A CIDADE DE LENÇÓIS SOB DOMÍNIO DA NOVA BÍBLIA

 

Ana Maria vinha dirigindo seu carro. Ela mal sabia o que era pisar num acelerador. Talvez uma criança muito veloz e enérgica fosse capaz de ultrapassá-la, numa bicicleta. O rádio tocava músicas antigas… Era um Nelson Cavaquinho entoando a apaixonada e triste música “Luz Negra”. Era apenas uma quarta-feira como todas as quartas-feiras desde que… desde que… desde que ela nem lembrava mais. Numa cidade que pouca coisa acontece, às vezes funcionamos no piloto automático, os dias são iguais por alguns meses, até que haja alguma festa na cidade, um jogo de futebol importante ou um aniversário.

 

De repente a voz de Nelson Cavaquinho ficou distorcida. Gutural e repetindo a mesma frase da música: “A Luz negra de um destino cruel…”, “A Luz Negra de um destino cruel…”, “A Luz Negra de um destino cruel”, Ana Maria deu um leve soco no som. Não adiantou… Ela apertou então o botão de desligar. Sua atenção já não estava na pista, ela mal olhava frente, batia freneticamente no som, a voz de Nelson Cavaquinho transformou-se numa coisa que parecia a voz de uma mulher e de um homem repetindo juntos a mesma frase: “A Luz Negra de um destino cruel”, “A Luz Negra de um destino cruel”… Foi quando o violento tombo fez Ana Maria olhar pra frente. Logo houve outro tombo, com as rodas de trás. Ana Maria pisou violentamente no freio. As vozes repetiram pela última vez: “A Luz Negra de um destino cruel” e o som desligou. Como se saindo de um transe, Ana Maria de repente ouviu gritos. Gritos de todos os lados. Uma multidão indo em direção ao seu carro. Alguns com olhares desesperados, outros com olhares curiosos, outros com olhares de puro ódio, e apenas um deles… Uma mulher que ela nunca vira antes, estava sentada no banco da praça em sua frente. Sorrindo.


De seu quarto, com os olhos completamente vermelhos, a boca entreaberta. César estava deitado na cama e ele conseguia visualizar – como num sonho muito lúcido – tudo que estava acontecendo naquele exato momento do outro lado da cidade. O fim de duas vidas. A Bíblia inversa levando sua palavra inaudível aos ouvidos humanos, mas poderosa suficiente para modificar o que bem entendesse. Ana Maria atropelara uma criança. E ela não vinha dirigindo devagar, ela vinha voando com o pé enfiado no acelerador enquanto “A Luz Negra de um destino cruel” na verdade era a luz negra de seu próprio destino e daquela menina. A multidão passou a esmurrar e sacudir o carro. Um homem pegou a menina no colo empapada de sangue. Seu crânio estava amassado e a pele de sua boca tinha sido removida… A arcada dentária misturada com o cabelo encaracolado no rosto, pintado de vermelho. Ana Maria viu uma espécie de vapor vermelho saindo dos ventiladores do carro. As pessoas queriam matá-la. Ela mal conseguia se mover de pavor e de perplexidade diante do ocorrido.

 

Alguns minutos depois a polícia chegou, as pessoas se dissiparam e ficaram na praça, olhando e gritando, xingando. O corpo da menina foi posto no chão da praça coberto por um manto preto. Os pais chegaram emanando gritos de horror e tristeza que vinham de dentro da alma. A mulher continuava sentada no banco sorrindo. Ana Maria teve a leve impressão de que somente ela era capaz de enxergar a mulher. Assim como somente ela era capaz de continuar ouvindo incessantemente a cantoria daquele refrão maldito.

 

Ana Maria foi levada como uma louca. Uma criminosa. A criança foi enterrada no dia seguinte e toda a cidade acompanhou o velório que saiu da igreja até o cemitério. O céu parecia avermelhado naquela tardinha, as pessoas olhavam e comentavam. Um pôr do sol de cor purpura. Diferente… Bonito… Mas, ao mesmo tempo, diante do ocorrido. Era impossível não remeter a cor de sangue… E a maus presságios.

 

César voltou a si. Percebeu que seus olhos ardiam por terem ficado por tempo demais sem fechar. Não tinha a menor noção de tempo. Não sabia que horas eram e quanto tempo estava naquele quarto desde que encontrou aquele livro. Percebeu também que não adiantava atirá-lo pra longe. Sempre que – involuntariamente – “dormia”… ela voltava aos seus braços. A casa inteira estava coberta por uma névoa vermelha.

 

– Ana Maria…? - César balbuciou.

– Sim… - uma voz respondeu.

– É ISSO que você quer de mim…? Da cidade?!

 

Houve uma pausa de alguns segundos…

 

– Sim…

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 24/08/2024
Reeditado em 24/08/2024
Código do texto: T8136150
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