Amélia morre no final - CLTS 28
Acordei com uma sensação... algo estranho, uma inquietação que não sei descrever. Algo parecia estar fora do lugar ou, talvez... nem deveria estar perto de mim, sabe? Mas o que é isso? É tudo tão... difuso. Não há um foco, é um sussurro, um código que tento entender, mas... simplesmente não consigo. Abstrato, sim, parece abstrato, eu concordo, mas é assim que minha cabeça tem funcionado ultimamente. Esses últimos meses têm sido um turbilhão, uma avalanche de ideias que não para. Tantas ideias, tantas ao mesmo tempo, me atropelando, me sufocando, me deixando louca. Tento agarrar uma, só uma... mas escapa. Sempre escapa. Como água entre os dedos. E cada pensamento... por menor que seja, me leva a um lugar que há tempos tento fugir. Um segundo estou bem... e, no segundo seguinte, estou caindo. Caindo para onde? Quem sou eu agora? Quem é essa Amélia? Antes era diferente. Antes fazia sentido. Eu fazia sentido... ou será que fazia? Parece algo tão surreal, tão distante. Eu só queria voltar para aquele estado... o que chamam de normal. Porque essa nova versão de mim... essa nova Amélia... está destruindo tudo. E se acharem que sou louca? E se eu for mesmo?
E talvez... talvez eu já seja louca o suficiente. Será que é isso? Será que minha mãe vê o que eu vejo? Eu apenas sei que ela quer me tirar daqui. Me isolar... sim, me isolar de todos. Para o meu bem, ela diz. Sempre é para o meu bem, não é? E eu... eu sou obrigada a acreditar. Assenti sem sorrir, parecendo uma boneca que acata ordens. Poderia estar em uma clínica psiquiátrica de luxo agora, com médicos atentos, exclusividade total. Muitos pensariam isso, aposto. Não os culpo... minha mãe é cardiologista, a família toda tem consultório... dinheiro nunca seria problema para nós. Mas não... não, o melhor para mim, ela diz, é estar aqui, na nossa casa de praia. Em uma ilha... longe de tudo. Na esquina do além... depois da puta que pariu. Isolada. Talvez... talvez seja a oportunidade de finalmente nos aproximarmos, mãe e filha, uma ligação que nunca tivemos. Mas pensar nisso agora só traz mais... angústia. Melhor deixar para lá. Em resumo, estamos nessa prisão desde a última segunda. Não sei mais quantos dias se passaram, tudo tem sido um borrão para mim. Uma prisão feita de paredes invisíveis... da mente, talvez? Que saco!
Sentada na cama, tentei reprimir aquela inquietação persistente que tomou conta de mim desde a manhã. Então olhei para cima. Começava a perceber a luz criando sombras no teto que se moviam, esticando e contraindo, como se estivessem vivas. O quarto estava envolto em uma névoa que brincava com a luz. A janela entreaberta amplificava o frio do vento que soprava em meus braços. Eu tremia... tremia sem parar, mas tentava ficar parada, me controlar… sempre me controlei… mas dessa vez foi em vão. Sinto que estou dando trabalho para minha mãe. Ela, com seus fios grisalhos presos em um coque alto, estava escovando meu cabelo. Consegui ouvir sua voz, uma voz que parecia um eco distante, estranhamente reconfortante e ao mesmo tempo irreal.
― Está tudo bem, minha filha? ― E eu... eu quero acreditar, quero acreditar que está. Mas é como se as palavras fossem uma ilusão. Como se a pergunta e a resposta estivessem completamente desconexas e o que eu tenho sentido não mudará tão fácil.
As puxadas de cabelo revelam algo que eu já deveria ter aceitado, uma incompetência na minha criação que se torna cada vez mais visível para mim, mas como boa filha que sempre fui, fico quieta. Talvez seja o meu papel ser a filha silenciosa, a que aceita o que lhe é dado sem questionar. Será que estou apenas perpetuando um ciclo? E se eu gritar, se eu expressar o que realmente sinto, será que isso mudaria alguma coisa ou só revelaria mais uma camada de minha própria falha? Optei pelo silêncio. Ela sorriu.
― Contratei uma cuidadora para morar aqui em casa. Alguém para conversar e não se sentir sozinha, tá bom? ― Ela apertou minha bochecha com uma força que eu nunca imaginei que as mães de verdade usariam. Um gesto que nunca fez parte da nossa relação, algo tão fora de lugar.
Ela sai do quarto e eu finalmente fico sozinha, mas por pouco tempo. A solidão é breve. Em minutos, ela volta, e traz um rapaz alto, de pele clara e cabelo castanho encaracolado. Quem é ele? Por que está aqui? A presença dele é um mistério, uma intrusão em meu espaço que não consigo compreender. Meu coração acelera, e uma sensação de desconforto toma conta de mim. Eu me sinto como uma peça deslocada em um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que estava começando a fazer sentido e agora é desfeito novamente. Ele entra no quarto, e eu o encaro, tentando discernir seu propósito. A sensação de estar na presença de alguém desconhecido é opressiva. É como se minha privacidade estivesse sendo invadida e eu me pergunto o que minha mãe está tentando fazer comigo. Seria esse mais um homem entre os tantos que ela me forçou a ter relacionamento? Eu olho para o rapaz, tentando entender se ele é um aliado ou mais um estranho.
― Filha, este é o Guto. Ele será responsável por cuidar de você durante esses meses. Houve um engano na empresa, e ele acabou vindo em vez da pessoa que esperávamos, mas não há mais tempo para fazer uma troca ― ela disse, com um olhar insensível, como se aquela situação fosse apenas um detalhe. ― Tenho certeza de que vão se dar bem. Agora dá licença que eu preciso ir. O consultório me aguarda. Ah… Deixei a chave do barco com ele, caso precise buscar algo na cidade.
Ela me deu um beijo na bochecha e foi embora. Senti um misto de frustração e desilusão. Pensei que passaríamos mais tempo juntas, que ela realmente se importaria e ficaria para enfrentar este caos comigo. Mas, mais uma vez, ela me abandona, me deixa sozinha no momento em que mais preciso de apoio. Pior ainda, me deixa com um estranho. Será que vai me dar outra Barbie para compensar nosso tempo perdido? Um brinquedo para substituir a presença, para preencher este vazio? É assim que ela lida com as coisas.
― Amélia, é esse seu nome, né? ― perguntou, com um tom que tentava ser amigável.
Balancei a cabeça, confirmando com uma resposta automática.
― Sua mãe falou muito bem de você ― suas palavras, embora bem-intencionadas, não faziam muito para aliviar meu desconforto. ― Disse que você é uma médica muito dedicada.
Esbocei um tímido sorriso sem mostrar os dentes. Aquele cretino sabia o que estava fazendo.
― É isso mesmo, tô falando sério. Falou que você tá tendo uns deslizes, mas vai passar logo.
Ele realmente sabia demais.
― Mas, me conte. Qual sua banda favorita?
― Green Day ― respondi com a voz quase sussurrando.
Ele sorriu.
― Ah, muito boa! “Boulevard of broken dreams” sempre foi minha música favorita, mas parece que agora... ― ele fez uma pausa, talvez para pensar no que dizer a seguir. ― Parece que a vida se tornou um pouco mais complexa do que as músicas de antigamente, não é?
Não queria conversar. Fiquei ali parada, sem reação, minhas palavras recusaram a aparecer. O silêncio entre nós se estendeu, mas eu não estava disposta a quebrá-lo. Não ia compartilhar minha vida com um sujeito que invadiu minha casa, um estranho que não entendia nada do que se passava aqui dentro. Ele pode ter sido trazido por minha mãe, mas isso não muda o fato de que ele é uma presença indesejada, uma interrupção na minha tentativa de encontrar alguma paz.
***
Fui acordada com um toque leve no ombro.
― Acorda, bela adormecida! Tava dormindo demais, menina. Vem, preparei um café do jeitinho que você gosta, ou pelo menos do jeito que me falaram pra fazer: omelete de gema mole com chá de camomila. Acertei? Tá com uma aparência boa.
O quarto estava banhado pela luz suave do amanhecer, que entrava pelas cortinas, mas tudo parecia excessivamente brilhante, quase ofuscante. O cheiro salgado do mar, que geralmente eu amava, agora era sufocante, misturado com o aroma sutil de Guto – um perfume amadeirado e algo de menta, talvez. Eu queria afastar o cheiro, o toque, o som de sua respiração calma, como se ele fosse uma parte natural desse espaço, desse mundo que minha mãe insistiu em criar para mim.
― Antes, se não estiver enganado, você precisa tomar seu remédio ― disse com um tom casual, quase ensaiado, enquanto se dirigia à cozinha.
Ele voltou rapidamente, em suas mãos estavam os comprimidos e um copo de água, como se soubesse exatamente o que fazer. Minha garganta se aperta em uma reação automática, quase instintiva. Eu sei que já tinha tomado o remédio, eu lembro. Ou será que não? Mas tenho certeza, esses não são os mesmos comprimidos. Eu olho para a mão dele, meu estômago revira, uma sensação de enjoo se espalha pelo meu corpo. A dose está errada, tenho certeza. Parece muito, parece perigoso. Ele quer me matar.
Minha respiração se torna curta e rápida, o ar no quarto estava ficando mais difícil de puxar. Guto se aproxima, com seu sorriso perfeitamente alinhado, um gesto treinado para me deixar tranquila. Não confio nele. Como posso confiar? Ele apareceu do nada, e agora insiste em me dopar. Minha mente grita para eu recusar, mas algo no seu olhar é inquietante, há um brilho que não combina com suas palavras suaves. Quando ele se aproxima com o copo, vejo sua mão tremer ligeiramente — ou estou imaginando? Seguro o cobertor com força, minhas unhas estavam cravando no tecido, fecho a boca, reviro o pescoço. Ele tenta suavizar sua voz, mas há uma rigidez nela, um comando velado. Por um momento, juro ver uma sombra escura atravessando o rosto dele. Eu recuo, mas ele não para. O copo se aproxima dos meus lábios.
Ele força o copo em minhas mãos, seus dedos continuavam pressionando os meus, e o vidro frio do copo encosta nos meus lábios. A água toca minha boca, a gota do veneno estava escorrendo pela minha garganta. Eu tento virar o rosto, mas ele está determinado. Segura o copo e vai dando água devagar, inclina suavemente, como se estivesse cuidando de mim, mas eu sei que não está. Sinto o líquido descer, frio e amargo, misturando-se com o gosto metálico do medo. Estou sendo intoxicada, eu sei. Ele está tentando me silenciar.
Minha mente corre, frenética. Será que ele está aqui para me machucar? Para me controlar? O sorriso dele, tão perfeito, tão falso, é um disfarce, uma máscara para suas verdadeiras intenções. Cada vez que ele sorri, parece que seus olhos ficam mais frios, como um predador observando sua presa, esperando o momento certo para atacar. Sinto uma pontada de pânico no peito, uma certeza absoluta de que estou sendo enganada. Tento afastar o copo, minha mão treme, mas ele mantém o controle firme, quase carinhoso, como se quisesse que eu acreditasse que tudo isso era para o meu bem. Mas eu sei. Sei que há algo errado. Sei que ele não é o que parece ser.
E… depois… depois… eu… eu…
***
A vontade de fazer xixi era tanta que eu não conseguia me segurar. Saí correndo para o banheiro. Senti o alívio começar a vir, mas logo uma sensação de horror tomou conta quando percebi que gotas tinham escapado, molhando minha calça. Que droga! Uma vergonha ardente tomou conta de mim. Eu precisava me trocar. Corri para o quarto e comecei a tirar a calça com pressa. Deixei a porta entreaberta, sem pensar. E então senti – não ouvi, não vi, mas senti – Guto se aproximando. Ele estava perto. Por que tão perto? Eu podia sentir o calor de seu corpo na entrada do quarto. A humilhação e o medo se misturavam, uma confusão de emoções que me fez sentir ainda mais exposta. E se ele entrar? A ideia fez minha mente criar cenários, cada um mais angustiante que o outro.Tentei focar nos meus movimentos, mas minhas mãos ainda tremiam.
Troquei de calça o mais rápido que pude, tentando ignorar a sensação de que estava sendo observada. Meu coração batia tão alto que era tudo o que eu conseguia ouvir, um tambor incessante que não me deixava esquecer o quanto eu estava à beira de um colapso. Por que ele não vai embora? O que quer de mim?
― Está tudo bem?
― Sim… Está… tudo bem, sim... ― menti, mas precisava que fosse embora.
Sentia que não era a primeira vez que fui observada.
***
― Não vai falar comigo?
…
― Olha para mim, pelo menos.
…
― Sabe, falam que é abstinência. Você está muito tempo sem álcool. Mas acredite, vai passar.
― Pervertido.
― O que foi?
― Pervertido.
― Não estou entendendo.
― Não deveria me ver pelada.
― Amélia, você não está bem. Tá com essa mania estranha de perseguição e só quero te ajudar. Ontem mesmo, se eu não tivesse te salvado, você teria se afogado no mar e deixado este mundo. Você não pensa nas consequências?
…
― Vamo. Me dê sua mão. Quero mostrar que isso vai melhorar ― ele esticou o braço sobre a mesa.
Olhei pra ele. Não entendia suas palavras. Outras vozes começaram a surgir lentamente. No início, eram frases soltas que não conseguia identificar. Mas logo, se tornaram mais claras e mais insistentes. “Você não deveria estar aqui”, dizia uma voz. “Eles estão vindo atrás de você”, sussurrava outra. “Joga água nele”, repetiam. Tentava ignorar, mas eram persistentes. Queria que parassem. Peguei o copo de vidro e joguei direto na cara daquele pervertido. No susto, deixei o copo se estraçalhar no chão.
― Não faz isso. Não precisa agir assim. Calma…vou pegar seu remédio.
…
― Tá…. me… lhor…
***
"I walk a lonely road. The only one that I have ever known. Don't know where it goes. But it's home to me, and I walk alone."
Acordei com uma música alta, batidas pesadas que pareciam vir de todos os lados, pulsando contra as paredes. Saí do quarto sem saber o que estava acontecendo. E vi uma multidão. Pessoas por toda parte. Uma festa que eu não fui convidada. Como eles entraram? Por que estão aqui? Meus olhos tentaram focar, mas os rostos eram desconhecidos, borrões de cores e formas, se misturando com as luzes. Risos altos, conversas misturadas, um zumbido constante que fazia minha cabeça girar. Senti o cheiro forte de álcool, misturado com perfume e suor. Tentei encontrar uma saída, um lugar onde pudesse respirar, mas parecia impossível.
De repente, senti uma mão no meu braço, um toque firme que me puxou para trás. Um rapaz sem rosto se inclinou para mim, e antes que eu pudesse reagir, tentou me beijar à força. Meu corpo congelou, uma onda de pânico subiu pela minha garganta, minha pele se arrepiou com o toque rude dele. Seus lábios eram duros, sua respiração estava quente contra o meu rosto, e um gosto amargo de álcool preenchia o ar entre nós. Tentei empurrá-lo, mas ele era mais forte. E foi quando vi Guto novamente. Ele estava me observando de longe. Sempre observando. Seus olhos apareciam em todo lugar. Voltei para o quarto, a música ainda estava martelando na minha cabeça. Fechei a porta e me joguei na cama. Queria que o silêncio me engolisse, que a escuridão me cobrisse, apagando todos os ruídos, todas as imagens. Mas mesmo no escuro, os olhos de Guto estavam lá.
Senti uma pressão em minha coxa, um toque áspero que raspava contra a minha pele. Eu queria me mover, mas meu corpo não respondia. A música distante e abafada parecia ser a única coisa que me mantinha ancorada no momento, cada batida era como um chamado para a realidade, mas minha mente estava em outro lugar, flutuando sobre campos abertos e flores balançando ao vento, onde o toque áspero se transformava no roçar suave de folhas de grama alta, passando suavemente sobre mim. Eu podia sentir a grama se curvando sob meu peso, e o cheiro de terra úmida subindo em ondas suaves. Havia um sol quente no céu, mas não o suficiente para me aquecer por completo. O toque se aprofundava, se tornava mais pesado, mais insistente, como espinhos cravando na carne de uma flor delicada.
O campo começava a se desvanecer, as flores murchavam, e a luz do sol diminuía, se transformando em uma penumbra cinza. Eu estava caindo, sendo puxada para baixo, a terra se abria sob meus pés. A grama macia se tornava áspera. Senti o peso de algo tirando meu ar, me forçando a ir mais fundo. Eu queria me transformar em uma flor pequena, quase invisível, que ninguém pudesse ver, que ninguém pudesse tocar. Mas não havia mais flores, só aquela pressão.
E mesmo quando eu tentava encontrar o campo novamente, tudo o que via era um mar de rostos indistintos, vultos que me observavam. O toque se tornava mais insistente, se movia como uma serpente rastejando pela minha pele, deixando um rastro pegajoso. Eu queria que aquilo fosse um sonho, queria acordar e sentir o sol verdadeiro no meu rosto, o vento fresco do campo em meus cabelos. Mas o toque era real, tão real que doía. Meus pensamentos começavam a se embaralhar, a se perder em um emaranhado de sentimentos confusos. As paredes pareciam se fechar ao meu redor, o teto descia como uma nuvem pesada.
No espelho do quarto, minha imagem parecia distorcida. Meu rosto estava ali, mas os olhos tinham uma expressão que eu não reconhecia. Pareciam vazios, como se eu estivesse olhando para uma pessoa diferente. A sensação de alienação era esmagadora, e eu comecei a questionar se a pessoa no espelho era realmente eu. Fechei os olhos mais uma vez, tentando me perder no escuro, tentando desaparecer.
***
― Ela tem uma taxa de 10% de sobrevivência. O pulmão está quase todo comprometido, está respirando com ajuda de aparelhos. Podemos fazer uma cirurgia, mas não vai ser garantia de sucesso ― disse o médico responsável pela internação de Amélia.
― Vou colocar sob observação. Ela já sofreu bastante. Muito tempo drogada. Não posso fazer mais nada ― a mãe não parecia satisfeita. ― E você, Guto? Relaxe, não foi sua culpa, ela mesma estava se destruindo aos poucos, uma hora isso ia acontecer.
Guto olhava atentamente os fios que mantinham Amélia viva.
― Você sabe o que fazer agora.
Ele pegou os remédios e, com dificuldade, a fez engolir. Ela, por fim, fechou os olhos.
"My shadow's the only one that walks beside me. My shallow heart's the only thing that's beating. Sometimes, I wish someone out there will find me. 'Til then, I walk alone"
TEMA: DROGAS