Brigitte passava todos os dias pela ponte. Atravessava o Rio Lençóis às seis da manhã, indo pro trabalho. Gostava de acordar cedo e passar cedo por ali, antes das pessoas até mesmo ensaiarem a falar alto. A névoa ainda povoava o centro muito mais que pessoas. Às vezes um bêbado de virote passava calado, tentando não cair… a essa altura não pediria mais nada, nem mais uma dose, nem comida, nada… Talvez a única coisa que quisesse fosse uma carona pra casa. E isso estava longe de conseguir…
Brigitte parava bem no meio, da balaustrada, observando a água em seu ritmo. Estivesse cheia ou rala… e dava um longo suspiro. Era como se este suspiro a enchesse de vida. Não percebeu o homem que se aproximava, portanto já estava quase se encostando nela.
– Você não pode me dar dinheiro. – Ele afirmou… – Brigitte daria (com o susto) uns três ou quatro passos pra trás, mas cairia no rio se o fizesse.
– Não, não tenho dinheiro… Perdão pelo susto, estava distraída aqui. BOA SORTE pra você! E já foi se virando pra ir embora rapidamente.
– Mas você pode deixar eu usar seu celular? Só um minutinho… não? Minha mulher está em Valença, ela está tentando voltar de lá, me ligou da rodoviária há algumas horas… eu mandei um dinheiro pra ela, não sei se chegou…
Brigitte odiava que lhe dessem muitas explicações sobre coisas que não poderia ajudar. E odiava gente pidona. Olhou no rosto do homem enquanto ele falava. Depois o olhou diretamente nos olhos, enquanto tirava o celular da bolsa. Não fazendo a menor questão de transparecer a má vontade em atender-lhe o pedido. “cara de pidão, odeio disso!”.
– Gratidão amiga. – Ela respondeu com um frio e severo “RÃ…!”. Ele tentou várias vezes ligar e a pessoa do outro lado não atendia. Fez uma cara frustrada, devolveu o celular.
– Agora é assim… se a pessoa não reconhece o número, ela não atende. – Concluiu Brigitte sem muita paciência. Aquele era pra ser o momento dela, e aquele idiota estragou tudo… Passaria o resto do dia atendendo pessoas, com suas demandas. Era recepcionista de um grande pousada da cidade. Resolveria demandas e reclamações em inglês, francês, espanhol e português. Aquele momento do dia, em frente a ponte era muito importante. E o babaca tinha acabado com ele.
– Era quase onze horas da noite quando Brigitte saiu da pousada. Tudo que ela queria era detonar um cachorro quente, comer um chocolate com Coca-Cola… E quem sabe, assistir ao novo capítulo de Bridgerton. Amanheceria na rede as cinco da manhã. E procuraria seu lugar de paz outra vez. Estava programando sua noite e sua manhã na cabeça. Esse era basicamente seu trabalho, era muito boa nisso. Vinha andando por uma rua, que era na verdade, uma ponte pra lugar nenhum. Tão florida que durante o dia os turistas andavam por ali como quem anda nos Jardins do Éden. Mas durante a noite, era um lugar escuro, cheio flores e mato, um lugar tenebroso. Abraçou sua prancheta contra o peito e foi andando rapidamente. Não sentia exatamente medo, pois era uma cidade onde nada de terrível acontecia, mas se sentia estranha… Chegou a pensar em assombrações; tentou evitar esse tipo de pensamentos com louvores e músicas da igreja, mas às vezes eles vinham à tona.
Foi quando viu um vulto que a esperava na esquina no próximo poste, o único poste que estava… desgraçadamente apagado. Seu coração congelou, pelo cabelo e a roupa, já sabia quem era. “O que ele está fazendo aqui mês esperando quase 11 horas depois?!” – O que era medo começou a se transformar numa indignação, uma raiva que subia a cada vez que ele ficava mais nítido.
– QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI??!!!
– Desculpa moça! É que minha esposa não chegou e eu precisava do telefone emprestado pra ver se conseguia…
– EU TENHO CARA DE TELEFONISTA??!! DE ORELHÃO?!
– E que você foi tão gentil…
– GENTIL É O CARALHO!!! CÊ SABE O QUE VAI ACONTECER SE EU CONTINUAR GRITANDO??!!! SE VOCÊ NÃO ME DEIXAR EM PAZ??
– Eu não tenho intenção nenhuma de assustar e nem machucar a senhora. Eu só estou desesperado… Sabe… quando uma pessoa… é a única pessoa no mundo que gosta de você…?
Brigitte fez um subido silêncio. Um pigarro e um silêncio. Ele se referia a algo que ela mesma não tinha mais. O máximo que tinha eram dois gatos… Dois seres que nem falavam com ela. E que ela… só de se imaginar sem eles, sentia calafrios. Aquela mulher devia ser realmente importante, pois ele era um puta chato.
– Toma… vai… tenta ligar outra vez. Talvez vendo o número várias vezes ela entenda que é alguém conhecido procurando por ela.
– Ele sorriu, já meio choroso… (isso também foi um fator decisivo para Brigitte; odiava que as pessoas chorassem pra ela) e pegou o telefone e começou a discar. Apertando com força.
– Não é um orelhão, é só encostar que ele vai, amigo…
Ele tentou várias e várias vezes e nada. Devolveu o celular sem nenhum contato visual com Brigitte. Como se a mesma fosse uma irmã mais velha que apontaria os dedos indicadores e começaria a gargalhar, dizendo: “Eu avisei ha ha!! Eu avisei ha ha!!”. – Brigitte pegou rapidamente nos ombros dele e disse: – Relaxe amigo, tudo vai ficar bem, talvez você esteja se preocupando a toa… talvez ela já esteja a caminho! Ele suspendeu os olhos, entre os cabeços e rosto empapados de suor de quem ficou o dia inteiro na rua vagando e sorriu um sorriso insano. Mas não se pareceu com a insanidade de um maníaco estuprador ou assassino. Parecia a insanidade daqueles adultos com mentalidade de criança. Brigitte foi tomada por um sentimento forte de compaixão.
No dia seguinte, já por volta de meio dia, estava comendo rapidamente. Um ônibus de hospedes chegaria por volta das 14h. Brigitte estava comendo uma quentinha na porta da pousada.
– A… Amiga… – Estremeceu.
– O que você tá fazendo aquiii?? – Ela sussurrou. Fazendo um gesto com a mão como quem afasta um inseto.
– Você estava certa… Ela chegou!
– E pra quê CARALHO você veio me falar isso??!!
– É que ela é cozinheira… profissional, sabe? Então ela preparou um vatapá pra você, porque todo mundo me trata mal e você me tratou bem.
– Ai, meu Deus…Ok. Que dia…?
– Ué… HOJE! A gente vai deixar quentinho às 23h porque sabe que a senhora sai tare.
– Mas depende de onde seja…
– É bem perto dali… de onde você fica olhando o rio… A gente sempre te vê olhando o rio de manhã.
Aquela conversa pareceu destruir todo o dia seguinte de Brigitte. A chegada dos hóspedes, todo a gastação de seu português, inglês, francês e espanhol… toda aquele requinte e chiqueza que ele estava proporcionaria aos novos hóspedes… e o momento em que seria “agraciada” por sorvete na cama e seriados românticos… tudo se transformava naquele vulto. Naquele vulto carente… e provavelmente, aquele homem a transformaria numa espécie de “heroína” da porra duma história onde ela só emprestou um celular e mais nada. Não sabia o que seria pior… Se tivessem mais amigos na festa, e ela conhecesse uma frota de pessoas como ele…ou se só tivessem eles três e eles tentassem ficar mais íntimo. Como parentes. Ela não conseguiu, o dia inteiro, pensar em mais nada.
Saiu do trabalho… Agora apertava a pasta contra si, porque percebia que isso simplesmente diminuía (um pouco) a tensão. E mais uma vez, como esperado, viu o vulto de longe. Ele tocava violão e cantava. Brigitte chegou interrompendo:
– Cade sua mulher?!
– Ué… tá esquentando a comida.
– E tua casa é aonde?
– Naquela direção… – e apontou em direção ao rio, em direção a Gameleira.
Brigitte chegou a pensar que não tinham casas naquela direção, mas decidiu que não seria mais tão pessimista assim. Estava sendo ranzinza demais. Tentaria ver o lado bom das coisas… Afinal, tinha ganhado uma comida baiana de graça… só por ter sido uma pessoa boa. Subitamente tentou acreditar que era uma pessoa boa.
– Vamos lá então… amigo. – ela disse, sorrindo.
– VAMOS!… AMIGA!! – Ele respondeu.
…
Brigitte, e o casal… jamais foram vistos de novo.