Natureza Morta
Recebi uma ligação do hospital, minha mãe fora encontrada caída na calçada pois sofrera um derrame. Como eu era seu único filho, a levei para casa após a alta médica e, por orientação de que repousasse, a alojei no sofá da sala, evitando que subisse as escadas. Não houve grandes sequelas, mas era preciso observar.
Tirei os cavaletes, as telas e as pinturas do espaço, mamãe nunca aceitou eu ser um pintor. Não vê-la há cinco anos já demonstrava o quanto me fazia falta sua aprovação, porém, a obrigação legal me colocava a cargo da situação.
Um dia acordei sem o barulho irritante do seu andar manco sobre o chão de madeira. Da ponta da escada eu vi que ainda dormia, cheguei perto e notei que estava sem pulsação, com o cobertor sobre a barriga, os olhos semicerrados e a boca aberta, ela parecia ter esvaído há poucos instantes.
Sentei à sua frente, parecia relaxada dormindo como um bebê. Pensei o quanto aquele ser me soava alheio, custava-me conceber que um dia eu havia saído dali. Sequer me evocava estranheza estar diante de um cadáver, estava mais para um objeto cujas formas geométricas e a composição física eram atípicas.
Fui tomado por uma inspiração, queria eternizar aquele momento. Montei o cavalete, peguei os pincéis e as tintas e a reproduzi, transpassando para a tela a imagem de seu sono eterno. A obra foi concluída em poucas horas. Sentia-me realizado, finalmente algo de que se orgulhar, consegui captar o profundo silêncio e a ternura no seu semblante. Tudo tão realista como nunca consegui em outras pinturas, a sensibilidade dos traços beirava a perfeição e, pelas pálpebras semicerradas, o olho era uma pequena janela por onde alguém daria adeus.
O artista falou mais alto em mim, não dei nota de seu falecimento. Durante os doze dias que se seguiram reproduzi o progresso da natureza, doze telas que definitivamente mudaram a minha vida.
Quando notifiquei o hospital, fui questionado pela equipe médica, serviço social e até pelo conselho do idoso. Minhas respostas não foram as mais convincentes, mas o delegado, que foi meu aluno num curso livre de artes e que enfeitava seu escritório com uma de minhas paisagens, não abriu inquérito. Fui sim chamado de displicente por viajar e deixar uma idosa doente sozinha, mas pelo menos não respondi por ocultação de cadáver.
Minhas habilidades manuais nunca estiveram à altura de minha capacidade imaginativa: estas não eram as telas de paisagens bucólicas expostas nas feirinhas de artesãos. Havia algo conceitual, pungente e original.
Ganhei um concurso regional, um agente se interessou. E aí seguiram: mídias especializadas, redes sociais, caderno de artes, galerias renomadas, São Paulo, Rio, Buenos Aires, até as obras serem arrematadas num leilão por um comprador de Amsterdã.
A crítica questionava se eu manteria o mesmo nível estético. Afinal, um artista regional, fora do eixo Rio-São Paulo, poderia ter sido apenas um lampejo de genialidade momentânea.
Quando tive a proposta de uma exposição exclusiva, me deparei com a realidade, não havia outra inspiração, tentei pela imaginação, filmes grotescos, livros forenses, mas tudo soou como cópia. Faltavam alguns elementos, como ressaltou o apresentador do programa Arte em Foco: a “organicidade da obra”.
Eu precisava imergir no cheiro, na atmosfera, no ato da vida se ausentando, assim como um urubu que observa o pré-cadáver para banquetear da carniça, eu precisava alimentar a alma ao ponto de transbordar. As doze telas levaram-me a um lugar que eu precisava manter.
Com o dinheiro do leilão reformei meu ateliê transformando-o num estúdio com paredes antirruídos e um vidro espelhado e blindado, onde montava meus cenários. A primeira modelo foi uma frentista. Ela disse algo sobre a tela no banco de trás do carro enquanto abastecia, sorriu com um pouco mais de gentileza, esperei o fim do seu turno e a levei para casa. Um comprimido na bebida e quando acordou já estava no estúdio, nua de trás do vidro onde só é possível ver o próprio reflexo.
Exceto um catre de madeira amarga, importante detalhe, pois no auge da fome eles tentam comer qualquer coisa. Matar pela primeira vez é como sexo: se for guiado pelo instinto você acaba sabendo como fazer, mas só o tempo e a prática aprimoram a técnica. O meu método basicamente é o “não fazer”, quando colocadas na sala, após horas sem beber ou comer, a natureza segue seu curso, o ato reverso da criação, devolver ao pó, a morte por inanição.
“As Estações” foram 4 telas que ganharam ainda mais visibilidade. A nota de um crítico no jornal disse que a perspectiva e os traços não traziam nada fora do convencional, mas enfatizou a paleta de cores peculiares e a maestria como eu transpassava para a tela emoções obscuras e tão raras de captar.
Projeto esboços enquanto assisto as emoções contidas pelas paredes... medo, dor, fúria... monto o cavalete e espero. No ponto alto do desespero, quando a parede abdominal retorce e as entranhas mandam toda a energia para que o cérebro permaneça ativo, vislumbro o olho arregalado, a boca seca, a musculatura retraída pelas câimbras.
A modelo perde o sentido em agonia e se esvai. Aí o pincel deslancha pela tela branca compondo a tragédia. Mesmo com toda a dor da fome e o medo, a total ausência de respostas é o que mais as aflige, elas esperam que num dado momento uma porta se abra com uma explicação, talvez um castigo, vingança ou sequestro. Nada disso. Trata-se do privilégio de eternizar-se numa moldura, talvez, o ponto alto de suas vidas.
Com tempo me aprimorei nos processos de decantação e preservação da matéria-prima e passei a entender que fluidos de um corpo com vida tem cores diferentes de um morto... variações do tom de pele, idade, percentual de gordura contam. Com sangue, pus, fezes e bílis consegui montar uma paleta de cores exclusiva. Ao contrário do que se pode pensar, meu público não está na Dark web, em porões sujos, fascinados com o horror. São pessoas finas, mas desprovidas do senso de realidade, sujeitas à influência da crítica que escolhe sem muito critério o que é de bom gosto. Não vou falar sobre traumas de infância, ou terceirizar minha culpa, fiz o que fiz pela arte, cabe à crítica dizer se tive êxito.
Ouço uma batida no vidro, puxo a cortina e vejo o rapaz por de trás do aquário: a fome e a sede a deixa confuso, cansou de praguejar, agora só chora, já deve supor porque está aqui. Jornalista curioso, rondando há certo tempo, coletando informações que associam o desaparecimento de pessoas aos quadros. Foi mais fácil que os outros, essa gente não tem muita noção do perigo, prometi uma exclusiva e ele veio até minha casa, mas não darei a ele os quinze minutos de fama.
Sei que seu sumiço fará com que a polícia, num dado momento, chegue a mim. Afinal, um jovem de classe média não é como os indigentes que somem todos os dias. Não tenho mais tanto tempo, o retrato ainda com um sopro de vida. Ele balbucia, chora, tem espasmos “A curiosidade matou o gato”, este deveria ser o título da obra?
O pano de fundo é a escuridão completa, um lampejo de luz entra pela direita e ilumina seu rosto esquelético. É só um esboço mais elaborado, quando termino ele já não respira. Este não terá os progressos da decomposição, todo bom artista partes deixando uma obra inconclusa. Assumo a autoria do sequestro e a morte dos 19 desparecidos, cuja lista está pendurada no cavalete.
O resultado, as 54 telas, algumas em museus, outras de coleções particulares. No fundo da casa, atrás da edícula, estão enterrados os restos mortais. Já os fluidos corporais, suponho que vocês saberão onde encontrar.
Meu próximo trabalho exigirá muito, tudo que tenho será exaurido, espero que a crítica entenda o quão visceral tentei ser nesse quadro. Posto atrás de mim uma tela branca quadrada de 2 metros, a reclino em 40 graus, pois não quero que a bala fure a tela. Espero que as orientações de como fixar e conservar a matéria sejam seguidas à risca. O vermelho escarlate se destacará ao mesclado tom cinza turvo e outras inúmeras 50 cores indefinidas. Assino no canto inferior esquerdo. Não tenho o hábito de assinar antes, mas, por uma questão óbvia, o faço.
Esta página branca será uma poesia concreta, ossos, dentes, cabelos e um emaranhado de massa disforme comporão em alto relevo a minha obra-prima. Gostaria muito de discrição, mas sei que os jornais não darão trégua, não pretendo estar aqui para lidar com o escândalo.
Parece egoísmo, mas meu sacrifício, assim como o dos infelizes cujos restos jazem eternizados em minhas obras, foi apenas uma tentativa de elevar a arte e enaltecer a beleza da natureza morta