Coração Gelado - CLTS 28

 

Estou caminhando sem rumo, sem saber o que busco. Estou perdida, sem destino. Ao meu redor, um branco interminável se estende como uma paisagem sem fim. A neve, tão branca e fria, parece engolir tudo ao meu redor. Cada passo que dou é mais pesado que o anterior, como se a própria neve estivesse me puxando para baixo, tentando me afundar em seu abraço gelado. Minhas pernas estão fraquejando, o cansaço se espalha pelos meus ossos. O frio cortante se intensifica a cada minuto, penetrando minha pele, congelando meus pensamentos.

Sombras espreitam por entre as árvores. Cada movimento ao meu redor parece hostil; os galhos rangem como ossos partidos, e a floresta murmura segredos que não consigo entender. Estou alerta, mas a exaustão me cega. Vejo coisas que não existem. Ou será que existem?

De repente, um tiro ecoa à distância. O som atravessa o silêncio como uma lâmina, e meu coração dispara, martelando contra o peito. Tento correr, sem forças, meus pés afundam na neve, que agora parece mais uma armadilha. Me viro bruscamente, arregalo os olhos ao ver um rastro de sangue no chão. Vermelho vivo, um contraste violento contra o branco imaculado da neve. Procuro freneticamente por ferimentos em meu corpo, meus dedos tremendo de pavor.

Será que esse sangue é meu? Minha respiração está pesada, e cada exalação se transforma em vapor no ar gélido. O pânico me consome. Preciso gritar por ajuda. Mas minha voz está presa na garganta, sufocada pelo medo. Sinto que estou à beira do colapso, perdida em um vazio gelado e sem saída.

****

Acordo suada, com a sensação de frio ainda agarrada à minha pele, como se a neve do sonho fosse real. Meu corpo treme, o medo ainda aperta meu peito. Aquele sonho... foi tão vívido que pareceu mais uma lembrança distante do que um pesadelo. Me levanto lentamente, ainda sentindo as pernas trêmulas, vou até a janela. O nevoeiro lá fora é denso, cobrindo tudo em uma camada espessa que esconde o lago e o deque. Faz anos que moro sozinha nesta casa, e essa visão se tornou familiar. Esse nevoeiro é sempre um prenúncio de que o sol será implacável mais tarde. Por um instante minha visão me trai. Observando o deque ele parecia uma ponte imponente em meio ao nevoeiro.

Suspiro, tentando afastar a inquietação que o sonho deixou. Algo me diz que ele tem um significado, e não consigo decifrar. Esse mesmo sonho me persegue noite após noite, como um aviso que não consigo compreender. Sinto que ele quer me mostrar algo.

Olho para o relógio. Estou atrasada! Preciso me apressar para não perder a hora no jornal. Trabalho como colunista em um jornal local, a rotina é a única coisa que me mantém centrada. Hoje, porém, até isso parece frágil, como se o limite entre o sonho e a realidade estivesse se tornando cada vez mais tênue.

No jornal, sou conhecida como “a mulher do coração gelado”. Implacável, minhas palavras cortam como lâminas, e minhas colunas afiadas expõem a verdade nua e crua, doa a quem doer. Talvez por isso eu possua tão poucos amigos... diria que nenhum, na verdade. Sou solitária em meio a uma redação cheia de gente. Ninguém se atreve a se aproximar de mim. E, sinceramente, acho que já me acostumei com isso.

Às vezes, antes de voltar para minha casa fria e sem vida, onde o silêncio é meu único companheiro, passo no bar da esquina e bebo uns drinques. Ali, me sento em uma mesa observando o movimento como se eu fizesse parte dele. Finjo ser uma pessoa comum, uma mulher que espera por um amigo ou, quem sabe, um encontro. Bebo devagar. No entanto, meu suposto amigo nunca aparece. Nunca houve um convite, um compromisso, só o vazio de mais uma noite.

Sempre há alguém do jornal sentado por ali, em uma mesa ao fundo, eles desviam o olhar e fingem que não me veem. Continuam suas conversas como se eu não existisse, e, de certo modo, não existo para eles. Sou apenas uma figura distante, uma presença incômoda que ninguém quer por perto. Eles não me conhecem, não sabem quem sou além da minha coluna mordaz. Sou uma estranha para eles e, pior ainda, sou uma estranha para mim mesma.

Olho para o copo na minha frente e me pergunto quantas vezes vou repetir esse ritual sozinha, tentando preencher um espaço dentro de mim que parece aumentar a cada dia. As luzes do bar são suaves, mas não aquecem, apenas acentuam as sombras. E, em cada reflexo na superfície do meu drinque, vejo uma mulher que poderia ser qualquer uma, menos eu. Uma mulher que gostaria de ter um motivo para sorrir, realmente esperar por alguém que viesse ao seu encontro. Bem sei que essa realidade não é a minha.

Dou um último gole e me levanto. Lá fora, o nevoeiro ainda se arrasta pelas ruas, tão espesso e intransponível quanto a solidão que carrego. E assim, volto para casa, sem respostas, sem companhia, apenas com o silêncio gelado que me espera.

***

Mais uma vez, estou presa no branco interminável da neve. O vento gelado chicoteia meu rosto, e a paisagem parece não ter fim, como um deserto congelado que se estende em todas as direções. Dessa vez, há algo diferente. Não sou apenas uma prisioneira do medo, sei que estou em um sonho. Nada aqui é real, porém, o frio, a solidão e a neve parecem mais tangíveis do que nunca.

A cada passo, o gelo estala sob meus pés, o ar cortante entra nos pulmões como agulhas afiadas. Ao longe, uma silhueta se forma na neblina. É indistinta, os contornos se misturam com a neve ao redor. Não consigo distinguir se é um homem ou uma mulher. A figura parece frágil, quase etérea, como se pudesse desaparecer a qualquer momento. No entanto, há algo familiar nela, algo que me atrai e assusta ao mesmo tempo.

A figura acena para mim, um gesto urgente que corta o vazio ao nosso redor. O movimento é cheio de pressa e preocupação. Um arrepio sobe pela minha espinha. Mesmo à distância, sinto a tensão dela, como se estivesse tentando me alertar, como se dissesse:

"Corre!"

O pavor cresce dentro de mim, e o chão parece afundar sob meus pés. Há algo na maneira como a silhueta se move que me faz hesitar. Parece desesperada, ansiosa para me tirar daqui, e também assombrada por algo que não consigo ver. Cada segundo que passo parada é um segundo a mais de angústia, como se o tempo estivesse se esgotando. Olho ao redor, buscando uma saída, só vejo o mesmo deserto branco, vasto e implacável.

O som do vento é alto, quase ensurdecedor, misturado com sussurros que não consigo entender. Sei que preciso escapar, aquela figura está tentando me salvar de algo. Mas, ao mesmo tempo, uma parte de mim resiste, presa entre o medo e a paralisia.

O gesto dela continua, insistente, quase implorando. E eu, congelada pelo pavor, me pergunto se conseguirei dar o próximo passo ou se ficarei presa para sempre neste sonho, nesta interminável vastidão branca que ameaça me engolir.

***

No meio da tarde o telefone do jornal toca. Atendo sem muita pressa, esperando mais uma reclamação, ou alguém buscando atenção para uma denúncia anônima. Dessa vez é diferente. A voz do outro lado é grave e cheia de um tom enigmático que imediatamente me deixa em alerta. Ele não se apresenta, apenas diz que tem um furo de reportagem para mim. Algo grande, que ninguém mais sabe. Isso não seria tão estranho, afinal, as pessoas me procuram o tempo todo de forma anônima por temerem expor seus nomes nas minhas colunas. Minhas matérias sempre são comprometedoras, revelam verdades que muitos prefeririam manter enterradas.

Esse homem quer se encontrar pessoalmente, o que é incomum. Ele não quer falar por telefone, e quando pergunto seu nome, ele apenas ri, um som seco e desconcertante, antes de me interromper.

— Nos encontramos no bar de sempre. Aquele que você vai depois do trabalho.

Meu estômago revira. Se ele sabe onde eu vou beber, é porque já me viu lá antes. De alguma forma, ele tem me observado, e essa certeza me faz estremecer.

Um calafrio sobe pela minha espinha. A ideia de ser observada em um lugar onde me sinto invisível é perturbadora. No bar, gosto de pensar que sou alguém comum, agora percebo que nunca estive realmente sozinha. Ele sabia exatamente onde me encontrar, e isso me deixa apreensiva. O bar é sempre movimentado, repleto de rostos desconhecidos, mas agora todos parecem cúmplices de algo que não consigo entender.

Estou receosa. E se for alguém que irritei em uma das minhas matérias? Já expus muitos segredos, e nem todos ficaram satisfeitos com o que revelei. Ou melhor, ninguém ficou satisfeito. Respiro fundo, tentando me acalmar. Pelo menos ele escolheu um lugar público, cheio de gente. Se ele pretendesse algo, não teria marcado num lugar onde haveria testemunhas por todos os lados. Isso me dá um mínimo de segurança, porém a sensação de estar sendo vigiada não desaparece.

— Estarei lá — digo, tentando manter a voz firme. Desligo e encaro a tela do celular por alguns segundos, me perguntando se deveria ir ou se seria melhor ignorar. No entanto, a curiosidade é mais forte. Um encontro inesperado, uma oportunidade para um furo de reportagem — eu não poderia recusar.

Pego minhas coisas e saio, o coração acelerado, os pensamentos a mil. A caminho do bar, olhando ao redor, buscando rostos familiares, tentando identificar algum olhar que provavelmente me observe. Estou prestes a encontrar alguém que já me conhece, mas que para mim é apenas uma figura sem rosto. Tenho a sensação de ser uma peça em um jogo que não entendo.

No bar, o tempo parece se arrastar. Esperei por mais de uma hora, sentada na mesma mesa de sempre, fingindo uma calma que não sentia. O contato prometido não apareceu, ou pelo menos não se apresentou. Eu, no entanto, sabia que ele estava lá, me observando, escondido atrás de um rosto qualquer, misturado à multidão. Como uma boa repórter, mantive meu papel. Fingi que esperava um amigo, como sempre fiz.

Dessa vez, porém, minha atenção estava mais afiada. Analisei cada rosto naquele bar, cada expressão, cada um que entrava e saía pela porta. Pessoas comuns que bebiam suas frustrações e alegrias, conversando em vozes abafadas pelo som ambiente, todos pareciam suspeitos. Estudei cada um deles, memorizando detalhes como um quebra-cabeça esperando ser resolvido: o homem de terno que pediu um uísque duplo sem gelo, a mulher loira que trocava mensagens nervosamente no celular, o jovem encostado no balcão com um olhar perdido e uma cerveja esquecida na mão.

Cada vez que a porta se abria, um novo rosto surgia, eu registrava mentalmente o que pediam. Ele estava lá, disso eu tinha certeza. Era impossível não sentir. Os olhos invisíveis que me seguiam, as costas que ardiam a cada movimento. Cada minuto que passava aumentava a certeza de que ele estava perto, espreitando, talvez rindo da minha impaciência ou avaliando se eu era mesmo digna do tal furo que prometera. A pergunta que não saía da minha cabeça era simples e desesperadora: por que ele não se apresentou?

Olhei ao redor mais uma vez, tentando decifrar o que poderia ter mudado, mas tudo parecia normal, comum demais para ser verdade. A sensação de ser manipulada, de estar no centro de um jogo cujas regras me escapavam, era sufocante. Passei a mão pelo copo, e tomei mais um gole, forçando um sorriso que nem eu acreditava.

Talvez fosse um teste, uma forma de avaliar o quanto eu estaria disposta a me expor por uma história? A cada segundo, a incerteza crescia, e com ela o desconforto. Ele estava perto, disso eu não duvidava. Uma pergunta que continuava a ressoar era se eu seria capaz de reconhecê-lo quando, ou se, ele decidisse finalmente se revelar.

Deixei o copo na mesa e, pela primeira vez naquela noite, pensei em ir embora. Eu não sabia quem ele era, mas sabia que estava sendo desafiada. E eu não iria recuar.

Volto para casa sozinha, o som dos meus passos ecoando na calçada deserta. O vento frio da noite arrepia a minha pele, e a frustração me acompanha como uma sombra. O contato não apareceu, não se revelou, e agora carrego a sensação inquietante de ter sido testada, manipulada. Dentro de casa, tudo está silencioso e gelado, como se o frio da rua tivesse entrado comigo.

Deixo minhas coisas de lado e desço até o deque, buscando algum consolo na visão do lago, que sempre me trouxe paz. Mas hoje, a paz parece distante. Minha mente vagueia, perdida entre a realidade e os flashs do sonho que me atormenta. A cada passo no deque de madeira, sinto o chão se transformar sob meus pés, como se eu estivesse atravessando uma linha tênue entre o real e o desconhecido.

O deque se alonga, se estende como uma ponte que surge do nada, avançando para além do lago. Tento focar, mas tudo se distorce. O lago que outrora me parecia familiar agora se transforma em um vasto oceano negro, um abismo que engole a luz ao seu redor. Sei que estou indo ao encontro de algo que não compreendo, mas uma força maior me impulsiona a seguir adiante. Cada passo é um desafio, e mesmo sabendo que estou indo em direção ao desconhecido, continuo.

***

De repente, sou lançada em um branco ofuscante. A neve? Sempre foi um sonho, e agora, de repente, me vejo presa novamente neste deserto gelado. As árvores nuas e o silêncio sufocante me cercam. Não sinto minhas mãos, e o frio atravessa minha pele, alcançando os ossos.

Olho adiante e, do outro lado da ponte, vejo a mesma silhueta dos sonhos anteriores. Ela acena insistente, como se quisesse me tirar dali. Dessa vez, porém, ouço sua voz. Uma voz rouca e firme, a mesma do telefonema.

“Corre... corre...” — A urgência em suas palavras é quase palpável, e meu coração dispara.

***

Acordo ofegante e desorientada. Estou de volta ao deque, o lago calmo e silencioso sob a luz suave da lua cheia. As estrelas brilham no céu claro, e a noite segue tranquila, como se nada tivesse acontecido. O vento suave balança as folhas ao redor, e o reflexo da lua no lago é sereno, bonito demais para ser real depois do que acabei de experimentar.

Fico ali, parada, tentando entender o que aconteceu. Foi um sonho? Um delírio? Ou algo mais profundo que ainda não consigo compreender? Olho para o reflexo na água e vejo apenas meu próprio rosto, mas por dentro, sinto-me tão desconhecida quanto a própria escuridão do lago.

***

Mais um dia tedioso no jornal. As horas se arrastam entre reuniões chatas, telefonemas inúteis, e a rotina monótona de escrever colunas que, apesar de afiadas, já não me trazem a mesma satisfação. Hoje, porém, algo quebra a monotonia: um envelope. Encontrei-o logo pela manhã, largado em cima da minha mesa, claramente endereçado a mim. Não estava lacrado de forma profissional, era apenas um pedaço de papel dobrado dentro de um envelope simples. O coração dispara antes mesmo de eu abrir. Uma mistura de raiva e frustração toma conta de mim, e minhas mãos tremem enquanto abro o envelope.

“Você estava linda ontem.”

As palavras são simples, e o efeito é devastador. Uma onda de fúria me atravessa. O desgraçado estava no bar, como eu havia suspeitado. Ele me viu, me analisou, e preferiu não se apresentar. Agora, tenho certeza de que isso não tem nada a ver com um furo de reportagem. Esse sujeito está me testando, brincando comigo, como se eu fosse uma marionete no seu jogo doentio.

Meu sangue ferve enquanto releio aquelas palavras. Não há nome, não há nenhuma pista, apenas a certeza de que ele esteve lá, próximo o suficiente para me observar e distante o bastante para continuar no controle. O anonimato dele é sufocante, e a sensação de ser vigiada me aterroriza.

Olho ao redor da redação, tentando identificar algum olhar suspeito, mas tudo parece exatamente igual. Colegas ocupados com suas próprias tarefas, absortos nas telas de seus computadores, indiferentes ao que estou passando. Para eles, sou apenas “a mulher de coração gelado”, a colunista implacável que ninguém se atreve a se aproximar.

As palavras do bilhete ecoam na minha mente, e o nervosismo cresce. O que ele quer? Até onde ele estará disposto a ir?

***

Estou novamente na ponte, a mesma que sempre surge no sonho e a realidade, entre o conhecido e o desconhecido. O vento gelado me atinge com força, fazendo o cabelo chicotear o rosto, e a neve… sempre a neve.

Do outro lado, ele está lá novamente, a silhueta familiar que me atormenta, acenando freneticamente. A figura é indistinta, coberta por sombras que a neve não consegue iluminar, mas sua presença é inconfundível. Ele grita com uma urgência desesperada, a voz rouca e firme cortando o ar gelado:

"Corre... corre!"

Meu coração dispara, e um medo irracional toma conta de mim. Instintivamente, viro-me para olhar na direção oposta, tentando entender o que me persegue. O som estridente de um tiro corta o silêncio como um trovão, ensurdecedor e próximo demais. O estampido ressoa na minha cabeça, e meu corpo inteiro se contrai num espasmo de pânico.

Olho para o chão, e o branco da neve começa a ser manchado por um rastro de sangue. Meu sangue. Uma dor aguda e lacerante explode no meu abdômen, e a sensação do líquido quente escorrendo é aterradora. A dor é real, avassaladora, e o frio que antes era cortante agora parece se infiltrar ainda mais, misturando-se ao calor do sangue que jorra.

Olhando para baixo, vejo a neve se tingir de vermelho, o contraste é grotesco e hipnotizante. Cada batida do meu coração espalha mais daquela cor viva na brancura infinita, e o mundo começa a girar, escurecendo nas bordas da minha visão.

Levanto o olhar e vejo que ele ainda está lá, mais próximo agora. A figura indistinta se revela um pouco mais, os traços de um rosto que não consigo identificar. Sua voz, agora mais baixa e cheia de uma amargura gélida, ecoa pela ponte como um sussurro que me envolve:

"Você não correu..."

 

 

Tema: Pontes

Juliana Duarte Honorato

Juliana Duarte Honorato
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 30/08/2024
Reeditado em 30/08/2024
Código do texto: T8140238
Classificação de conteúdo: seguro
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