O Menino que Fugiu - CLTS 28
O Menino que Fugiu
Para chegar ao grupo escolar, havia uma ponte mal feita de madeira, era estreita e longa, embora o riacho não fosse tão largo, mas a obra dava prestígio, então ela começava muito antes da margem e terminava bem depois. E todo dia de aula, íamos nós pulando para o outro lado, olhando tudo lá embaixo, com as sacolas de livros nas costas e nada na cabeça.
Havia esse costume de atravessarmos juntos, a meninada completa do lado de cá que lá estudava. Parecia que assim unidos éramos mais fortes ou mais sabidos, pelo menos foi o que disseram:
- Olha, você é o mais novo e então aprende: se chegar aqui mais cedo, espera, não atravessa de jeito nenhum, é ordem dos mais velhos.
Menino quieto e contido, menos pela idade e muito pelo tamanho, nem discuti:
- Então tá - e sempre aguardei a turma.
Na escola propriamente dita era cada um por si. Se a gente aprendesse alguma coisa, tudo bem, se não aprendesse, tudo bem também. A vida seguia, ninguém se importava e na volta vínhamos todos juntos de novo, isso continuou por todo o tempo em que moramos naquelas bandas.
Só aconteceu uma vez de um dos moleques atravessar sozinho aquela ponte estreita e longa com suas tábuas desconjuntadas de pregos aparecendo.
A vida não era ruim naqueles dias. É a minha lembrança. A gente brincava na roça, no quintal com os bichos, subia nas árvores e caçava passarinho com estilingue. Nos dias quentes, pescaria e água para nadar. O pai mais a mãe quase não se ocupavam da gente, isso não quer dizer que não fazíamos nada o dia inteiro. O que não falta no campo é serviço. Mas, de um modo ou de outro, sempre dava tempo de tudo. Quando tinha festa então, eram dez dias que ninguém dormia direito só para aproveitar o máximo possível.
Menos Osório, o menino filho de dona Inhana e seo João. Ele nasceu da cor do fogo e isso não era bem visto na época. “Menino com esse cabelo vermelho é sinal de coisa-ruim”, as comadres diziam a qualquer um e por qualquer um entenda-se dona Inhana e seo João também.
Por essas e outras, Osório meio que ficava largado no canto. Era filho único, os pais não quiseram arriscar outro foguinho em casa. Deus os livre. Bastava um. Mas não é que de arteiro, Osorio não tinha nada? Criança boa, nunca respondia alto, não brigava. Aprendia rápido e ajudava quem precisasse. Não fosse o cabelo ardendo, a pele branca igual miolo de ingá, ninguém dizia que era amaldiçoado.
É claro que a meninada caçoava dele. Principalmente quando os pelinhos de baixo começaram a aparecer. Uma curiosidade de gente besta para ver se o saco do Osório brotava faísca igual na cabeça. Ele faltava morrer de vergonha e teve um dia que quase brigou com o Geraldinho porque tentaram tirar-lhe o calção na marra. Osório ficou muito bravo, só vendo para acreditar. Passou a mão numa tora de pau deixada no mato, dessas de colocar no fogão para fazer comida e jurou que se encostasse nele de novo, qualquer um que fosse, não ia abrir os olhos mais.
Eu estava lá nessa hora e pode ser que não, pode ser que sim, mas os olhos de Osório ficaram bem afiados igual à faca de cortar peixe do pai. Esses olhos passaram em cima de cada um e foi como se deixasse um rasgo no queixo da gente. Certo é que Geraldinho arregou e ninguém tocou mais no assunto dos pelos de baixo do Osório.
E a vida continuava como tinha de ser, vez ou outra alguém aparecia morto no morro do Jagunço, briga de cachaça era a explicação geral, mesmo quando os defuntos nunca tivessem bebido. O morro do Jagunço ficava depois da ponte, bem depois da escola, quase lá no topo do céu com a terra. “E não é problema nosso”, ralhava o pai com pescoço compridando para o rumo do acontecido. “Se morreu, não era para estar vivo”. Fim da conversa.
Isso indo e vindo e nós esperando para atravessar a ponte, alguém deu o alarma:
- Tá faltando um – falou uma mocinha – já contei três vezes, tá faltando um menino.
Ninguém tinha avisado de faltar à aula naquele dia, mexe que revira lembrando os nomes e a conclusão foi uma só:
- Osório, cadê ? não vem hoje? e agora ? Eram as perguntas solidárias faladas e caladas de cada um.
Tamanha era a obediência à ordem de não avançar no caminho sem estarem todos juntos que dois meninos, dos maiores, correram na casa dele, mas a mãe de Osório com a cara assustada mais cuspiu que informou:
- Osório saiu tem tempo, Oh Senhor Amado, proteja.
Nisso, o pai do foguinho veio correndo do fundo do quintal, trazia uma banda de leitoa no braço e a camisa cheia de sangue.
- Que foi, Inhana? Que é de Osório? –
Dona Inhana escolheu as palavras com medo do coração de seo João rebelar:
- Parece, João, os meninos vieram perguntar, parece que nosso filho não estava na ponte esperando para atravessar.
Nessa hora, a turma toda já tinha chegado na casa do sumido e muitos vizinhos também. Notícia assim vive por si mesma e corre igual teiú no mato, pensa que não, já passou em três, quatro ou mais bandas, arrebanhando gente e desgraceira.
- Não fala isso, Inhana – suspirou seo João.
Não sei que cor tem a morte e nem se há alguma cor nessa uma, mas se tiver, estava pintada no rosto do pai de Osório. E escorria dos olhos, como se não bastasse estampar só na pele, a danada se esparramava para tudo quanto é lado. Muitos se benzeram. Outros puxaram os filhos pelo braço e correram de volta para suas casas.
O negócio era grave. Nós estávamos mais assustados que todos juntos. A gente não sabia de nada. Então, ouviu-se uma gritaria vindo da estrada que chegava na ponte. Não dava para entender bem, todo mundo se calou e os arrepios correram soltos na espinha, os olhos pregados na curva do caminho esperando o que vinha. O vento soprava no capim e as folhas faziam o movimento de quem chama alguém.
Quando o alguém dobrou a rua em nossa direção, era Osório.
Se fosse um bicho, vinha à galope, mas a verdade é que estava quase voando, chicoteado no lombo, esticado mesmo, parecia o tempo na cara de um velho.
- Alguém me ajuda – girtou ele anda distante.
Nunca tinha visto esse menino com esse desvario todo, ele já nem era menino-menino mesmo, estava mais para rapazinho, com penugem no beiço e em todo lugar, imagina-se que vermelho.
- Osório do céu, o que aconteceu? Eram as invectivas da mãe e pai do menino logo depois de acomodá-lo nos braços.
Levou ainda uns bons dez minutos, mas ele contou. Primeiro pediu segredo, depois pediu de novo.
- Cheguei lá na cabeça da ponte e não tinha ninguém, esperei um pouco, fiquei preocupado porque tinha prova, olhei no relógio e preocupei mesmo, então corri e atravessei.
Um lamento quase automático se ouviu dos adultos ali presentes.
- Quando cheguei do outro lado – Osório falava numa torrente - peguei a estradinha da escola e corri o mais que pude, corri e corri, mas a escola não chegava, nada chegava, sabe? Nem a escola, e menos ainda a cidade (a escola ficava um pouco depois da vila).
- Como assim não chegava, Osório ? Você pegou o caminho errado, claro – Foi o argumento dos meninos, mas ele não se convencia. E os adultos não insistiram mantendo os olhos abaixados.
- Peguei caminho errado nada, o mesmo caminho de sempre, só que não tinha cidade, não tinha escola, não tinha mato, não tinha sol, não tinha céu, não tinha som, não era dia, não era noite, era só eu e eu ali. Parei de andar e fiquei ouvindo, tentando ouvir . Não sei como conseguia enxergar, mas era como se não visse, assim como quando a gente está com febre e tem sonho que não é sonho.
- E não tinha mais ninguém perto? Ninguém passou perto ? – Dona Inhana perguntou com as mãos sobre o peito.
- Mãe, no começo tinha ninguém não. Depois, lá na frente, parece que brotou duas ou três sombras esquisitas, não sei direito, fiquei com mais medo ainda e voltei por onde havia chegado.
Na correria para trás, tive medo da ponte ter sumido também, e depois medo da minha casa, minha mãe, tudo ter sumido, mas a ponte estava lá, meio miudinha demais, mas estava, ainda deu tempo de ver as sombras vindo em meu alcance e gemendo algo que não entendia, eles andavam estranho tentando me alcançar com os braços, mas entrei na ponte de uma vez e só parei aqui. Graças a Deus.
À menção de sombras e escuridão, os mais velhos voltaram o corpo para a Bisa, que é a mais velha de todos os velhos da nossa região. Não fizeram pergunta, só era nítido um brilho de esperança, mas assim mesmo, ela respondeu com um tico de voz:
- Nâo são eles, é outra coisa e vocês sabem. Esqueçam isso e vigiem mais essa ponte maldita. Agradeçam a Deus pelo menino ter conseguido fugir e o assunto se acabou. Aliás, se o menino tiver filhos, a ponte vai buscá-los. Avisem.
Disse, benzeu-se e saiu meio curvada sob o amparo de uma das suas muitas netas ou bisnetas, nunca soube dizer.
Levaram Osorio para dentro da casa, os outros foram se afastando, nós ficamos por ali sem entender nada do que tinha acontecido.
Pelo jeito, não haveria aula para nós hoje, Osório tinha atravessado a ponte sozinho e não tinha encontrado nada do outro lado, tudo estava do lado de cá.
Com o passar dos dias, a rotina veio, e atravessamos a ponte muitas vezes depois e juntos chegávamos na escola sem problema, Osório ia comentando o trajeto com muito cuidado, como se pudesse ser ouvido por outros: “eu passei aqui, tá vendo?” , “ e aqui também”, “ mas não tinha nada”...
Aquilo ficou como uma brincadeira, ninguém levou muito a sério e passados alguns meses, quase estava esquecido se não fossem nossos pais viajando mais de perto nossas idas e vindas pela ponte.
Quando algum de nós perguntava o que tinha ocorrido com Osório, eles riam meio sem graça e mudavam de assunto, acho que não sabiam explicar aquilo, só comentavam que isso acontece com criança e jovenzinho que ainda está escolhendo seu rumo na vida, alguns encontram mais cedo, outros, mais tarde, depois não tem problema atravessar a ponte sozinho.
Osório ainda continua morando lá e nunca mais atravessou a ponte sozinho, sempre espera alguém ou vai pelo riacho mesmo, apesar de já adulto e casado.
Ele parece meio perdido o tempo todo, não pôde ter filhos ou não quis, é possível encontra-lo na cabeceira da ponte todos os dias, onde ele fica uma hora ou mais observando a linha de madeira e os pregos mal batidos. Há quem diga que ele nunca voltou do outro lado.
FIM
Tema: PONTES