O Balanço do Terror
O Balanço do Terror
Era noite naquele condomínio horrível e cheio de gente e crianças mal educadas, funcionários relapsos, pessoas esquisitas e excêntricas, em sua maioria fofoqueiros, bipolares e beberrões.
O lugar ficava numa parte alta do bairro, cuja rua principal de acesso, formava um aclive, e que também dava acesso para a comunidade carente local, o conjunto, era, ainda, circundado por uma vizinhança barulhenta e ficava bem no meio de um cenário geográfico horrendo, digno de nota nos mais tétricos filmes de terror. Uma mata, cuja vegetação densa e quase intransponível, se assenhorava dos limites na parte traseira do condomínio, dividindo o espaço entre morros e uma pedreira. Essa linda combinação natural, garantia que épocas como verão e inverno tivessem suas temperaturas exacerbadas por uma espécie de catalizador invisível, trazendo aos infelizes condôminos um calor ou frio, conforme a época, soprados do próprio inferno!
Isto, talvez, ainda fosse palatável aos infelizes moradores, pois já estavam acostumados de anos, a viverem uma vida penosa com as dificuldades sinistras e próprias do bairro. Para começar tudo era longe. Acessar um comércio ali exigia andar no mínimo de dois a três quilômetros a pé. E os mais idosos, que não aguentavam fazer tanto esforço, tinham que se sujeitar a esperar uma única kombi caindo aos pedaços e que demorava horas pra passar, além de cobrar uma passagem caríssima para fazer o traslado dessas pessoas à parte baixa do bairro, deixando-os em pontos estratégicos para pegarem outras conduções para outro lugar, ou acessarem supermercados, farmácias etc.
Para quem tinha carro, tudo ficava mais leve, pois podiam ir e vir com mais conforto. Embora, fossem incapazes de oferecer carona a quem quer que estivesse ali, próximo à guarita do porteiro, aguardando por horas a assombrosa kombi. O relacionamento dos moradores do condomínio Agnaram-333 era tão bizarro, que pessoas a pé com medo de cruzarem as violentas ruas do bairro eram capazes de esperar outras pessoas (que também estavam a pé) para uma dar “carona a outra” (a pé) e servirem-se de suas companhias mútuas durante o fatídico trajeto, onde iam “proseando”, o que era sinônimo de fofocar da vida alheia. Mas quem estava de carro mesmo, jamais oferecia carona...
Era raro o dia em que não havia brigas ou bate-bocas, mas podemos dizer que tudo isto ainda estava dentro da “normalidade das coisas” de um tal lugar tão estranho, com pessoas mais estranhas ainda. E, para que tudo não pareça tão funesto, podemos destacar que alguns vizinhos ali se davam otimamente bem, e tinham, como se poderia dizer se fosse um lugar normal, uma amizade sincera.
Havia o trio inseparável de amigas que gostavam de bater papo ao cair da tarde, nem tudo o que conversavam era fofoca, mas a dona que vivia filmando as pessoas de sua janela com o celular não pensava assim. E nem o velho que as observava de sua unidade no terceiro andar e cuspia jatos ofensores de gosma misturada com nicotina, além de lançar guimbas de cigarro acesas sobre os veículos estacionados nas vagas sob sua janela.
Crianças corriam zombeteiras por entre as pessoas e os carros...
Uns reclamavam do valor da conta do condomínio ou das “cotas extras” ...
Crentes e macumbeiros discutiam e implicavam uns com os outros diariamente...
Os quadros de disjuntores dos blocos perigando incendiar, devido às más condições de conservação...
Unidades com vazamento d’água infernizavam a vida do vizinho ínfero...
A síndica do condomínio recebia torrentes de reclamações cotidianas no escritório da administração...
Enfim, tudo parecia estar dentro de sua mais perfeita normalidade. Até a mocinha que cuidava e alimentava os gatos do condomínio se sentia radiante com o pacotão de ração de 10 kg que acabara de chegar na administração, encomendado pela síndica. E isto significava a manutenção de suprimento alimentar para os seus bichanos! Ou, melhor, do condomínio. Mas que ela se alegrava em cuidar, zelar e alimentar.
Tudo ia bem, se é que a aura de estranheza descrita, inebriando pessoas e lugar, pode-se considerar “bem” ..., Mas o fato é que tudo mudou de repente – e pra pior – quando aquele maldito balanço velho e barulhento chegou e foi instalado “na pracinha”...
O tal balanço chegou sem aviso, trazido por uma caminhonete suja e enferrujada, no meio de uma tarde chuvosa. Era um artefato antigo, de madeira já escurecida pelo tempo e correntes enferrujadas. Não parecia adequado para uma praça de condomínio, onde crianças deveriam brincar com segurança. No entanto, ali estava ele, descarregado com desleixo por dois homens mal-humorados, que resmungavam sobre a distância e a dificuldade de acesso ao lugar. A instalação foi rápida e descuidada, sem muito esforço para nivelar o terreno ou assegurar as bases.
Em menos de uma hora, o balanço estava montado. Duas correntes enferrujadas sustentavam uma prancha de madeira gasta, que rangia a cada brisa que passava. A praça, antes quase sempre vazia, tornou-se o centro de atenção. O som agudo das correntes ecoava pelo condomínio, perturbando os momentos de tranquilidade dos moradores. O barulho era estranho, metálico, como um lamento distante que despertava uma sensação incômoda em quem o ouvia.
As crianças, em princípio, evitaram o balanço. Pareciam instintivamente desconfiadas da nova adição à pracinha. Mas com o tempo, a curiosidade venceu o medo, e uma tarde, um dos garotos, o pequeno Joãozinho, decidiu experimentar. O balanço rangeu alto quando ele se sentou, e a madeira velha afundou sob o seu peso. O menino deu um leve empurrão com os pés e começou a se balançar, de leve, para frente e para trás.
Foi então que aconteceu a primeira coisa estranha. Sem qualquer explicação, o balanço começou a se mover sozinho, mais rápido, mais alto. Joãozinho riu, pensando que algum amigo estava empurrando-o de brincadeira. Olhou para trás, mas não havia ninguém. Seus risos transformaram-se em gritos de pânico quando ele percebeu que o balanço estava fora de controle. Ele gritava por ajuda, mas sua voz parecia ser engolida pelo som das correntes que rangiam cada vez mais alto.
Vários moradores que estavam por perto correram para a praça, atraídos pelos gritos e pelo barulho. A dona Clotilde, a síndica, foi a primeira a chegar e, horrorizada, viu o pequeno Joãozinho sendo balançado violentamente, como se uma força invisível estivesse brincando com ele. Com grande esforço, alguns homens conseguiram parar o balanço e puxar o garoto, que saiu chorando, pálido e tremendo, com os olhos arregalados de medo.
Depois desse incidente, o balanço foi evitado. As crianças não se aproximavam mais dele, e os pais advertiam seus filhos para ficarem longe. Mas, mesmo vazio, ele parecia se mover sozinho, balançando-se levemente como se alguém invisível ainda estivesse ali, usando-o. À noite, o barulho das correntes ecoava pelos blocos, perturbando o sono dos moradores. Aqueles que moravam mais próximos da pracinha diziam ouvir risadas distantes e sussurros que vinham com o vento, como se alguém estivesse se divertindo de maneira macabra.
As coisas começaram a piorar. As luzes do poste ao lado do balanço começaram a falhar, piscando aleatoriamente. Em certas noites, se apagavam completamente, mergulhando a praça na escuridão. Os gatos do condomínio, antes tão amigáveis, passaram a evitar a praça e miavam estranhamente sempre que passavam por perto. Alguns moradores alegavam ver sombras se movendo na escuridão, como se o balanço atraísse presenças invisíveis.
O ponto culminante foi quando a pequena Luísa desapareceu. A menina de seis anos foi vista pela última vez brincando perto da pracinha. Sua mãe, desesperada, afirmou que havia se distraído apenas por um momento, e quando voltou, Luísa não estava mais lá. Procuraram por toda parte, cada canto do condomínio, cada arbusto da mata ao redor. Mas a menina parecia ter sumido no ar. A polícia foi chamada, buscas foram feitas na mata, na pedreira, mas nenhum sinal de Luísa foi encontrado.
Após o desaparecimento de Luísa, a tensão no condomínio Agnaram-333 tornou-se insuportável. As brigas aumentaram, as fofocas ficaram mais venenosas, e os moradores passaram a se trancar em suas casas ao cair da noite. O balanço, no entanto, continuava lá, intocado e sinistro, rangendo ao vento, como se zombasse do sofrimento alheio.
Foi dona Clotilde quem, finalmente, decidiu pôr um fim àquela situação. Numa manhã fria e nublada, ela reuniu um grupo de moradores e, armados com ferramentas, foram até a pracinha. A ideia era simples: desmontar o balanço e jogá-lo fora. Acabar com aquele objeto que parecia carregar uma maldição.
Enquanto desmontavam a estrutura, algo estranho aconteceu. A temperatura parecia ter caído, o ar ficou mais pesado, como se uma presença invisível estivesse observando. As correntes estavam tão enferrujadas que era difícil quebrá-las. Quando, finalmente, conseguiram soltar a prancha de madeira, um vento frio soprou pela praça, e todos os presentes sentiram um calafrio.
O balanço foi jogado no caminhão de lixo, levado embora. No entanto, as coisas no condomínio não melhoraram. O desaparecimento de Luísa nunca foi resolvido, e a pracinha, agora vazia, permanecia um lugar de desconforto. As luzes ainda falhavam, e, de vez em quando, alguém afirmava ouvir o som de correntes rangendo ao vento, como se o balanço ainda estivesse ali.
As crianças não brincavam mais na pracinha. Os gatos, antes abundantes, desapareceram. A pracinha, que deveria ser um lugar de alegria, tornara-se um símbolo de medo e tristeza. O balanço se fora, mas a sensação de maldição permaneceu, como uma sombra invisível que se recusava a ir embora.
E à noite, quando o vento soprava pelos blocos do condomínio Agnaram-333, era possível ouvir, ao longe, o som de um balanço rangendo e as risadas suaves de uma criança perdida, que nunca mais foi encontrada.