ESQUECIDOS - CLTS 28
Onde estão as memórias, senão dentro de nosso âmago? Qual a razão das lembranças serem guardadas em compartimentos que se perdem em nosso cérebro? Talvez um convite seja a chance de encontrarmos algo desconhecido ou recomeçarmos um novo capítulo? É mais fácil deixar tudo para trás, mesmo sem conhecer o desfecho final da história. Se não nos fizermos presentes, nossa ausência se tornará irrelevante. Merecíamos mais atenção ou a vida é assim mesmo?
Na obscura e silenciosa vila de Santo Armelindo, onde as sombras pareciam ter vida própria e o tempo avançava lentamente, hesitando em seguir adiante, Rodrigo, com seus cabelos grisalhos e barba completamente branca, observava o movimento da roseira pela janela de sua casa humilde. Seu olhar cansado quase completamente escondido debaixo das sobrancelhas grossas, refletia uma vida de batalhas não vencidas e um destino que sempre parecia lhe escapar. Era uma noite fria de inverno quando a mensagem chegou: uma carta envelhecida e amassada, com uma caligrafia antiga e irregular, grudou no vidro à sua frente. Bastou abrir a janela para deixar o ar gélido entrar e pegar o papel. Antes de lê-lo, Rodrigo paralisou ao observar a madeira envelhecida da casa, o número da residência quase desaparecendo sob a ferrugem e as casinhas dos cachorros vazias. Fechou os olhos e recordou o dia em que pintava a casa com sua falecida esposa e seus quatro filhos. A memória do lugar, uma vez vibrante com cores e vida, era agora um fantasma do passado. Lembrava da casa colorida, das gargalhadas, dos latidos dos cães em volta das crianças... do passado.
Abriu os olhos e voltou ao presente. Estendeu o papel sobre a perna, colocou-o sob o velho castiçal que piscava insistentemente e, com dificuldade devido à falta de óculos, leu em voz alta:
"Rodrigo, venha até a Ponte Eterna. Sua presença se faz necessária."
Poucas palavras, mas o impacto foi imenso para o homem que há muito vivia sozinho. Os amigos pareciam ter se afastado, e a família não fazia mais questão de manter contato. Entendia a evolução que trazia mais trabalho e ausência. Seus filhos cuidavam dos netos e de suas próprias responsabilidades. Talvez o visitassem no próximo Natal ou no seguinte.
“A vida é corrida!” Repetia para si mesmo.
Intrigado e inquieto, Rodrigo vestiu sobre o corpo magro um casaco longo e gasto e uma touca cobrindo as orelhas e decidiu seguir o misterioso convite. O local estava bloqueado e em desuso há tanto tempo que ninguém sabia ao certo quanto tempo tinha se passado. Havia uma lenda local de que a estrutura colossal se estendia para longe do horizonte, que não tinha fim e, principalmente, quem entrava não saía. — Um mito sempre considerado apenas um conto de fadas, mas mantinha os viventes longe dali.
Quando partiu, a vila estava envolta em uma névoa espessa. A escuridão da noite parecia engolir cada detalhe ao seu redor, tornando a atmosfera ainda mais sinistra. O caminho até seu destino era um labirinto de árvores retorcidas e arbustos espinhosos, onde o vento soprava como um lamento quase humano. Cada passo parecia ecoar em um silêncio mórbido, como se o mundo ao redor estivesse prendendo a respiração. A sensação de ser observado estava sempre presente, e cada som — o farfalhar das folhas, o estalar dos galhos — parecia amplificado pela noite silenciosa.
À medida que Rodrigo se afastava da vila, o ambiente se tornava cada vez mais opressivo. A névoa densa se tornava quase tangível, envolvendo tudo em um manto de mistério e medo. O frio penetrava seus ossos e ele sentia o peso da expectativa e do desconhecido sobre seus ombros. Seus pensamentos sobre a casa e a família tornavam-se mais vívidos à medida que avançava, como se buscasse uma âncora no passado para enfrentar o que estava por vir.
Lembrava dos domingos, em que a família se reunia na grande mesa de madeira, agora coberta de poeira. Ele sempre preparava o café, enquanto sua esposa fazia o pão fresco. As crianças brincavam no quintal e a vida parecia mais simples. Sentiu um aperto no peito ao lembrar-se dessas manhãs, e uma sensação de perda tomou conta de seu ser.
Finalmente, ao chegar à ponte, Rodrigo se deparou com uma cena de beleza macabra e perturbadora. A estrutura, feita de ferro envelhecido e madeira escura, coberta por musgo e teias de aranha, estava iluminada por lanternas penduradas ao longo do que se podia ver. A luz fraca e tremeluzente realçava a sensação de desolação e abandono. As lanternas, apesar de suas chamas vacilantes, não dissipavam a escuridão completa que envolvia a ponte.
Rodrigo avançou com cautela, seus passos abafados pela névoa densa. As lanternas pareciam flutuar, como se uma força invisível as movesse suavemente. Ao longe, começou a ouvir sussurros distantes, vozes abafadas que pareciam vir de dentro da própria estrutura. Esses sussurros cresciam em intensidade, como se aquele grande elo estivesse vivo e comunicando-se com ele por meio de gemidos sombrios.
Subitamente, o silêncio foi quebrado por um grito agudo e estridente. Rodrigo virou-se e viu um velho magro, com roupas sujas e olhos arregalados, caminhando com dificuldade em sua direção. O idoso parecia desesperado, e seu rosto estava pálido como cera. Quando Rodrigo se aproximou, o velho caiu aos seus pés, tremendo e chorando.
“Por favor, senhor, ajude-me! Estão todos mais à frente!” – implorou o velho, apontando para a escuridão que o aguardava.
Rodrigo tentou confortá-lo, mas um frio intenso começou a envolver a ponte, e a névoa parecia se adensar, tornando tudo mais opressivo. Ele decidiu seguir o rumo indicado pelo novo companheiro de caminhada. O vento uivava, e o som dos dois andarilhos parecia ser engolido pela escuridão. A sensação de estar perdido se intensificava a cada passo e a ponte parecia ter vida própria, mudando sutilmente sob seus pés.
Após alguns minutos, chegaram a um grupo de idosos, todos com expressões de terror em seus rostos. Eles estavam encostados nas grades, olhando fixamente para o vazio abaixo. Quando Rodrigo se aproximou, começaram a murmurar em uníssono palavras desconexas que apenas aumentavam a sensação de angústia. Entre os murmúrios, uma frase começou a se destacar, fazendo sentido para Rodrigo.
“Ele veio, ele veio,” repetiam os idosos, enquanto uma névoa mais espessa começava a emergir das fendas, envolvendo tudo em uma obscuridade quase palpável. O ar parecia estar carregado de uma pressão opressiva, e cada lamento dos idosos parecia amplificar o medo no ambiente.
De repente, as madeiras do piso começaram a tremer violentamente. Rodrigo tentou se manter equilibrado, mas o chão parecia se abrir sob seus pés, revelando um abismo profundo e sem fim, repleto de correntes de sangue que fluíam como rios infernais. O pavor tomou conta dele, e viu o velho e os outros idosos sendo arrastados pela força invisível do abismo, seus gritos misturando-se ao som do sangue borbulhante. O local parecia estar se deformando, esticando-se e ondulando, como se fosse um organismo vivo consumido por uma força sinistra.
O terror atingiu seu auge quando Rodrigo percebeu que tudo começava a se mover, alongando-se indefinidamente. O que parecia ser uma conexão com começo e fim era, na verdade, um caminho eterno. A cada passo que Rodrigo dava, o cenário ao seu redor se repetia de forma macabra: as lanternas, os gritos distantes, o grito do velho — tudo começava novamente. O homem solicitava sua ajuda e caminhava a seu lado até o encontro dos demais. A ponte voltava a engoli-los cada vez mais devagar, aumentando o sentimento de esquecimento e dor. A sensação de desespero se intensificava com a percepção de que não havia saída. Era um loop infinito.
Na cabeça de Rodrigo, nada era tão diferente de sua vida atual. Os dias solitários apenas se repetiam dentro de suas tarefas inúteis dentro do mausoléu criado para quase inconscientemente, colocar a culpa em si, na falta de atenção de seus filhos e netos.
Sem entender o que seria pior para seu futuro, tentou correr, mas a ligação alongava-se a cada passo. O vazio o envolvia, e ele começou a perceber a terrível verdade: a ponte não era apenas uma construção física, mas uma metáfora para um ciclo interminável de terror e sofrimento. O abismo abaixo não era apenas uma cavidade, mas um destino eterno, onde os esquecidos se tornavam eternamente vagantes. Tudo continuava a se estender, uma linha interminável de martírio, onde a esperança e a luz eram consumidas pela escuridão inesgotável.
Com um grito de desespero, Rodrigo se lançou para frente, mas foi engolido pela névoa escura. O tempo e o espaço se desfizeram ao seu redor, e ele foi absorvido pelo ciclo sem fim, tornando-se mais um espírito perdido na Ponte Eterna. Preso na eternidade, Rodrigo vagava pela ponte, revivendo incessantemente os momentos de sua vida, sentindo cada vez mais a dor da solidão e o peso das memórias que o consumiam. Cada lembrança era uma faca perfurando sua alma, e cada tentativa de encontrar uma saída resultava em mais dor e desespero. A escuridão da ponte era um espelho de sua própria mente, um labirinto sem fim, onde cada caminho levava a mais sofrimento.
Na vila de Santo Armelindo, logo deixaram de perguntar pelo antigo morador da casa 66. A lenda continuou a assombrar os habitantes, mas ninguém se atrevia a se aproximar do local. Parecia que o ar emitia um aviso sombrio para aqueles que ousassem seguir o chamado da carta misteriosa. A ponte continuava a se estender, uma linha interminável de dor e remorso, um lugar onde a esperança e a luz eram consumidas pela escuridão interminável.
A poucos metros das ruínas da casa de Rodrigo, algum tempo depois de sua partida, Jonas, imerso em seus pensamentos solitários, foi atingido por um papel amassado. Passou a mão pelos cabelos longos e brancos, forçou a bengala para alcançar o chão e recolheu o papel. Com dificuldade, abriu-o, tentando equilibrar o corpo, e leu as poucas palavras:
"Jonas, venha até a Ponte Eterna. Sua presença se faz necessária."
Virou lentamente, olhou para sua casa antiga e silenciosa, deixando escorrer uma lágrima triste. Então, com um pesaroso destino à vista, começou a andar. O caminho estava traçado, eterno e obscuro.
Tema: Pontes