Espírito Atormentado - CLTS 28

O som de passos cambaleantes rompia o silêncio lúgubre daquela noite trágica.

Arnaldo esforçava-se para vencer os arbustos espinhosos e chegar na estrada a qual seguia momentos antes do acidente. Seu corpo encharcado e a forte dor de cabeça impediam que ele pudesse sentir qualquer outra possível ferida.

Deixando atrás de si, o automóvel que lentamente afundava nas águas agitadas do rio, tentava se amparar num pedaço de tronco seco que encalhou ali na margem graças a uma possível enchente a muito esquecida.

Sobrevivendo por força do instinto, não se lembrava de Alice que sucumbiu graças ao violento choque. Sorte a dele que atravessou o vidro com o impacto e mesmo assim ainda se mantinha consciente.

Ao vencer os obstáculos alcançando o asfalto, caminhou desnorteado quase que atraído por aquilo que o fez perder a direção.

Enquanto isso, as águas corriam por baixo do concreto da antiga ponte que transpunha o leito do rio, alheias ao drama do casal que jurou amor eterno. Aquele trecho de má fama sempre era lembrado por algo trágico, muitas vezes interrompendo planos gloriosos de uma vida próspera.

Ao lado da cabeceira da ponte, ainda atordoado, seus olhos divisavam o que parecia um corpo de mulher. Esta, debruçada sobre o parapeito, tinha os cabelos soltos que balançavam ao sabor da brisa. Como a mariposa cega pela luz daquela criatura exuberante, caminhou não só ignorando as dores que sentia, mas também sua noiva sem vida que submergia em silêncio, aquele instante parecia nunca ter existido.

A um toque da bela mulher, estremeceu ao ver a horrenda transformação. Diante dele um espectro de olhos fundos vomitava água pela boca quase sem dentes, do seu rosto deformado, pequenos vermes remexiam causando-lhe calafrios.

Sem controle de suas vontades, mesmo tentando gritar, foi impossível reagir imerso em pavor.

Sendo certa sua abdução, sentiu o peso de uma mão forte sobre seu ombro. Como uma folha indefesa capturada pelo vento, o homem de porte médio foi arremessado para além dos limites do rio. O espectro maligno soltou um urro de frustração.

No fim da madrugada, Arnaldo despertou ao ser socorrido pelos bombeiros que nada puderam fazer por Alice. Seu ombro dolorido apresentava um grande hematoma que segundo um dos enfermeiros foi causado pela resistência do cinto de segurança que se rompeu permitindo o arremesso de seu corpo para fora do veículo. Poderiam até dar-lhe uma boa explicação, porém ali ele, apesar da pouca luz enxergava de forma bem nítida a marca de quatro dedos que desejaram rasgar sua pele.

O trágico acidente que colocou um fim nas possibilidades de um enlace feliz, não deixou apenas o rapaz triste, após o acontecido, mergulhou numa profunda depressão, sentia-se responsável por perder a pessoa a quem devotava seu amor, acreditava ter se distraído com algo sobre a ponte, não estava bêbado, poderia ser o cansaço que lhe havia pregado uma peça, roubando um pequeno momento de sua atenção o que afetou o resto de sua vida. A culpa era toda sua, ele sabia, não poderia justificar as causas de seu crime involuntário.

Meses de apatia o fizeram afastar-se dos amigos, principalmente daqueles que dividia com sua amada. O trabalho a muito postergado necessitava sua presença, nada voltou a ser como antes. Com tantas faltas, na empresa perceberam que Arnaldo era dispensável, como uma peça danificada acabou sendo substituído.

Não tardou para que aquele quadro depressivo evoluísse para um transtorno psicótico.

O jovem amargurado acreditava não estar só, sentia-se vigiado, acompanhado. Pelo canto dos olhos era possível perceber o movimento de uma sombra quase palpável, bastava mover-se e a presença se ocultava. Com o tempo, acreditou que aquilo poderia ouvi-lo. Os poucos amigos que ainda o visitavam temiam ao vê-lo conversar com as sombras, porém nada podiam fazer.

Passaram-se quase três anos de agonia quando uma notícia no jornal da tarde capturou sua atenção. Na tela da TV a foto de Alice estava ao lado de outras desventuradas vítimas de acidentes naquela ponte amaldiçoada, com apenas uma diferença, todos eram casais com planos para o futuro, no caso da moça, seu noivo sobreviveu.

Não existem coincidências, o rapaz desatinado enxergou ali um padrão.

Casais com planos de construir juntos uma família perderam de forma misteriosa suas vidas, mas e ele, porque foi poupado. Seu estômago embrulhou ao desejar que sua sorte fosse outra e que o destino tivesse salvo Alice, ele não merecia estar vivo, nada tinha a contribuir para este mundo que tanto o fez sofrer, ela sim possuía uma luz encantadora que aquecia os corações das pessoas.

Os momentos de infortúnio como uma torrente de lama avassaladora atingiu sua mente, o fardo que suportava tornou-se um peso além de suas capacidades. Tudo teria fim, completaria a inacabada obra do acaso.

Naquele início de noite, ignorando o mundo que resplandecia a sua volta. O amante ferido tinha olhos apenas para a escuridão de seu coração. O rio teria uma nova vítima, desta vez entregaria-se de bom grado, o que desejava era apenas o fim de sua solidão, de seu pesar. A culpa corróia-lhe destruindo sua alma.

Enquanto dirigia pela rodovia escura sentia não estar só, as vezes acreditava que pelo retrovisor era possível enxergar um passageiro oculto na penumbra, aquela sensação já fazia parte de sua rotina, mesmo assim o incomodava.

O farol iluminou a placa que alertava sobre o limite de velocidade, o rio estava próximo. Sensações distintas fervilhavam em seu peito como um turbilhão na poeira de um solo estéril. A certeza de que não valia mais a pena permanecer nesta terra era a única coisa certa, e disso jamais duvidava.

Ao avistar os contornos do local de seu martírio, as memórias se tornaram vívidas, relembrou cada segundo de seu infortúnio não apenas a dor da perda o afligia, mas a ela somava toda a frustração dos sonhos não realizados.

Parou o carro no acostamento. A lua com um brilho prateado embelezava a noite estrelada. O som das águas agitadas acalentavam seu peito. Ao caminhar pelo asfalto ainda quente enfim experimentava um pouco de paz.

Sobre a ponte, admirava o correr das águas, sentia o fluir do tempo, apoiando as mãos sobre a mureta, observava a imensidão de sua existência e tudo aquilo que poderia ter sido, era uma estrela que foi impedida de brilhar.

A sensação de estar sendo observado tornou-se forte, por mais que o lúgubre sentimento lhe fosse constante, desta vez parecia conter uma dose de ameaça. Seu corpo avisava que o perigo lhe rondava.

A brisa morna se tornou gélida, a névoa oriunda do leito do rio tomou conta da paisagem, naquele instante o coração amargurado do amante solitário parecia atrair uma alma aflita.

Era o mal que se manifestava. Sobre o concreto que transpunha as águas que a tempo ceifava vidas inocentes, um ser que odiava qualquer forma de amor se manifestava. Arnaldo devotava seu último suspiro à sua bela Alice, e isso provocava a irá daquela hedionda criatura.

Decidido a se jogar, ele sentido a pressão de algo prestes a ataca-lo, se virou a tempo de ver o espectro da mulher que refletia no rosto pálido a dor de uma traição, após a morte, apenas o ódio mantinha presa naquele trecho de rodovia. O amor não foi capaz de redimi-la, pelo contrário, por amar perdeu sua vida. O amor causou sua desgraça.

Por uma fração de segundos, Arnaldo encarou um par de olhos vazios, na imensidão do pesar, foi transportado a um tempo não tão distante. Estava no banco de trás de um carro, onde um jovem casal trocava juras de amor, a noite parecia perfeita quando perto do rio o carro foi parado. Após alguns beijos ardentes, a garota sentiu o ar lhe faltar. Com toda sua força ela tentou afastar as mãos que apertavam seu pescoço. Lentamente seus olhos se fecharam.

Num enlace mortal, espectro e homem se precipitaram nas águas geladas.

Ao ter seu pulmão invadido pelo líquido sufocante, ele não deixava de encarar a criatura, foram segundos eternos testemunhando aquela história fatídica, prestes a perder a consciência, um brilho intenso cercou as trevas.

A jovem assassinada pela pessoa a quem se devotou, prendeu-se a sua vingança, naquela ponte, lugar de seu sacrifício, aguardava por amantes felizes roubando lhes o futuro que também lhe fora negado.

Entorpecido pelo frio, quase sem ar, Arnaldo via duas formas que se confundiam, luz e escuridão travava uma batalha, do fundo daquele rio seu corpo foi arrancado e na luz reconheceu a face de Alice.

Naquela noite em que perdeu a vida, seu desejo era estar com Arnaldo pela eternidade, mas ele permaneceu vivo, e ao vê-lo sobre a ponte, quase nas garras de seu algoz, seu espírito não pôde partir. Com toda sua energia arremessou-o para além do alcance da escuridão, desde então o acompanhou. Vigiou seu sono atormentado por pesadelos, amparou suas lágrimas de tristeza, lhe fez companhia nos momentos de solidão e agora, mais uma vez se interpôs entre sua vida e o rancor daquela alma maldita.

O jovem estava vivo, apesar do frio, estendido na lama olhava as estrelas, tantos inocentes perderam a vida graças a um crime sem solução, mas ele sabia o que fazer. Pelos olhos do espectro conheceu o criminoso, os anos se passaram e o assassino prosperou. A pobre garota iludida era obstáculo para seu próprio sucesso, com seu desaparecimento casou-se com uma jovem de família importante tornando-se um influente cidadão da comunidade.

Juntos para sempre.

Ele tinha uma missão, para que todas aquelas almas tivessem paz, mais uma vida deveria ser oferecida, e juntos para sempre era a promessa a ser mantida.

Tema - pontes

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 01/09/2024
Reeditado em 01/09/2024
Código do texto: T8141920
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