PONT NEUF - CLTS 28
1964
Ele inspira e expira de forma compassada. Sorri e fecha os olhos. Procura se concentrar em todos os sentidos. Perscruta-os, em busca de cada pequena sensação. Sorve-as avidamente, sem qualquer comedimento.
A camisa cola ao banco de couro, molhada pelo suor que lhe corre as costas. O sol do norte da França fustiga seu rosto. Mas ele não se importa, desde que o vento afague suas madeixas louras, como os cálidos dedos de uma amante.
As mãos apertam o volante amplo, movimentando-o com precisão. Ele aprecia o trabalho da suspensão do automóvel, as transferências e inclinações, enquanto contorna velozmente as curvas. Os pneus gemem em busca de aderência.
Ele se sente vivo e feliz. Está inundado pela expectativa do início de um novo trabalho. Como engenheiro, foi encarregado de supervisionar a construção de uma ponte na região da Normandia.
Enquanto devaneia, a paisagem costeira dá lugar ao interior. O mar e a areia são substituídos pelas sebes, pastagens e arvoredos. O carro sacoleja pela estrada, que se bifurca em uma infinidade de caminhos, margeados por vilarejos, paróquias e fazendas.
Consulta o relógio e constata que está atrasado. A mania de precisão por pouco não o leva a perder de vista a placa, desbotada e escondida entre arbustos, que indica a entrada da Comuna de Moulineaux.
Murmura um palavrão e crava o pé no freio. A traseira do Jaguar dança e desliza à deriva, como um transatlântico ao sabor do mar. Ele libera a pressão, toca o acelerador com delicadeza e gira o volante no sentido contrário ao da derrapagem. O carro continua a andar mais de lado que de frente, mas de forma controlada.
Não sem alarde, o esportivo acessa o pavimento de cascalho que morre em uma tranquila praça. Atento, o inglês contorna o círculo de concreto sobre o qual repousa uma igrejinha normanda. Para sob as árvores e desliga o motor. Abre a valise de couro e apanha uma agenda. Confere as anotações e sai.
Em pé, ao sol, contempla o automóvel. O E-Type 1963 é o único bem pelo qual demonstra apreço. Adora seu tom verde escuro e suas linhas sinuosas, que o fazem pensar em belas mulheres. Sacode a cabeça e espanta o pensamento lascivo, que se infiltrava sorrateiro na mente.
Caminha a passos decididos para o escritório da Entreprise de Construction Française. Não se incomoda em bater, já que sabe que está sendo aguardado. Saindo da luminosidade, seus olhos precisam de um instante para se acostumar com a penumbra. De trás de uma mesa abarrotada, um homem corpulento se levanta.
- Monsieur FitzAlan?
- Monsieur Tremblay? Ça va?
- Não há a necessidade de falar francês, mon ami! Seja bem-vindo. Espero que tenha feito boa viagem.
- Enchanté. Sim, a estrada de Le Havre para cá não é má.
- Bondade sua. Suponho que queira se refrescar. Fui instruído a leva-lo diretamente à casa. Le Compagnie providenciou tudo.
- Se não se importa, gostaria de inspecionar as obras.
Acompanhado do capataz e engajado em conversa animada, embarcou num Citroen 2CV. O carrinho sacolejou pelas ruelas, afastando-se da praça. Seguiram as placas que apontavam Hautot-sur-Seine. Adiante, Tremblay fez uma curva à esquerda, atravessou um espesso bosque de faias, e lá estavam eles, às margens do Rio Sena.
Em poucos metros, deparam-se com um canteiro de obras. FitzAlan se sentiu desanimado. Fora informado que alguns imprevistos tinham atrasado os trabalhos. Mas não imaginava que praticamente nada havia sido realizado. As fundações sequer tinham sido lançadas.
Contrafeito, perscrutou o horizonte, dominado por um castelo. Tremblay o informou se tratar do Chateau Robert Le Diable. Em frente à massiva fortaleza medieval, postava-se a antiga ponte, ironicamente chamada Pont Neuf pelos locais.
A estrutura decrépita lhe causou uma reação inesperada. Os pelos da nuca se eriçaram, enquanto o estomago se contorceu. O gosto amargo da bile se infiltrou entre seus dentes. Cuspiu e limpou os lábios. Repreendeu-se por agir com um camponês supersticioso.
1417
Ele ergueu os olhos e mediu o sol. Já passava das dez. Onde estavam aqueles franceses malditos? Bastardos impontuais e imundos. Esticou a mão enluvada. O escudeiro prontamente entregou o cantil, feito de bucho de bode.
Saciou a sede. Bebera demais na noite anterior. Detestava cercos. Não tinha a menor paciência para acampar na própria merda, meses a fio, aguardando uns pobres diabos famintos se renderem. E desde sentira um ódio irracional pelo lugar.
Conteve a impaciência e pensou no ouro. O Chateau Robert le Diable era um prêmio cobiçado. E Deus era testemunha de que ele precisava do saque e dos resgates. Seu pai havia deixado dívidas demais. Estava farto dos agiotas.
Fitou as muralhas. No topo, entre as flâmulas do Barão de Moulineaux, adejava a bandeira do Conde de Bayeux. Ele até esperava capturar alguns comerciantes gordos. Mas um conde? Primo do rei da França? Era um tremendo golpe de sorte.
Então, porque diabos o seu humor piorava? Andava irritadiço, como um tigre com um espinho enfiado no rabo. Na calada da noite, acordava aos berros, banhado de suor. Optou até mesmo por dormir desacompanhado, depois que quase degolou uma rameira.
As brumas borravam as lembranças. Sonhara com o Anjo da Morte, a entrar nas casas egípcias e chacinar bebês. Voltou ao mundo dos vivos mirando os olhos desesperados da prostituta. Um chumaço de seus cabelos ruivos enrolado em seus dedos enquanto a adaga pressionava o pescoço branco.
- Alguém se aproxima, Milorde.
Saiu do devaneio. À distância, dois homens cavalgavam lentamente, sobre a chamada Pont Neuf, um deles agitando uma bandeira branca. Vinham do castelo e desejavam parlamentar. Deveria sentir alívio, já que os franceses estavam cumprindo o combinado.
Apanhou a bainha enfeitada com arabescos em ouro e mirou os volteios, em busca de serenidade. Não encontrou. Sentia como se a espada estivesse a sussurrar coisas. Pensamentos malévolos. Chegou a cogitar devolver os emissários decapitados, amarrados ao dorso das montarias.
Chacoalhou a cabeça, para afastar a pontada de prazer que o percorreu. Fez um sinal para os escudeiros e guardas, para que paralisassem os trabucos. Em instantes, uma comitiva cavaleiros se movimentou em direção ao inimigo. Abordaram-nos sobre a ponte e os rodearam. Voltaram juntos.
Os franceses estavam macilentos e assustados. Seus olhos se movimentavam nas órbitas, frenéticos. Mirou-lhes os tabardos e concluiu que vinham da parte do Conde de Bayeux e do Barão de Mollineaux. Afastou as ideias de carnificina e fez um gesto aos rapazes, que se colocaram de joelhos.
- Milorde, Conde de Arundel. Como prometido, fomos enviados pelos nossos senhores para negociar uma rendição.
- Quais são os seus termos?
- Todos os nobres e grandes comerciantes, abrigados no castelo, render-se-ão à Vossa Graça. Suas famílias serão responsáveis pelos resgastes. Os portões serão abertos, as bandeiras arriadas e as armas postas de lado. Em troca, apenas o compromisso de que a guarnição será bem tratada, que não haverá violência, estupros ou saques, especialmente de igrejas.
Sem saques, nem estupros? Que faria com os soldados? No último cerco fora obrigado a enforcar cinco arqueiros, três escudeiros e três lanceiros. Homens treinados eram caros, não davam em árvores, nem eram capim. Malditos franceses.
Conteve o desapontamento. Ansiava por uma boa e simples matança. Tinha passado dias obcecado pela ponte em frente ao castelo. Seria um lugar ideal para conter uma horda numerosa e brandir sua espada até a vitória ou a morte. Mordeu o lábio até sentir o gosto do sangue.
- Não somos animais, monsieur. Diga ao Conde e ao Barão que os aguardaremos amanhã, após a missa matinal. Caso o façam, manterei minha palavra e nenhum mal se abaterá sobre a sua comunidade. Que Deus os acompanhe.
Virou-se em dispensa. Os mensageiros foram colocados a caminho. Uma sensação desagradável deslizava por entre seus pensamentos, como uma serpente em campo de trigo. Ao se levantar do banco, para o primeiro cálice do dia, uma palavra escapou de seus lábios, em sussurro. Tragédia.
1964
Estava no quarto, na enxerga que a família dividia às noites. Suas irmãs se amontavam ao redor, silenciosamente no breu. Estava quente, mas os corpos não se separavam, tampouco deixavam de tremer.
Os ventos batiam contra a janela. As lufadas traziam os ruídos que vinham de baixo, de uma cidade em seus estertores finais. Sentiu um nó na garganta, enquanto o choro corria livre, incontido.
Agarrou sua espada de madeira. A mais velha, Élise, envolveu-o ternamente. Camille revirava um rosário, murmurando preces convulsas a Deus. Jacques, o vira-latas, gania junto à porta.
A mãe acordara de madrugada, cabelos em desalinho, olhos e ouvidos alertas. Conversara de forma urgente com Élise. Dera a ela uma faca e fechara a porta, contra a qual a ouviram empilhar a parca mobília da cozinha.
Dormiu e acordou sem saber se transcorrera um minuto ou uma hora. Os ruídos cresceram, envolvendo a casa, como uma maré. O retinir das espadas, os gemidos e gritos dos homens, todos ribombavam no pequeno quarto.
Resolveu rezar. Dizia as preces como padre Jean ensinara. “Pai nosso que estás no céu...” Tropeçava nas sílabas, confundia as palavras, enquanto colocava toda a sua fé, suas forças e esperanças no ato. Ele não queria morrer.
Ouviu um barulho na cozinha. Seria o pai, que estava lutando contra os ingleses? O grito da mãe, carregado de pavor, deixou-o gelado. Passos pesados rangeram sobre as tábuas. Fechou os olhos com força, até ver estrelas. Desejou sair voando.
A porta se escancarou violentamente. O cachorro rosnou, atacou e ganiu. Suas irmãs gritaram a plenos pulmões, mas ele não acreditava que as preces tinham sido em vão. Élise chorou, implorou e foi silenciada.
Sentiu uma dor lancinante quando uma mão pesada agarrou seus cabelos. O cheiro de suor e couro cru se esgueirou pelas narinas. O frio do aço tocou-lhe o pescoço. No último instante, permitiu-se encarar o estranho. Viu apenas morte em seus olhos.
A adaga subiu e faiscou na escuridão.
FitzAlan acordou apavorado, suando, agarrado aos lençóis. O corpo tremia descontroladamente. Desorientado, procurou se situar. Aos poucos, as trevas deram lugar às formas familiares do quarto.
Tateou o criado em busca dos cigarros. Pôs-se a fumar, recostado nos travesseiros. Desde que chegara à Moulineaux não tivera uma noite de paz. No começo, experimentara uma fadiga inexplicável. Despertava todas as manhãs como se não houvesse dormido.
Com o tempo, as noites passaram de fonte de desconforto a causa de terror absoluto. Agora, o pôr do sol representava um presságio de mau agouro. Consultava o relógio centenas de vezes, durante o dia, em crescente desespero.
Decidiu trabalhar e arejar os pensamentos. Foi até a mesa tosca e acendeu a lamparina. Remexeu os papéis espalhados. Suspirou. O que o levou a pensar que encontraria consolo?
A obra ia tão mal quanto seu sono. FitzAlan se questionava, por vezes, se não havia algo oculto, incrustado naquela terra, que se opunha à construção. Desde que assumira, cinco trabalhadores haviam morrido. O primeiro no dia seguinte à sua chegada.
Um peão argelino apareceu boiando ao lado da ponte. Tremblay deu de ombros e ordenou a remoção do corpo. Argelinos bebiam demais, disse então. Um caixão foi providenciado. As exéquias foram rápidas. Havia muito trabalho a ser feito.
Dias mais tarde, um carpinteiro francês despencara de um caminhão. Inexplicavelmente, mesmo com freio de mão acionado, o pesado veículo se deslocou e esmagou o sujeito. O médico acudira rapidamente, apenas para atestar o óbito ao cabo de minutos.
A esse infortúnio, seguiram-se outros três, peculiares e improváveis. O clima no canteiro se tornou opressivo. Um dia, foi abordado por um dos moradores locais no bar. Sorvia uma taça de vinho, forte e rústico, quando recebeu uma aula sobre superstições campesinas normandas.
Na época, sorrira e as considerara rematadas asneiras. Agora, parecia que aquelas palavras calavam fundo. E se houvesse mesmo algo ali? Alguma coisa maléfica? Sentiu um calafrio e teve certeza de que não dormiria mais naquela noite.
1417
O Conde de Arundel fitava o fogo. As labaredas dançavam e crepitavam, como espíritos em alguma festa profana. Mas seus pensamentos iam longe. Para sua casa, na Inglaterra. As lembranças dos agiotas se aboletando à sua porta o enfureciam.
Ergueu os olhos e fitou o escudeiro do Conde de Bayeux. O sujeito tremia e encarava o chão. Sua atitude amedrontada e subserviente o irritava ainda mais. Sentiu a mão esquerda formigar, pousada sob o punho da espada. Flexionou os dedos.
- Eu devia enforca-lo por trazer uma notícia dessas. Para a sua sorte, fui bem educado quando criança. Dispunha até de um monge, que me deu lições de latim e francês. Ne nuntium necare. Caso não saiba, significa não mate o mensageiro.
Antes que mudasse de ideia, inclinou a cabeça para o guarda, que apanhou o homem e o arrastou para fora. Mordeu a língua e se pôs a refletir. O Barão e o Conde, junto com o Bispo e alguns comerciantes, haviam fugido na calada da noite. Como ratos! Embarcaram em canoas e saíram por um canal secreto, nos fundos do castelo.
Pousou a espada sobre a mesa. Fitou seu reflexo na lâmina nua. A noite anterior fora horrível. Como de costume naquela pocilga tivera pesadelos. Sonhos negros, envolvendo cadáveres mutilados, pendurados naquela maldita ponte, balouçando ao sabor do vento.
Acordou e foi atrás do capelão. Durante as orações se sentiu pior. A garganta parecia sufocada, a boca amarga, com o gosto da bile. Uma mão gélida e férrea agarrava e revirava suas tripas, enquanto o coração pulsava tresloucado de ódio e rancor.
Toda a prata e ouro perdidos. Alguém pagaria! Uma comoção se fez do lado de fora. Ele se forçou a deixar de contemplar o abismo. Seus homens apontavam para os portões do castelo, visíveis depois da ponte. Estavam escancarados. A muralhas estavam encimadas por bandeiras brancas, de fora a fora.
Rangeu os dentes. Cuspiu no chão. De que lhe adiantava uma rendição de merda? Se o Barão e o Conde não estavam dispostos a pagar pela própria liberdade, como exigia a honra, então outros quitariam seus débitos. E ele aceitaria o pagamento no que quer que tivessem a oferecer. Ainda que fosse apenas sangue.
Ele se deixou tomar pelo ódio. Para o diabo com o parcere subjectis et debellare superbos. Ergueu a voz e se fez ouvir pelos seus capitães.
- Às armas! Quero todos encouraçados e prontos. Invadiremos a cidadela. Não daremos quartel a ninguém! Sem misericórdia! Por São Jorge e pela Inglaterra!
O troar da resposta ribombou pelo acampamento. Já não havia espera e incerteza, apenas caos e decisão. Rapazes investiam em busca de suas lanças, enquanto outros encordoavam seus arcos oleados. Rameiras e cachorros corriam por todos os lados, saindo do caminho da tropa.
O escudeiro o ajudou a vestir couraças, grevas, gorjal e manoplas. O leão rampante dourado, em fundo vermelho, flutuava em seu estandarte. Ao cabo de minutos estavam todos organizados, disciplinados e em fileiras. Homens de armas ao meio, arqueiros nos flancos. A cavalaria à frente. Ele determinou o avanço. O coração batia forte, ansioso pelo início da matança.
1964
Os juncos oscilavam à brisa. As mãos, amarradas às costas, formigavam. Custava a acreditar que as coisas terminariam assim. Haveria esperança? Pouco provável. O Conde e o Barão se foram.
O soldado inglês o empurrou adiante. Caiu de joelhos, às margens do rio. Seus olhos subiram aos céus. Urubus volteavam calmamente, à espera do festim. Abaixo, dezenas de corpos de mulheres e crianças pendiam da ponte.
Ele se sentia seco, sem lágrimas a verter. O comandante inglês se aproximou, envergava um leão dourado no casacão vermelho. Seu olhar era o de um louco, perdido em desvarios sangrentos. Ajoelhou-se e colou os lábios em seu ouvido.
- Eu disse que não o enforcaria. Sou um homem de palavra, pago meus débitos e minhas promessas.
O homem se levantou e acenou. Dois guardas o apanharam pelos braços. Tentou resistir e gritar por socorro. Mas a quem? Um punho vestido de cota de malha o esmurrou no estomago. As pernas e a bexiga fraquejaram. Urinou nas calças. Entraram na água fria.
Reuniu todas as suas forças, chutou, mordeu, implorou, mas os braços que o prendiam pareciam tenazes. Sentiu-se afundar sob um peso de chumbo. A mente em turbilhão buscava uma resposta, uma tábua de salvação.
Sua cabeça submergiu e foi acolhida pelo silêncio total. Prendeu a respiração e se debateu, os olhos bem abertos, a procura de respostas nas águas turvas. Os pulmões começaram a arder. Quando pareciam prestes a explodir, ele se rendeu ao inevitável.
A dor veio, avassaladora, como se respirasse brasas.
Mais uma vez, FitzAlan despertou em meio ao mais completo terror. Seu corpo tremia violentamente. Demorou a entender que o barulho que ouvia era dos próprios dentes a bater e ranger.
Prostrado, procurou controlar a respiração e diminuir os batimentos cardíacos. Um cigarro o ajudaria. Tentou apanha-lo, mas por algum motivo seus braços não se moveram. As pernas tampouco respondiam. Não conseguia gritar. Controlava apenas os olhos e o pescoço.
Algo chamou sua atenção. Uma luminosidade intensa parecia vir de baixo do leito. Virou-se da melhor forma que pôde, apenas a tempo de ver que pontos negros subiam vagarosamente pelos lençóis. Gemeu consternado. Por todos os lados, tentáculos negros se arrastavam em sua direção.
Pareciam feitos de nada além de fumaça. A impotência e a imobilidade o levaram ao desespero. Não havia lógica naquilo. Só poderia estar louco. Ao se concentrar nos vultos, pareceu-lhe que continham traços de rostos. Feições femininas e infantis.
Lágrimas escaparam e molharam o travesseiro. Os toques suaves e aveludados daquelas coisas o surpreenderam. Sentiu-se acariciado, como um amante. Mas não por muito, já que continuaram a deslizar sobre seu corpo, amoldando-se, vestindo-o, preenchendo espaços e reentrâncias.
Sem qualquer controle, ergueu-se da cama. Caminhou firmemente até a porta do quarto, ultrapassou o corredor e atingiu a sala, junto ao cofre, de encontro à parede. Os dedos se moveram sobre o segredo, destrancando-o. Assim que percebeu o que buscavam, tentou gritar e resistir. Em vão.
A pistola de serviço foi apanhada e colocada no bolso do pijama. Os passos se seguiram, um a um, levando-o à casa de Tremblay. Esmurrou a porta violenta e insistentemente. Fez mira, com firmeza. Assim que o outro assomou ao batente, desgrenhado e surpreso, disparou em seu rosto, uma única vez.
Passageiro da própria carne, viu-se no caminho de terra batida, que levava ao alojamento dos trabalhadores. Ali, prendeu as portas de saída com uma corrente e um cadeado. Foi à garagem e apanhou dois galões de gasolina. Usou-os para atear fogo às paredes de ripas.
Embalado pelos gritos de desespero, dirigiu-se à ponte, cuja silhueta indistinta ia se desenhando contra a bruma da madrugada. Ao seu fundo, o formato inconfundível do castelo. Nela, seus pés nus sentiram o toque áspero do calçamento. As mãos deslizaram pela balaustrada, cheia de farpas.
Estacou no meio e se virou para o rio, para as águas em torvelinho. A mão direita se ergueu. A pistola pressionada contra a têmpora. Por dentro, ele gemia e urrava, embora o corpo estivesse impassível. Somente os olhos choravam copiosamente. Ele não queria morrer. Uma brisa afagou seus cabelos. A reboque, junto com o vento, um sussurro indistinto atingiu seu ouvido. Ninguém quer morrer. Ele puxou o gatilho.
FIM
Tema: PONTE