olhos para cavalos. O homem, quando na propriedade, passava grande parte do tempo admirando a formidável criatura, que somada a todas as qualidades relacionadas ao fenótipo, tinha temperamento dócil: algo raro para os nelores daquela época. Todos acreditavam que era cria da fazenda. Afinal, era um número incontável de cabeças que se reproduziam a ermo pelos milhares de alqueires de terra. Deduzi que para tirá-lo dali precisava agir com cautela, pois se fosse pego seria considerado ladrão de gado, e esse tipo de crime era punido com uma morte lenta e dolorosa.

A oportunidade veio quando soube que o Cara Seca e seus jagunços iriam mais uma vez alterar a divisa da fazenda. Com medo de ser incluído no grupo, dias antes capturei algumas abelhas e disse que havia torcido o tornozelo.

Quem me mantinha a par dos acontecimentos era um peão de nome Vitorino.

Ele acreditava que eu era foragido da justiça, e que o meu maior objetivo naquelas bandas era se esconder. Municiei a imaginação dele inventando histórias sobre crimes que jamais participei ou que teria coragem de participar. Assim, pelo o que inventei de mim mesmo, Vitorino acreditava que eu tinha grande chance de se tornar o novo administrador da fazenda.

Ciente de todos os detalhes, referentes a invasão das novas terras, falei que teria de dormir no estábulo e, mesmo correndo um grande risco, cavalguei veloz por boa parte da noite com a finalidade de alertar os posseiros. Eram oito famílias de sonhadores. O líder, um homem com traços indígenas, não acreditou em nada que falei. Decepcionado, acabei voltando.

Antes de partirem para o massacre, Cara Seca veio me ver. Precavido, capturei mais abelhas para que ferroassem meu calcanhar. Com o tornozelo quase explodindo, fiz cara de dor ao tocar o pé no chão: o desgraçado riu.

Os pistoleiros estavam eufóricos. Alguns visivelmente excitados comentavam o que fariam com as mulheres antes de matá-las.

Esperei que saíssem, e, alguns minutos depois, alegando que teria de levar o boi de volta para a invernada, também parti.

Eu ficava o tempo todo pensando qual seria o tipo de morte que teria, caso fosse capturado. Mas minha imaginação era pequena demais perto do que realmente poderia acontecer...

Sempre quando parava para descansar, rezava pela a alma do homem com traços indígenas ao qual tentei alertar e de todas as pessoas que, com certeza, foram mortas. Mas, de um jeito ou de outro, Cara Seca, conseguiu me alcançar. Eu tinha acabado de chegar em uma cabana de pescadores e logo fui dominado pelo sono.

Surgiram sem fazer barulho e me arrastaram para fora. O Boi Fantasma tinha a cabeça amarrada em um tronco e me fizeram ver seu crânio (tão bem desenhado) ser espatifado por um machado. Cara Seca fez o mesmo comigo, me atou a uma árvore, ergueu a ferramenta e bateu com força...

Acordei com o coração acelerado e com dor tão forte na cabeça que achei que ia morrer.

Quando cheguei à Fazenda da Paineira estava irreconhecível: magro, barbudo e com os olhos esbugalhados, cheios de pavor.

Chorando de forma compulsiva contei tudo para o Senhor Chico Reis. Floreei tanto sobre a carnificina que poderia acontecer, caso descobrissem o paradeiro do boi, que o patrão ficou tão atormentado com a possibilidade de ter a fazenda invadida, que logo perdeu o interesse por tão fascinante animal. Assim, sugeriu que ficássemos, em segredo, escondidos em uma outra propriedade, que por conta do difícil acesso, há décadas estava abandonada.

Aceitei de imediato e lá fui tocando o boi, subindo a serra em uma mula abarrotada de suplementos. O caminho de pedras era dominado por uma vegetação cortante que resistia a lâmina do facão. Levei uma semana inteira para chegar.

Subi tão alto que, mais um pouco, acho que tocaria o céu.

Parei no inferno...

Deparei-me com um casarão feito com tijolos de adobe, cujas colunas de braúna eram cobertas por trepadeiras selvagens. Os janelões estavam parcialmente abertos e movidos pela ação do vento acenavam para mim. Já o telhado enegrecido com suas lodosas telhas de barro davam-lhe uma aparência majestosa inerentes àqueles que resistem ao tempo.

Mal havia chegado, cortei cabos para as ferramentas e rocei ao redor da casa. Matei quatro cascavéis, tirei o couro e salguei a carne. No dia seguinte improvisei uma vassoura e rachei lenha para cozinhar as cobras.

Fiquei esquecido naquele alto de serra. Os mantimentos acabaram e se não fossem os animais silvestres, bananas e inhames que nasciam abundantes ao redor da mina d'água, morreria de fome.

Por diversas vezes pensei voltar; mas como achar o caminho se eu estava cego pelo medo?

Quanto aos animais quase não me davam trabalho, pois ficavam sempre nas proximidades. Infelizmente a mula adoeceu e, antes mesmo de ser abatida, já estava sendo devorada pelos urubus.

Um longo tempo se passou, e a solidão fez com que a realidade perdesse todas as amarras da razão.

Passei a conversar com o boi:

- Fantasma, pode me contar, eu sei que você entende o que digo e também sabe falar. Estamos só nós dois, pode dizer a verdade. Vamos, confesse!

Ele me olhava com o olhar débil dos bovinos até o dia em que menti e ele, tolo, acreditou:

_ Fantasma, vou lhe falar a verdade, cansei de ver você conversar com a mula Esmeralda. Quando fui espantar os urubus, sabia que já haviam comido os olhos dela? Aproveitei e disse: "conte-me o segredo dos animais e eu abrevio o seu sofrimento, caso não colabore será devorada ainda viva." Como vê, não há como negar...

O olhar da criatura se iluminou e após adquirir um brilho demoníaco, gritou:

-MALDITA MULA, VAI QUEIMAR PARA SEMPRE NO INFERNO!

Gelei e comecei a tremer de forma compulsiva.

O touro que já deveria pesar quase uma tonelada, esboçou um sorriso bestial, depois baixou a cabeça, raspou a pata dianteira no chão e veio...

Talvez no meu íntimo eu acreditasse mesmo em que os bichos pudessem falar, do contrário não teria forças para segurar a minha alma dentro do corpo.

De forma instintiva saltei o mais alto que pude, ele passou por baixo, freou bruscamente. Capotou. Tempo suficiente para que eu pudesse entrar no casarão e travar portas e janelas. Enfurecido, enquanto enterrava os chifres na parede argilosa, urrava fazendo surgir nuvens de poeira:

- NÃO HÁ COMO ESCAPAR, VOCÊ TEM QUE MORRER!

Apesar de muito antiga a construção era uma fortaleza. Foram incontáveis dias e noites de tormento. O touro passava o tempo todo tentando destruir o casarão. Tanto que arrancou as capas dos chifres que sangraram a ponto de encharcar os tijolões. Terra e sangue formaram um lamaçal de cheiro insuportável. A agonia parecia não ter fim e de tanto se chocar contra os paredões e portas de madeira maciça o maldito se fodeu.

Os cornos desapareceram dando lugar a dois poços de vermes que se derramavam para os orifícios dos ouvidos e olhos. Da cavidade óssea, onde antes estava o focinho, escorria um líquido purulento e fedido. O corpo dilacerado se tornou fonte de alimento para insetos e aves carniceiras. Gaviões rasgaram o couro e os urubus depois de comerem a carne começaram a brigar pelas vísceras.

Eu observava o dantesco esqueleto pele fresta da janela, ele caminhava para um lado e para o outro esperando pela minha morte. Chorei só de pensar que talvez, pelo mal que causei, teria como castigo morrer por inanição e, quem sabe, também apodrecer vivo. Tomado pela emoção comecei a gritar pedindo perdão ao Boi Fantasma. Confessei que menti, que a mula jamais me contou alguma coisa, que a matei para poupá-la de mais sofrimento. Falei também de como eu era bom para os animais, e ele, tenho certeza, sabia disso...

Atordoado abri a porta e fui em sua direção. Não temia mais a morte...

***

Fui encontrado pelo filho do patrão. Segundo ele, depois que comi um boi inteiro, com indigestão, estava queimando de febre ao lado de uma montanha de ossos. Espirituoso era o cara...

O velho fazendeiro, depois que parti, havia ficado um longo período em coma e quando acordou só teve tempo de falar sobre mim e morrer. Não contei nada do que aconteceu de fato. Continuei a trabalhar na fazenda, era o que eu sabia fazer. Mas nunca mais tive coragem de olhar nos olhos de um animal.

FIM

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 29/09/2024
Código do texto: T8162494
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