Osso
"O som trazia uma promessa tão sinistra quanto o zunido de bombas caindo" (Kurt Vonnegut)
Fora flagrado de cócoras, encarando o chão, de frente para parede, tão imunda quanto o cômodo da tapera abandonada há décadas. Os rapazes que o encontraram asseguravam que dele partia um barulho estranhamente familiar, como se houvesse uma impressão nostálgica de um passado que se repetia no presente com natural aceitação.
Frajola, apelido do mais velho, um dos que escapara, falou ao delegado que tudo havia sido muito rápido e contingente. Ele, nem mesmo, sabia dizer porque estava sentado ali, em frente a autoridade, uma vez que a violência parece ser uma manifestação física tão aleatória que acaba tendo um propósito muito bem definido. Lá, no caso, mergulhar todas as testemunhas em sangue e colher o espólio da agressão.
Teodoro, o delegado, escutou com cautela e fleuma. Anos vendo coisas assim, e até piores, o haviam vacinado contra emoções súbitas diante do absurdo. Terminou de recolher o depoimento do rapaz, o despediu da entrevista, saiu da sala, passou pelos outros poucos traumatizados filhos da desgraça de há pouco, e colocou-se em diligência atrás do acusado.
***
A cidade possui suas histórias, como todo município que preze por um punhado de "dizem" para alegar uma identidade própria. Uma delas versa sobre alguém, ou algo, é o que garante a geração mais antiga das ainda vivas, claro, sôfrego por um expediente aterrorizante. Que se registre, aconselham os provectos e eminentes senhores da pequena cidade: nunca se viu, para sermos fiéis a verdade e assim crédito emprestar ao relato. Mas, se ouviu.
Se bem que, ver ver mesmo, alguma coisa sim. Sangue. Muito. Mas, só depois de ter escutado. O quê? Bem. Imagine ratos. Vários. Famélicos. Eis sua noção.