Entre as Ruinas da Mente

“Minha mãe costumava dizer que tudo o que perdemos um dia volta para nós, mas nem sempre da forma que desejamos.”

PARTE I

Nada mata o homem tanto quanto a sua própria mente.

Como explicar o que ninguém pode entender? Sinto que a vida é tão confusa quanto um labirinto sem saída. Sempre que fecho os olhos, parece que absolutamente nada muda. Os dias passam devagar, e não tenho nada novo para mostrar. As paredes do meu quarto continuam desmoronando... Às vezes me pergunto se alguém notaria se eu sumisse. Meu mundo está solitário, minha mente está cansada, meu espírito grita por socorro, e nenhum fantasma quer me escutar.

Essa sensação de vazio e isolamento começou a pesar gradativamente em mim. Cada novo dia era uma repetição entediante do anterior; o mundo lá fora, aparentemente intocado, parecia separado por uma barreira invisível. De que adianta ser livre e estar numa prisão mental?

Foi em uma tarde como qualquer outra, minha ansiedade tomando conta de mim ao realizar simples tarefas diárias, quando o destino decidiu me conceder aquele “empurrão” inesperado. Sentado na areia da praia, isolado em meus próprios pensamentos, tentava afastar a ansiedade, quando inesperadamente uma garota notou minha presença de uma forma que nunca havia acontecido antes. Aproximou-se com um sorriso tímido, puxando conversa. Seu nome era Eduarda.

Ao escutá-la, fiquei hipnotizado por tamanha beleza. Aparência delicada, cabelos tão longos e escuros quanto a noite, voando ao vento enquanto a moça me encarava fixamente. Seus olhos castanhos pareciam portais para a alma, moldados num rosto angelical, sugerindo ter caído dos céus. A voz suave da garota tinha um poder quase mágico de me envolver em palavras, fazendo o mundo ao nosso redor desaparecer momentaneamente. Fiquei completamente perdido em seu encanto. Teria sido amor à primeira vista?

Apesar da aparência intimidadora, possuía uma profundidade emocional e uma sensibilidade tocante. Ela mencionou que já me observava pela cidade há tempos, mas que eu não percebia. Assim como não percebia nada à minha volta.

“Neném, faz tempo que noto você solitário, preso em pensamentos. Não precisa carregar sozinho o peso do mundo”, disse a moça em tom de preocupação, olhando fixamente nos meus olhos com amor, e continuou:

“Eu sei que a vida pode ser esmagadora às vezes. Você não precisa enfrentar tudo sozinho. Estou aqui para ouvir e te apoiar. Estou aqui para você.”

Nessa frase, ela descobriu o grande enigma da minha vida. Teria a chave do meu mundo? Suas palavras me fizeram refletir sobre tudo o que pode passar despercebido quando estamos envolvidos em nosso universo interno.

Nem de longe aquilo foi uma simples conversa. A garota despediu-se, concedendo-me um abraço que me fez sentir protegido em meio ao caos. Seus braços envolviam meu corpo, transmitindo conforto. Eduarda se aproximou com ternura; seu perfume entorpecente preenchia meus sentidos ao mesmo tempo em que sua respiração tranquila unia-se à minha. Nesse momento, nossas bocas se tocaram. Seu beijo gelado parecia o néctar de uma rara flor desabrochando numa fria noite de inverno. Pude sentir o contraste da intensa maquiagem gótica violando a fragilidade dos lábios macios e aveludados como pétalas de rosa negra. Fechei meus olhos e já estava totalmente entregue. Foi uma surpresa incrível e inesperada para meus anseios.

Aquelas palavras e gestos carinhosos daquele dia ensinaram-me que, mesmo em momentos de dificuldades, a vida ainda guarda surpresas e oportunidades de ligação humana genuína, quando menos esperamos. Às vezes, um único encontro inesperado pode mudar o curso de toda a nossa existência. A sorte sorriu para mim naquele dia, e eu nunca mais seria o mesmo.

Nosso relacionamento significava a busca incansável por sentido no vasto e misterioso universo. Eduarda, apaixonada por arte, música e cultura alternativa, e eu, arruinado em pensamentos. Refugiávamo-nos em simples bares para mergulhar nas mais profundas discussões sobre astrologia, astronomia e ocultismo. Caminhar à beira da praia ao pôr do sol assemelhava-se a testemunhar a dança dos elementos ao encontro entre escuridão e luz, espelhando nossa própria dualidade. Assistíamos a seriados buscando, juntos, uma viagem através de histórias obscuras. O vinho era uma poção mágica, liberando nossas mentes para explorar mundos além da realidade. Corríamos em sua moto pelos arredores da cidade; a jovem apresentava atitudes corajosas, dizendo que a liberdade proporcionada pela moto a inspirava a conquistar qualquer coisa. Cada momento junto proporcionava uma conexão espiritual, como se nossas almas estivessem destinadas a esse encontro perfeito.

Mais do que almas gêmeas, éramos cúmplices na procura pelo desconhecido, buscando magia em cada detalhe da vida. Duas pessoas intimamente ligadas, inseparáveis, atraídas irresistivelmente uma pela outra.

Os dias transformaram-se nos melhores da minha vida. Repletos de aventuras, risos, amor, conversas e descobertas que apenas sua presença poderia proporcionar. Cada momento compartilhado era um presente dado; nosso futuro prometia alegria a cada passo trilhado.

Até ela morrer.

PARTE II

O destino pode ser igualmente traiçoeiro, mesmo nos momentos mais felizes.

Em uma curva da estrada, onde Eduarda se inclinava graciosamente, um carro cruzou seu caminho. Aquele maldito motorista perdeu o controle, invadindo a pista da moto e colidindo violentamente. O impacto foi devastador. Sua moto foi lançada para longe, ficando totalmente destroçada, enquanto a jovem foi arremessada ao ar antes de cair abruptamente sobre o asfalto. Seu corpo, antes cheio de vida e vitalidade, agora estava imóvel e distorcido pela dor.

As pessoas que passavam pelo local prestaram assistência. O motorista, claramente alcoolizado, estava em estado de choque. Solicitaram uma ambulância, mas, lamentavelmente, era tarde demais. O corpo estava sem vida.

Naquele dia, estávamos animados, pois eu iria conhecer pessoalmente sua única irmã, Camila. Havíamos combinado almoçar todos juntos. Fiquei em meu apartamento encarregado de preparar nosso prato especial, enquanto Eduarda saiu para buscar sua irmã. As horas passaram e o telefone não tocou. Isso era incomum, já que ela sempre foi pontual para ligar ou mandar mensagens quando saía.

Conforme o tempo passava, minha preocupação aumentava. Comecei a telefonar repetidamente, mas ninguém atendia. Meu coração batia forte, mostrando que algo não estava certo. Após várias tentativas, decidi ligar para Camila, mas também sem sucesso. O desespero tomou conta de mim.

Pouco tempo depois, o celular tocou, e a voz trêmula da irmã de Eduarda disse: “Houve um acidente de moto e ela está no hospital.” Meu mundo desabou naquele momento. Rapidamente, chamei um Uber e corri freneticamente para lá, com o coração apertado de tristeza.

Eduarda havia falecido, e eu não estava ao seu lado, contrariando todos os instantes em que ela sempre esteve próxima a mim. Nossos momentos compartilhados ecoam dolorosamente em minha mente, deixando-me ansiando por seu calor, sorriso e presença. Agora, minha única opção seria aguardar seu velório. Até aquele momento, eu ainda não havia assimilado completamente a situação.

PARTE III

A tarde estava sombria quando amigos e familiares começaram a se reunir na velha capela da cidade. O céu estava oculto por densas nuvens que rapidamente transformaram-se em uma tempestade, arquitetando o próprio anúncio de luto. O som da chuva batendo nos vitrais e telhados criava uma sintonia perfeita, com gotas em ritmo acelerado espirrando água pelas frestas das antigas janelas, causando desconforto a todos os presentes.

O caixão repousava no centro da capela, ornamentado por flores frescas e pela luz de velas trêmulas, que projetavam estranhos reflexos nas paredes. Minha amada princesa descansava ali, deitada serenamente, aparentando estar apenas em sono profundo. Usava um lindo vestido com adornos, e sobre o pescoço exibia seu colar com pingente de crucifixo, parecendo um anjo que havia caído sobre a terra. Foi a primeira vez que a vi vestida nessa cor, branco luminoso, o que contrastava com seu estilo normalmente gótico. A mudança de aparência destacava ainda mais sua presença angelical.

Segui lentamente em direção ao caixão, enquanto soluços abafados ecoavam, quebrando o silêncio sepulcral. Os presentes reunidos ao redor exibiam rostos pálidos, carregados de assombro e pesar, como se tivessem testemunhado algo aterrador. Era Eduarda.

O rosto da garota estava brutalmente irreconhecível. Seu semblante jovem e radiante, que costumava iluminar tudo ao redor, havia sido transformado em um pesadelo de contusões decorrentes do acidente. As feições, antes delicadamente suaves e fonte de encanto, foram distorcidas. Sua pele, macia e convidativa ao toque, agora estava marcada por profundas cicatrizes que contavam uma história de dor e sofrimento.

O inchaço visível deu à sua face uma aparência irregular. Seus olhos, outrora brilhantes e cheios de vivacidade, agora pareciam duas sombras escuras e vazias. Os lábios, antes rosados e simétricos, estavam desfigurados. Um dos cantos da boca permanecia estático, formando uma inevitável careta de agonia. As pálpebras estavam inflamadas, tornando impossível fechar os olhos completamente. O nariz, deformado e achatado, parecia ter sido esmagado por uma força brutal. A visão de seu rosto em repouso eterno era assombrosa. Percebi que, no final, ela não passava de um corpo sem vida.

Apesar de todas as contusões, seu cabelo continuava impecável. Perfeitamente alinhado e brilhando à luz das velas, com textura sedosa, ainda exalava o marcante perfume que eu conhecia tão bem. Seu cabelo, refletindo fielmente sua beleza, permanecia cuidadosamente elegante e imaculado, até o último momento. Esses detalhes transcenderam a morte, mantendo-se intocados, como se quisessem lembrar a todos de sua essência marcante mesmo diante da tragédia.

Estava totalmente destruído ao ver meu amor imóvel, deitada ali diante de meus olhos, envolta em um silêncio absoluto dentro daquele caixão. A sensação de impotência diante da morte é arrasadora. Enquanto tentava absorver a cruel realidade, cada parte do meu ser ansiava por um milagre que pudesse trazê-la de volta. Apesar disso, a dura verdade permanecia inabalável. O mundo inteiro desabava, e a realidade perdia a razão, provocando um sentimento de perda e vazio intenso que tomava conta do coração, fazendo parecer que parte de mim também partiu com ela.

Nesse instante, senti um desejo enorme de tê-la em meus braços; precisava de uma lembrança física de seu toque e presença. Enquanto a abraçava em seu caixão, decidi pegar fios de seu cabelo sem que ninguém pudesse notar. Foi um gesto impulsionado pelo amor, uma tentativa de capturar fragmentos de sua essência antes que fossem completamente levados pelo tempo. Cada pequeno fio, suave e brilhante, seria um elo de conexão, proporcionando conforto e consolo; uma maneira de manter viva a memória e preservar parte da história compartilhada entre nós. Isso trouxe certo conforto, acalentando minha alma, com o pressentimento de que sua presença jamais me abandonaria por completo. Um lembrete de um amor verdadeiro que vai além da separação física. Ao tocar aqueles fios de cabelo, pude sentir sua energia, como se ela estivesse ali, sussurrando palavras de consolo e amor eterno.

Naquele momento, carregava a certeza de que isso não se tratava de uma despedida. Eduarda não me abandonaria, nem mesmo após a morte.

PARTE IV

Nos dias seguintes, mergulhei em um abismo de desespero e medo, sendo atormentado por tudo que havia acontecido. A culpa me consumia; eu deveria ter dito "eu te amo" ao menos uma vez naquele dia. Mas não disse.

Sozinho neste apartamento, preenchido por memórias felizes, aquele marcante cheiro de perfume ainda estava impregnado por todo o lugar. No entanto, após sua partida, o local se transformou em algo triste. A cada noite, pesadelos terríveis me assombravam, parecendo tão reais que, a cada vez que acordava, mal distinguia se estava realmente dormindo.

Em um momento de desespero, considerei tentar algo peculiar, pelo qual havia criado grande interesse: o tabuleiro Ouija. Assim, poderia tentar estabelecer uma possível comunicação entre nós. Infelizmente, nada aconteceu. Frustrado, recorri a alguns sedativos para conseguir dormir.

Acordei encharcado de suor; o relógio marcava pontualmente 3 horas da manhã. Aquele silêncio, acompanhado da ansiedade, reinava. Ainda inconformado, decidi fazer um novo experimento.

Poderia estar totalmente enganado, contudo, a dúvida é um preço que se paga.

Recordando aquela pequena fração de cabelo que havia coletado durante seu funeral, acreditei que poderia utilizá-los na tentativa de estabelecer uma conexão mais poderosa. Ao tocar aqueles delicados fios, eles deslizavam suavemente entre meus dedos, trazendo à mente lembranças de sorrisos em momentos preciosos.

Com minhas mãos trêmulas, acendi sete velas brancas em volta do tabuleiro Ouija. Coloquei seu cabelo cuidadosamente dentro do nosso copo favorito, planejando usá-lo como um elo de ligação entre Eduarda e eu. Agora, pude sentir a atmosfera mais densa e carregada.

Segurei o copo sobre o indicador, respirei fundo e comecei a falar:

"Eduarda, se você estiver aqui, por favor, dê algum sinal."

O copo começou a se mover energeticamente, formando palavras no tabuleiro:

Ouija: “C-O-R-R-A”

A porta de entrada do apartamento abriu-se com violência, batendo contra a parede, como se fosse um aviso para eu deixar o local. Mal podia acreditar no que estava presenciando, mas precisava continuar com a comunicação e seguir em frente.

Engoli em seco; minha respiração ficou presa na garganta.

“Eduarda, é você? Está em paz?”

Desta vez, houve uma pausa antes que o copo começasse a se movimentar novamente.

Ouija: “A-I-N-D-A N-Ã-O”

Meu coração disparou; eu estava numa encruzilhada entre o medo e a esperança.

“O que você quer? Como posso te ajudar?”

Ouija: “V-I-N-G-A-N-Ç-A”

O copo se movia rapidamente, de forma incontrolável.

"Vingança? Não, Eduarda, isso não pode ser você!"

Ouija: “A-J-U-D-A”

O ambiente ao redor ficava mais frio e opressivo.

“Como posso te ajudar?”

Ouija: “E-N-C-O-N-T-R-E”

Senti um calafrio percorrer minha espinha.

“Quem devo encontrar?”

Ouija: “M-O-T-O-R-I-S-T-A”

PARTE V

Hoje faz 7 dias que ela se foi, e tomei a difícil decisão de não participar da missa em sua memória. O peso do vazio é devastador. Em vez disso, optei por beber vinho em nosso apartamento, onde poderia honrar sua memória de um jeito que só nós dois entenderíamos. Experimentar a perda do seu grande amor é uma dor indescritível, então eu apenas queria ficar sozinho neste momento de luto eterno.

Certa hora, ouvi um fraco bater na porta, o que foi estranho, pois o interfone não tocou. Ignorei, imaginando que fosse algum vizinho chato querendo falar palavras de autoajuda que só fariam piorar minha situação. As batidas, contudo, não cessaram; muito pelo contrário, ficaram mais fortes.

Resolvi abrir a porta, e para minha surpresa, Eduarda estava parada ali, com seus olhos vazios, exibindo uma expressão perturbadora. Meu coração gelou; uma mistura de medo e amor tomou conta de mim.

“Você não deveria estar sofrendo tanto por mim...” disse ela em um gélido sussurro.

Fiquei paralisado, incapaz de acreditar no que via e ouvia. “Você está morta,” murmurei.

Eduarda começou a se aproximar. Sua pele estava pálida, parecendo translúcida na fraca luz da sala. “O que é a morte senão uma transformação? Você nem ao menos compareceu à minha missa, não me ama mais?” Continuou dizendo: “Vamos, junte-se a mim e encontraremos paz.” De forma robótica, ela ergueu seu braço esquerdo e apontou para a sacada do apartamento, cantarolando: “Um pulinho, só um pulinho, apenas um pulinho!”

O terror me envolvia. Algo na sua voz me chamava. A lembrança do nosso amor, junto ao desejo de encontrá-la novamente, lutava contra a horrível realidade de sua morte e o que parecia ser uma oferta sobrenatural.

“Eduarda...” murmurei, lutando para encontrar palavras.

Ela continuou avançando em minha direção; seu olhar penetrante parecia perfurar a alma. A sacada agora tinha uma certa atração mórbida, um ímã para minha mente confusa.

Um pulinho, só um pulinho, apenas um pulinho!

Tomei uma decisão que desafiava a própria lógica, testando minha sanidade. Eu a abracei, mas seu perfume não estava presente; senti o cheiro horrível de enxofre. Com um último suspiro de coragem, dei três passos para trás e gritei: “Não!”

Neste momento, ela se dissolveu em sombras, espalhando-se por todas as partes antes de desaparecer totalmente.

PARTE VI

Após o episódio da aparição diabólica, a presença maligna no apartamento se intensificou. A energia densa e carregada fazia parecer que o próprio ar estava tomado por um mal indescritível. Eu tinha a nítida sensação de que algo sinistro estava à espreita nas sombras, pronto para se manifestar a qualquer momento, observando, desejando transformar meu sofrimento em algo ainda mais aterrorizante.

Fiquei paralisado pelo medo e pela incerteza. Aquela entidade sinistra poderia ser minha amada ou algum ser maligno tirando proveito do meu momento de fraqueza. Esses pensamentos tumultuavam minha mente.

Precisava de ajuda. Comecei a pesquisar na internet sobre casos semelhantes e descobri relatos paranormais referentes a entidades malignas que tomam a forma de outros espíritos para atormentar as pessoas. Além disso, era possível que espíritos se conectassem a objetos materiais que possuíssem um significado emocional para eles. Objetos podem conter energias, especialmente aqueles relacionados a momentos específicos.

Será que o espírito dela estava de alguma forma preso ou ligado a alguma coisa, por exemplo, ao nosso copo que usei no jogo de Ouija?

Peguei o copo com cuidado, observando-o como se fosse a primeira vez. Era um objeto aparentemente inofensivo. Comecei a concentrar minha mente e emoções nele, e lentamente, sensações familiares preenchiam o ambiente. O copo tremeu, como se tentasse chamar minha atenção. Através do vidro, eu podia enxergar uma figura anormal aprisionada, que se contorcia, lutando para escapar de seu confinamento.

O copo começou a se mover freneticamente até explodir com um forte estrondo, lançando estilhaços de vidro em minha direção com força extrema. Alguns dos cacos atingiram meus olhos, obscurecendo minha visão instantaneamente.

Aquela criatura, antes aprisionada, havia sido libertada, confirmando que não era o espírito real de Eduarda, mas algo demoníaco que se disfarçava com malícia. Manifestava-se como uma sombra negra, alta e de formato humanoide, com olhos vermelhos faiscantes. Sua risada diabólica e o odor pútrido eram atormentadores.

A criatura seguia em minha direção com movimentos bizarros. Cada passo era desordenado, alternando entre a postura ereta humana e a de um animal de quatro patas. Enquanto permanecia paralisado, minha mente gritava para fugir, mas meu corpo recusava-se a responder. Meus ouvidos captavam cada som ao redor enquanto aquela presença medonha se aproximava. Seu andar pesado ecoava como as batidas de um tambor macabro. Cada segundo era uma eternidade, um tormento prolongado. Sua força me dominava.

A sombra negra, agora, cara a cara comigo, abriu sua imensa boca desprovida de dentes, engolindo minha cabeça, sugando minha alma e criando uma escuridão sufocante. Mal conseguia respirar; meu coração batia descontroladamente. Precisava resistir àquela presença sinistra se quisesse ter alguma chance de sobreviver, mas a força para me mover ainda parecia estar fora do meu alcance.

Agora vejo que o fim é inevitável.

A criatura deleitava-se com meu sofrimento, e eu podia sentir sua satisfação. Era uma luta desigual, onde a escuridão me devorava, tornando cada vez mais difícil distinguir a realidade da ilusão.

Neste instante, algo inesperado aconteceu. Experimentei uma luz inusitada, capaz de dissipar a sombra, fazendo a criatura hesitar. Sua confiança vacilava pela primeira vez. E então, como um último suspiro de esperança, a luz brilhou, envolvendo tudo em uma luminosidade cegante.

Da densa escuridão surgiu a luz mais intensa. E, por um breve momento, senti felicidade.

PARTE VII

“Olá, tem alguém aí dentro? Faça algum movimento se puder me ouvir. Farei o possível para aliviar sua dor; apenas tente relaxar.”

Continuamente, alguém tentava me reanimar, talvez uma médica ou, quem sabe, um anjo. Na penumbra da consciência, as palavras ecoavam como um mantra tranquilizador.

“Respire profundamente; você vai ficar bem.”

Pelo canto dos olhos, vislumbrei a presença da minha amada Eduarda sorrindo para mim. Pude sentir sua áurea celestial inundando-me com sentimentos de paz e amor incondicional, mostrando que tudo ficaria bem, independentemente do caminho que eu escolhesse.

“Por favor, não durma”, disse a voz.

Estou apagando. Vejo seus lábios se moverem, mas não consigo entender o que diz.

A cada descarga elétrica que recebia em meu peito, o rosto de Eduarda ficava distante, levando consigo a memória de seus olhos e o calor de seu sorriso.

Estou entre dois mundos: a matéria e o além. Acho que busquei essa sensação durante toda a vida. Minha alma flutua entre o real e o etéreo, a vida existente e as possibilidades do desconhecido. Aqui, ainda sinto o pulsar desse mundo solitário já conhecido. Não obstante, vivencio a atração do além, um chamado entorpecente e persistente.

Nessa condição, compreendo que minha caminhada não havia sido encerrada. A vida é uma dádiva preciosa e única, onde encontrar significados pode ser fundamental para existir de forma plena. Entretanto, viver pela morte é uma perspectiva focada no medo, o que pode limitar nossa capacidade de aproveitar realmente a vida.

“Estou pronto”, afirmei, embora meus lábios mal se movessem.

A presença ao meu lado sorriu, como se soubesse da minha decisão desde o início. Senti um calor me envolvendo.

“Você fez bem”, sussurrou a voz carinhosamente.

Este é o fim. O início de um novo começo, no qual não precisamos viver pela morte, e sim pela vida.

P.H. Petters.

P H Petters
Enviado por P H Petters em 27/08/2024
Reeditado em 04/09/2024
Código do texto: T8138535
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