MORADAS - CLTS 28
Uma lua em tons cor de rosa banhava a estrada de terra batida quando um carro grande se aproximou lentamente e parou. Um homem bem vestido e idoso desce do veículo. Seus passos são lentos, porém firmes, demonstrando uma certa urgência. Subitamente ele para, acende um charuto e fica a olhar para a imensidão do infinito. Perdido em pensamentos ele fica encarando uma velha ponte de pedras à sua frente.
Os olhos do homem perscrutam o ambiente ao redor. A fumaça que sai de seu charuto forma desenhos estranhos que logo são dissipadas pela brisa do lugar. Seu coração bate forte. Não é medo o que ele sente e sim a angústia guardada por trinta e cinco anos de espera.
Ele não sabia dizer se a sua vinda até aquele lugar faria alguma diferença. A esperança que o trouxera ali era frágil, quase um suspiro. Se nada acontecesse restaria a ele curtir o pouco tempo que ainda tinha.
*****
O bonito relógio na parede informava que as horas já estavam adiantadas. Lá fora a noite fria e silenciosa era iluminada apenas pela luz fraca dos lampiões em seus postes. As ruas da pequena e próspera Murajá estavam vazias naquele horário, seus moradores já tinham se recolhido a espera de um novo dia para retomarem seus afazeres.
Bem no centro da cidade, em uma ampla e confortável casa, dois amigos de longa data conversavam.
Ramiro e Leôncio haviam se conhecido em um sarau de poesias e desenvolveram, desde então, uma sólida amizade. Ambos eram amantes das letras e possuíam uma intensa curiosidade por assuntos que envolviam ciência e misticismo. As pessoas mais próximas a estes percebiam o quanto esses temas causavam, muitas vezes, uma forte e agradável competição intelectiva entre ambos.
Em função de suas profissões, Ramiro, médico e Leôncio, advogado, eram muito conhecidos e solicitados pelas pessoas da cidade, porém, volta e meia comentários maledicentes eram feitos sobre a amizade que unia aqueles dois homens bem sucedidos. Tais comentários nunca ocorriam na frente deles, pois a posição e poder que desfrutavam na comunidade inibiam atitudes de hostilidade explicita. Ramiro e Leôncio sabiam dessas coisas e mantinham-se discretos evitando conflitos desnecessários.
Entre doses de um bom vinho português e generosas tragadas de charuto a conversa entre ambos estava ficando cada vez mais animada. Qualquer pessoa que ali chegasse naquele momento veria que entre os dois homens havia uma profunda admiração e cumplicidade.
- Então, Ramiro, quer dizer que em suas andanças por esse mundo de meu Deus o senhor já encontrou de tudo um pouco?
- Sim, nobre interlocutor, porém, devo-lhe dizer que vosmecê também já escutou muitas histórias por aí...
- É verdade, meu caro. Com sua permissão vou contar-lhe uma. É coisa mui recente e devo dizer que fiquei, deveras,
impressionado.
- Sou todo ouvidos. Conte logo porque já fui picado pela mosca da curiosidade...
Já antevendo um empolgante debate entre ambos Leôncio abriu mais uma garrafa de vinho.
*****
- Meu caro, nas suas viagens por aí já ouviu algo sobre uma ponte que engole pessoas?
- Ouvi certa vez algo sobre uma ponte amaldiçoada. – Ramiro dá uma longa tragada antes de prosseguir – Será a mesma? Mas continue nobre amigo
- Coisa de um mês atrás estava eu para as bandas de Maniteua. Tinha ido resolver uma questão sobre uma partilha de bens envolvendo os filhos de um fazendeiro finado, coisa muito delicada, devo dizer. Durante o almoço de despedida o mais velho dos filhos surgiu com uma conversa sobre um lugar, não muito distante de lá, onde havia uma ponte feita de pedras que diziam levar as pessoas.
- Leôncio, levar para onde já? O que mais tem por aí são pontes. Tem de madeira, de ferro, pedra, de cimento e argamassa. O que essa tinha de especial?
- Pensei isso também. Já tinha ouvido falar em casa mal assombrada, igreja, navio, cemitério e até em um armazém com histórias de almas atormentadas, porém era a primeira vez que me falavam em uma ponte. Mas deixe-me continuar...
Ao fim do relato ambos permaneceram em silencio. Ramiro, já sentindo os efeitos do vinho, levantou-se e ficou contemplando a lareira. Em um dado momento passou a revolvê-la.
- Tem certeza que você não andou exagerando um pouco nessa história da ponte? Lembra daquela cartomante que visitamos lá em Ponta de Pedras e que, no final, não passava de um grande embuste?
- Meu caro, só existe uma maneira de saber... Que tal investigarmos um pouco essa história? Proponho que cada um faça um levantamento do que se sabe sobre essa tal ponte misteriosa e aí nos encontraremos aqui dentro de um mês.
- Combinado. Agora que tal um último charuto antes de ir-me?
*****
Conforme o acordado ao fim de um mês Leôncio e Ramiro tornaram a se encontrar. Após um lauto jantar estava na hora de mostrarem o que haviam coletado das muitas viagens aos diversos vilarejos, vilas, igrejas, cemitérios e entrevistas com as pessoas mais antigas da região.
Ramiro fez um registro por escrito do que ambos haviam descoberto em suas viagens investigativas.
• A ponte em questão não é muito extensa, só o suficiente para atravessar um pequeno riacho. É feita de pedras e possui um arco bem no seu centro. Existem outros caminhos pelas redondezas e termina que ela não é muito usada. Ninguém sabe ao certo quem a construiu. Os mais antigos juram que ela já estava ali quando as primeiras casas em Maniteua ainda estavam sendo erguidas, outros afirmam que foram pessoas escravizadas que construíram e existe aqueles que afirmam que tudo não passa de uma grande bobagem. O certo é que pessoas sumiram ao passar por ela. O mais estranho é que os desaparecimentos parecem ser muito raros.
• Em 1760 uma igreja ficou lotada para a missa em louvor de um homem que havia sumido ao atravessar a ponte puxando um burrico. Apenas o burrico foi achado.
• Em 1795 o pároco de uma igreja ao passar pela ponte jurou ter sentido o ar ficar pesado repentinamente e as árvores próximas ficarem translúcidas. Após esse fato ele passou uma semana ardendo em febre e delirante.
• Outro fato curioso ocorreu em 1830. Duas crianças estavam brincando nas imediações da ponte e não retornaram mais. Seus pais saíram em busca delas e também nunca mais foram vistos.
• Em 1865 três homens pararam para consertar uma roda de carroça, ela havia saído do eixo bem na entrada da ponte. Um deles se afastou até a floresta com a intenção de pegar alguma pedra grande que fornecesse sustentação para o eixo durante o conserto. Em dado momento escutou o grito de seus companheiros de trabalho, ao correr de volta para a ponte viu estes desaparecendo aos poucos. O homem jura que tanto a carroça quanto o boi que a puxava nada sofreram.
• Ainda em 1865, nas imediações da ponte, um pequeno destacamento do exército fazia manobras preparatórias para os conflitos no Paraguai. Cinco soldados ficaram para trás e simplesmente desapareceram. Buscas foram realizadas, porém eles nunca mais foram vistos. Terminaram sendo dados como desertores.
• As poucas testemunhas dos eventos falaram em coisas como “ar parado”, um silêncio total no local, frio repentino e pessoas sumindo lentamente. Alguns ainda relataram gritos.
Enquanto escutava o relato de seu amigo, Leôncio andava lentamente pela ampla biblioteca com uma taça de vinho nas mãos. Subitamente parou e bebeu um grande gole antes de falar.
- Por que eu nunca tinha ouvido antes sobre esses casos? Tudo o que eu sabia era que havia uma ponte assombrada, mas isso sempre pareceu mais uma grande invencionice e agora vejo que já aconteceram vários eventos espalhados ao longo de muitos anos.
- Meu caro, reparou que todos esses casos acontecem sempre após um intervalo de trinta e cinco anos? Talvez esse seja o motivo para não termos conhecido antes. Essas ocorrências levam muito tempo entre uma e outra...
Expressando surpresa com o que seu amigo havia falado e soltando uma sonora gargalhada, Ramiro propôs que fizessem um levantamento dos meses em que tinham ocorrido os fenômenos.
Descobriram que todos os eventos haviam acontecido no mês de outubro. O primeiro registro datava de 1760, mas isso não significava dizer que antes dessa data não tenham ocorrido desaparecimentos.
- Por que de trinta e cinco em trinta e cinco anos? Por que só em outubro? Por que essas coisas acontecem em uma simples e quase esquecida ponte de pedras?
- Muitas perguntas, amigo! Já que estamos em outubro... Por que não vamos até lá para vermos com nossos próprios olhos? – Propôs Ramiro.
*****
Após três desconfortáveis dias de viagem os dois amigos finalmente avistaram aquilo que os havia levado a fazer tão longa empreitada. Apearam dos cavalos e dirigiram-se até a ponte. Ficaram surpresos com o que viram, ou melhor, com o que não viram.
À primeira vista não havia nada naquela estrutura que despertasse algum sentimento de medo ou receio em quem passasse por aquelas paragens. Ela havia sido erguida com pedras que eram abundantes naquela região. A ponte atravessava um pequeno córrego e não era extensa. Bem no centro dela havia um arco que emprestava alguma beleza a ela.
Percorreram a extensão toda da ponte. Fizeram isso várias vezes e nem um tipo de alteração foi percebido ou sentido. Foram até o córrego, molharam os pés nele, andaram a esmo por ali e nada além do barulho de alguns pássaros ou o vento nas árvores lhes chamou a atenção.
Após algum tempo era mais do que visível a frustração no semblante dos dois aventureiros.
- E agora? O que faremos? Vamos ficar andando pra cima e pra baixo? – Leôncio falava ao mesmo tempo que pegava um cantil do alforge em seu cavalo.
- Proponho que todo dia durante uma semana a gente venha aqui dar uma olhada nessa ponte. Se não percebermos nada digno de nota a gente retorna e vai cuidar da vida – Respondeu Ramiro.
*****
Os dias passavam e as idas a ponte não estavam dando em nada. Eles a atravessavam de manhã, de tarde e de noite. Nada de estranho acontecia. Além de frustrados já começavam a achar que aquilo tinha sido uma tremenda perda de tempo e que, no fundo, tudo não passava de mais uma das invencionices que surgem de tempos em tempos.
Era o último dia em que iriam ficar por aquelas bandas. O sol tinha acabado de sumir no horizonte quando os dois decidiram encerrar aquela empreitada e ir embora. Montaram em seus cavalos e mal tinham iniciado a partida quando Leôncio decidiu realizar uma última travessia na ponte. Com pressa para logo irem embora, Ramiro ficou esperando o amigo.
Subitamente tudo mudou. O ar pareceu ficar pesado, uma quietude estranha tomou conta do lugar, as árvores deixaram de balançar, um frio repentino surgiu do nada. Ramiro assustado se afastou da cabeceira da ponte. Uma leve coloração amarelada parecia ter se misturado à noite que se iniciava. Em um dado momento este se vira para pedir celeridade ao companheiro. O que ele viu ficaria marcado em sua memória: Leôncio parecia coberto por uma aura colorida, tentando inutilmente gritar. Seu corpo foi adquirindo um aspecto granulado, evoluindo para algo translucido e, de maneira muito rápida, sumiu como se nunca tivesse estado ali.
Em desespero e sem saber o que fazer restou a Ramiro apenas ficar olhando o solitário cavalo de seu companheiro terminar a travessia.
*****
Ao longo de uma semana já era a quinta vez que Ramiro ia até aquela ponte. Seu motorista o achava um homem estranho e solitário. Ele via seu patrão andando de um lado a outro, fumando charutos, parecendo procurar alguma coisa ou então esperando por alguém. Passado algum tempo, e expressando grande frustração, ele solicitava que o levasse de volta. Naquela noite, entretanto, não foi isso o que aconteceu.
Apenas uma leve mudança na direção do vento marcou o surgimento de um novo fenômeno. Em um momento a cabeceira da ponte estava vazia em outro era preenchida pela figura alta e magra de Leôncio.
Ramiro, de maneira trôpega, corre para abraçar seu assustado amigo.
Ambos ficaram surpresos com aparência um do outro. Ramiro por ver seu amigo do mesmo jeito que estava quando este desapareceu há trinta e cinco anos. Leôncio por ser abraçado por um homem muito idoso.
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- Minha cabeça está para explodir. Não consigo entender o que houve. Você sumiu por trinta e cinco anos e volta como se só algumas horas tivessem passado. E por que você voltou? A ponte lhe devolveu? Por que ela faria isso?
- Também não entendo nada... – Leôncio se sentia incomodado ao ver os profundos sulcos das rugas que atravessavam o rosto de seu amigo. – Estive fora só algumas horas e agora você me diz que se passaram mais de trinta anos... Um mundo de coisas aconteceu. Uma vida inteira passou...
- Amigo, nesse tempo que você passou desaparecido já houve uma grande guerra e agora nós podemos voar em máquinas, mas isso é uma outra história. Agora vamos para casa que, com certeza, você deve ter muita coisa para me falar.
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- Como foi essa coisa de sumir? Doeu? Sentiu algo?
-Não sei lhe dizer com precisão o que houve. Do nada você e a ponte sumiram e eu me vi em uma sala, olhava para meu corpo e via que ele era gigantesco, como se eu fosse um homem de três ou quatro metros. Estava vestindo uma roupa esquisita, dourada e com pequenos símbolos que nunca sequer tinha visto na vida. Mas olha, amigo, o que mais me surpreendeu foi que eu estava próximo a uma janela e via uma infinidade de estrelas e um pouco mais abaixo um imenso planeta de coloração avermelhada. Eu me sentia maravilhado. Havia alguém naquele planeta que me deixava feliz. Pena que não durou muito tempo.
- Planeta avermelhado? Isso não era no nosso mundo com certeza... Por que não durou muito, o que houve?
- É muito difícil de explicar – Visivelmente emocionado, Leôncio tentava não embargar a voz – Não sei dizer direito, mas do nada eu me vi deitado em uma cama, sentindo-me muito fraco, tentando me levantar e não conseguindo. Queria chamar alguém, mas algo em minha garganta me impedia de falar. Era um tubo. Tentei desesperadamente movimentar meus braços, foi aí que percebi que havia um dreno em meu tórax. Olhando ao redor vi uma espécie de aparelho ao lado de minha cama, ele era estranho, cheio de botões e números. Eu estava sofrendo muito, morrendo... Fechei os olhos implorando para Deus me levar, porém...
- Espera aí, essa eu sei. Você provavelmente estava em um hospital, só não entendi direito o aparelho ao lado da sua cama, algum tipo de monitor talvez. Prossiga, nobre amigo.
- Não era algo simples como entrar em um cômodo qualquer de uma casa ou andar em uma rua que nunca se viu antes. Era mais como se eu fosse arremessado ou surgisse de repente. Não sei falar direito...Só sei que me vi sentado diante de um imenso aparelho preto. Ele me mostrava imagens de pessoas amontoadas em uma sala. Elas eram centenas e o aparelho permitia que eu visse o medo estampado no rosto daquelas pessoas. Elas estavam todas nuas, muitas gritavam e choravam.
Visivelmente angustiado, Leôncio interrompe a sua narrativa. Levanta-se lentamente e vai se servir de um copo de licor. Após um curto tempo ele retoma.
- Perto do aparelho que lhe falei tinha uma alavanca. Eu a baixei e vi uma fumaça acinzentada invadir a sala onde as pessoas estavam aprisionadas. Elas sufocaram e em pouco tempo estavam todas mortas. Seus rostos ficaram com uma cor arroxeada e muitas morreram abraçadas umas as outras. Eu matei aquelas pessoas! Elas morreram de maneira horrível. O pior de tudo isso que lhe contei é que eu queria matá-las e matei. Aquele homem não era eu, mas ao mesmo tempo era. Sei que é difícil de entender o que estou falando.
Após os relatos Ramiro ficou muito tempo pensativo. Em seu íntimo fazia mil conjecturas sobre as coisas que ouvira. Aquilo tudo era fantástico demais.
*****
Naquela noite Leôncio dormiu na casa de seu amigo. Antes de dormir pôs-se a pensar como faria para explicar seu retorno depois de trinta e cinco anos desaparecido. Inventaria algo ou então diria que era um sobrinho distante. Pensando isso terminou por cair em um pesado sono.
Quando acordou havia uma bonita mesa com frutas, sucos, café e bolo branco para o desjejum.
- Caro Leôncio, passei essa madrugada tentando entender o que lhe aconteceu. – Enquanto falava servia-se de um enorme pedaço de bolo – Existem questões para as quais nunca iremos obter uma resposta minimamente razoável. Acho que nunca saberemos porque você voltou. Será que alguém lá em cima consertou algum erro e lhe devolveu? Eu acredito que a ponte era esse erro. Talvez ela estivesse mais para uma porta que, de vez em quando, se abria e levava algum desavisado para outros mundos. Eu acho que todas aquelas pessoas eram você. O homem gigantesco, aquele que estava morrendo em uma cama e o outro que matava as pessoas. Quem sabe não eram você em outras vidas e outros mundos? Um versão infinita de você? Nunca saberemos...
Após todas as coisas que Ramiro havia falado, os dois homens ficaram em silêncio. Apenas eventualmente se escutava o som de um deles se servindo.
- Você está muito pensativo, meu caro.
- Estava pensando em uma passagem da Bíblia: João 14:2. Você conhece?
-Não recordo mais. Meus dias de catecismo já vão longe... O que diz essa passagem?
- É aquela que fala que a casa do Pai tem muitas moradas. E é isso mesmo! Acho que existem muitas moradas. Depois que a ponte me levou eu conheci umas poucas, mas desconfio que elas são infinitas...
- Por falar em moradas, deixe-me dizer-lhe algo... Acho que não poderei desfrutar de sua agradável companhia por mais tempo. Sou um homem velho e um mal corrói meu corpo. Acho que não me restam muitos dias.
- Meu Deus! Ah, não...
- Nada fale, nobre amigo. Minha partida não está longe, porém, enquanto ela não chega vamos abrir um vinho do porto que venho guardando há anos...
Tema: Pontes