MARIA, MARIA, MARIA
É difícil achar uma história que é contada em mais lugares do que a lenda da loira do banheiro. Em toda escola tem um aluno mais velho assustando os mais novos, com relatos de supostas aparições de uma jovem morta após o cumprimento de determinado ritual. Socar três vezes a porta, dar a descarga, xingar, abrir a torneira. Há muitas receitas para invocar a assombração. Foi no fim da década de setenta, em Quirinópolis, que surgiu mais uma dessas versões.
Era uma noite agradável de festa junina em um colégio público do município. As famílias confraternizavam e acompanhavam as quadrilhas, desde a turma do infantil até a principal dança da noite: a quadrilha das turmas do segundo grau. Havia-se preparado uma pequena peça teatral para encenar o casamento.
O noivo era Francisco, rapaz encrenqueiro do terceiro ano; a noiva era Maria. Sua pele clara e seus cabelos loiros monocromatizavam com o vestido branco. Tinha o padre, os pais dos noivos, a amante, o pistoleiro, todos interpretados por alunos. Uma verdadeira comédia-pastelão que rendeu boas risadas.
Terminadas as danças e encenações, o povo se espalhou pelas barracas em torno da quadra de esportes. Maria com suas amigas de um lado, olhavam Francisco e seus amigos de outro, até que uma das meninas repreende a jovem:
— Ê, Maria! Cê já tá olhando pra esse Francisco, né?
— E ocê é minha mãe, por acaso?
— Maria, Maria! Não mexe com esse menino, que ele não presta! Meu pai disse que ele tá metido com um monte de coisa ruim. Aliás, ele falou que nessa família dos Dutra, ninguém vale nada.
Maria não dá atenção, segue fuzilando o rapaz com um olhar apaixonado, e ele retribui. O amigo de Francisco percebe o flerte e brinca:
— Casou mêmo hein, Chico?
— Casou o que, rapaz! Me respeita!
— Vai lá dar umas bitoca — fazendo biquinho, o amigo debocha.
— Bitoca? Cê vai ver o que vai acontecer hoje.
De olhos grudados em Maria, ele passa a língua nos lábios e caminha em direção às moças, que se dispersam, umas aos risinhos, outras fazendo cara de nojo, deixando Maria sozinha. Ao passar por ela, Francisco a cutuca de leve na barriga.
— Cê tá cheirosa, hein! — ele inspira profundamente ao aproximar o nariz do pescoço de Maria — Ê vontade docê, desgrama!
— Para de xingar, Francisco! Coisa feia!
— Feia igual ocê.
— Hum, até parece — Maria disfarça um olhar presunçoso e coloca as mãos na cintura — Eu sei que cê me acha linda.
— Pior que é verdade, e eu tô com saudade de te dar uns beijo.
— Só se cê namorar comigo — sorrindo com o canto da boca e apertando os olhos, ela coloca o dedo indicador no tórax de Francisco e o afasta.
— Eu namoro.
— Namora nada!
— Namoro, uai! — Ele a olha dos pés à cabeça — Só que namorado faz coisa de namorado.
— Calma, Francisco! Eu já te falei, não sei se eu tô pronta pra isso. Por enquanto é só beijo.
— Tá bom, mas que hora eu vou te beijar?
— Vamo esperar o leilão começar.
Maria se afasta sorrindo com a face ruborizada, enquanto Francisco contempla seu rebolado, mordendo os lábios.
Meia hora depois, todos se encaminham às cadeiras posicionadas em frente ao pequeno palco improvisado em uma das extremidades da quadra. O leilão vai começar. Francisco olha para Maria, que retribui a encarada. Os dois saem de fininho e se encontram no pátio (um coberto de quatro metros de altura, com acesso às salas em um dos lados maiores e aberto nos outros três) no lado oposto de onde o leiloeiro prendia a atenção dos presentes. Sem que nenhuma palavra fosse dita, matando o desejo que ardia, eles se abraçam e se beijam. No início, carinhosamente, até que a mordida da contemplação vira realidade, e ele mordisca bochecha e pescoço de Maria.
— Calma, Francisco!
— Tô calmo, uai! Quêqui foi?
— Vai devagar! — Maria empurra ele.
— Mais devagar?
— Eu fico com medo de alguém ver — Ela olha rumo a quadra e sua respiração se torna pesada.
— Ninguém vai ver a gente aqui.
— Sei lá! E se passar alguém?
— Então bora ali pro banheiro — Francisco aponta para as duas portas no centro do pátio.
— Pro banheiro? Cê tá doido?
— Vamo, uai! Lá ninguém vê a gente. O pessoal tá usando o outro banheiro, de lá da quadra.
— Francisco, não!
— Vem! — ele puxa Maria pelo braço — Eu não vou te fazer mal.
Maria para em frente à porta, olha para o alto e vê o letreiro em cima: MENINOS. Ela pensa, resiste por alguns segundos, mas, por fim, entra. Francisco clica no interruptor ao lado da porta e as luzes do banheiro se apagam, Maria rapidamente as liga de novo.
—Nem vem, Francisco. Pra quê apagar as luz?
— Pra ninguém ver a gente, uai — Francisco desliga outra vez.
— Cê tá querendo é fazer safadeza — Maria liga novamente.
— Se tiver escuro e alguém chegar, dá tempo da gente esconder no box.
Maria consente, Francisco apaga as luzes pela terceira vez, sobrando ali apenas uma penumbra gerada pela iluminação da festa que adentra através de um vitrô. Eles passam pela bancada com duas pias e um espelho na parede e, mais à frente, três mictórios de um lado, três boxes do outro. Francisco a encosta contra a parede dos fundos e torna a beijá-la, de início lentamente, mas logo acelera de novo. Coloca as mãos em seu pescoço e vai descendo até encostar em seus seios. Maria reluta um pouco, enquanto ele desce beijando-lhe o colo e, então, puxa sutilmente o decote.
— É sério, Francisco! Vai devagar!
— Mais devagar, Maria? Tô te beijando há um tempão, cê nunca deixa eu fazer nada.
— Eu não sei se eu tô pronta.
— Só vai saber se tá pronta quando fizer.
— Tá, mas eu não vou fazer no banheiro da escola, né?
— Toda vez cê fala isso, não vou fazer no meio do mato, não vou fazer na casa de fulana, não vou fazer no banheiro da escola. Então eu decidi que vai ser hoje mêmo — Francisco volta a morder os próprios lábios enquanto levanta o vestido dela.
— Não, Francisco! Para agora!
— Para nada! — ele soca três vezes a porta do box — Vai ser hoje!
Ela começa a chorar, mas isso não detém Francisco, que abre a porta, empurra a moça para dentro do box e a morde no pescoço com ferocidade. Maria tenta gritar, mas ele tapa-lhe a boca. Ela se desvencilha e cai sentada na privada. Com a virilha do rapaz a um palmo do seu rosto, ela ergue os braços e sua mão encontra a corda da descarga, Maria a puxa e se levanta novamente. Francisco abrindo a braguilha a olha com desejo pervertido:
— Hoje cê vai me dar, desgraça!
Debatendo-se, Maria chuta a porta, mas Francisco fecha o trinco. Ela arranha as paredes do cubículo, um azulejo quebrado então se solta, ela o agarra e golpeia o pescoço de Francisco, que paralisa no mesmo instante.
Os dois se encaram com olhos arregalados, ele, com a respiração presa e ela, ofegante titubeia:
— Te machuquei muito? — Maria puxa o caco de cerâmica e o sangue esguicha em seu rosto. Boquiaberta, ela olha para seu vestido branco tingido de vermelho e depois para Francisco.
— Maria! Quêqui cê fez, Maria? Mari…
Ele desaba no chão, agoniza por alguns segundos se contorcendo cada vez menos, até que para. Estarrecida, ela se abaixa lentamente, o abraça e o beija. Coloca a mão em seu pescoço, mas o sangue já não flui mais.
…
Por mais alguns segundos permanece o choro do luto, até que lhe vem o alerta:
— Meu Deus! Quêqui eu fiz?
Ela se levanta, vai até a pia, abre a torneira e começa a se lavar. Só então liga a luz e se vê no espelho. O cabelo despenteado, manchas negras de maquiagem descem dos olhos até o queixo e, da boca até a pelve, tudo é vermelho.
Maria tenta engolir o choro e, vagarosamente, vai saindo de fininho. Observa se não tem ninguém próximo, caminha até o pátio, olha para a quadra e vê que todos ainda acompanham o leilão. Ela então retorna ao banheiro.
— Quêqui eu vou fazer? Ninguém vai acreditar.
Maria olha novamente Francisco, e o desespero volta ao luto. Ela senta em frente ao corpo inerte, tapando a boca com as duas mãos para abafar o choro que sai em soluços agudos. A falta de perspectiva lhe traz à mente a única ideia de como se livrar daquele pesadelo. Ela olha o ponto do ferimento fatal de Francisco, o procura em si mesma, apalpando o próprio pescoço e percebe que o local havia sido mordido por ele mais cedo. Maria pega o pedaço de azulejo e com as mãos trêmulas o aproxima de sua garganta. Ela hesita, fecha os olhos e, com um movimento brusco, corta a própria carótida. Rapidamente, ela sangra e cai em cima do corpo do rapaz.
Horas depois encontraram os corpos, a cidade estava em choque. Por muito tempo, só se falava a respeito dos noivos da quadrilha. Com o tempo, sobraram só os relatos, mas fugindo do seu trágico destino, a alma dela permaneceu lá, se escondendo atrás das portas, embaixo da pia, se trancando dentro do box. Desnecessariamente, pois ninguém pode vê-la. Apenas uma coisa supostamente evidencia sua aparição. Se por um momento em seu calvário agonizante, ela acreditar que esteja "vivenciando" novamente aquele momento de terror.
Três anos se passaram até que uma coincidência trouxe a história de volta à tona. Ao entardecer de um dia quente, durante um campeonato esportivo na mesma quadra, três adolescentes entraram naquele banheiro gritando:
— Ganhaaamooo! — Rodrigo liga e desliga as luzes repetidamente, Chiquinho abre a torneira para se refrescar e Tonhão entra em um dos boxes.
— Agora é só comemorar! — Rodrigo grita.
— Comemorar com as moça! — Chiquinho responde.
— Com a moça, no seu caso, né — Rodrigo olha para ele através do espelho e tira sarro. — Ai, Maria Eduarda! Eu te amo!
Tonhão solta uma gargalhada vinda do box. Chiquinho estufa o peito e desdenha o deboche:
— Pode falar o que cê quiser. Hoje a Maria Eduarda vai me dar. Cê vai ver.
Tonhão puxa a descarga e sai do box rindo:
— Ê, Chiquinho! Eu também acho que cê tá apaixonado, hein! Vai casar com a Maria Eduarda.
Os três riem e seguem trocando ofensas amistosas. Quando as risadas diminuem o volume, o vento assovia ao passar pelas frestas do vitrô.
— Oxe! Que barulho é esse? — Tonhão pergunta.
— É o vento, uai! — Rodrigo responde.
— Eu sei, mas fez outro barulho ali no vaso.
— Cê tá ouvindo coisa.
— Escuta! — Tonhão com uma mão coloca o indicador em riste frente à boca e posiciona a outra mão próximo à orelha. Os três permanecem em silêncio, mas não se ouve nada.
— Tô falando que cê tá escutando coisa. Tem nada ali nã…
Até que se ouve um som agudo vindo dos boxes.
— Eu ouvi — Chiquinho interrompe — Faz silêncio, Rodrigo! Isso não é barulho de vento, não!
Os três voltam a se calar, aguardam alguns segundos até que, bem baixinho, ouvem sopros abafados, com a frequência de uma respiração ofegante. O som vai aumentando o volume até que Rodrigo também confirma, abaixando o tom da voz:
— Oxe! Agora tô ouvindo também. Diabeísso? Parece um choro.
Os três se entreolham calados.
— Será que tem alguém aqui? — Chiquinho sussurra, enquanto caminha lentamente rumo aos boxes. Ele passa pelos dois primeiros e ao se aproximar do último, dá uma fungada — Cês tão sentindo esse cheiro de perfume?
Ouve-se o click da fechadura trancando por dentro. O choro de tristeza se torna de desespero e, aumentando o volume, torna-se ainda mais audível para os três, que arregalam os olhos.
— Tem uma mulher chorando aí dentro.
Chiquinho grita, enquanto soca três vezes a porta:
— Quem tá ai, desgraça?
Uma pancada abre subitamente a porta de dentro para fora. Ao se afastar, Chiquinho cai e vê pelo vão inferior da porta, um vulto branco saltar do chão para a privada. Um grito agudo ensurdecedor ecoa pelo local, Rodrigo e Tonhão fogem imediatamente.
O choro é cada vez mais intenso. Chiquinho se levanta, mas sente uma tremedeira nas pernas que quase o derruba de novo. Sua mente curiosa quer averiguar, mas seu corpo não responde. Ele hesita, e quando enfim consegue dar o primeiro passo, o choro cessa. Agora ouve apenas o som da água saindo da torneira, que ainda estava aberta, mas ao se encaminhar para fechá-la, sente uma friagem nas costas e o cheiro de perfume que sentiu quando estava próximo ao box. Ele ergue a cabeça rumo ao espelho e paralisa ao ver, logo atrás dele, a jovem loira ensanguentada, com a pele pálida e os olhos opacos.
— Quêqui cê tá fazendo aqui? — Ele titubeia.
A face da assombração ganha feição de ira e ela grita em tom raivoso:
— Eu não tô pronta!
FIM.
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