“Bip”
A primeira vez que ouviu o bip, Zender não se deu conta do som ter vindo do interior da sua cabeça. Claro, havia a possibilidade remota do chip neural ter entrado em curto. O implante talvez apresentasse algum dispositivo destinado a identificar incorreções. Mas caberia aí uma pergunta: o que poderia ter levado a colapsar o diminuto circuito incrustado no seu cérebro para lhe causar tamanho transtorno?
Estava tentando se recuperar daquela confusão mental. Lapsos de memória atrapalhavam o raciocínio a todo momento. Passara a mão na cabeça à procura de possíveis traumas e, no entanto, não encontrara nenhuma lesão, embora sentisse uma dor ampla por todo o couro cabeludo.
Olhou ao redor e percebeu estar sentado à mesa do “Casablanca”. O bar da boate estava com pouca gente àquela hora da madrugada. A fumaça densa dos cigarros, multicolorida pelas luzes que varriam aleatoriamente o salão, pairava rente ao teto. Apenas uma garota, de seios à mostra e biquíni minúsculo, rebolava no tablado de pole dance seduzindo os últimos bêbados solitários da noite.
A fauna noturna na boate movimentava-se no esforço dos poucos homens e mulheres dispostos a encontrar companhia de última hora. Zender, mesmo com a mente confusa, tinha uma vaga ideia do motivo de estar ali. Perdera a noção de quanto tempo achava-se sentado à mesa bebericando whisky enquanto aguardava por ela. Olhou para o relógio, frustrado, e decidiu ir embora.
Então, de repente, ele a viu surgir em meio à penumbra de um dos cantos mais distantes do salão. Ela se movia com aquele andar sedutor, tão característico das profissionais do sexo. Ostentava o corpo elegante em um curto vestido preto, colado harmoniosamente à pele. Suas pernas bem torneadas eram realçadas por botas de cano alto, acrescentando mais sensualidade à sua figura. E, para completar a impressão, ela vinha diretamente ao seu encontro. Era Lulu White, a garota de programa mais cobiçada do lugar.
— E aí, bonitão, você não quer me pagar uma bebida? – ela perguntou, sentando-se à mesa, sem pedir licença.
Zender a encarou, fascinado. Aqueles grandes olhos azuis artificialmente arredondados eram o último lançamento da linha de implantes oculares Anime 2.0, e estavam fixos nele. Notou as sutis oscilações no brilho das pupilas dela, que aplicavam filtros para melhor enquadrá-lo em meio às constantes mudanças de luz e sombra do ambiente. Lulu levou a piteira eletrônica à boca e deu uma profunda tragada. Esperou em silêncio o escrutínio atento dele avaliando, provavelmente, se a achava bonita.
— Gostou, detetive? – disse fazendo beicinho sedutor.
Zender ignorou a provocação sensual. Não conseguia desviar a atenção daquele par impressionante de olhos azuis. A vantagem dos implantes era o fato do usuário não perder nada do objeto sob sua mira, inclusive a garota poderia saber, se quisesse, a temperatura corporal dele. A visão infravermelha era apenas um dos múltiplos recursos dos notáveis glóbulos oculares Anime 2.0.
“Bip”
Ele fechou os olhos. Sacudiu a cabeça tentando diminuir o desconforto da confusão mental.
— O que foi, detetive? Você não está se sentindo bem?
— Você ouviu o som de um bip?
A garota apenas inclinou a cabeça, intrigada.
— Não. Não ouvi nada. Pode ser algum efeito da música ambiente.
Em seguida ao comentário dela, lembranças retidas irromperam do fundo de sua mente confusa. A princípio ficou surpreso. Tenso. Considerou o fenômeno ser efeito colateral da reposição anamnese automática do chip neural avariado. Nervoso, pegou o copo de whisky na mesa. Sorveu dois goles rápidos. Algo muito estranho estava acontecendo com ele.
Reposição anamnese ou não, as memórias mais recentes estavam vindo a conta-gotas. Apresentavam-se numa escala ascendente, coisa de um mês atrás até aquele momento. Começou a gostar da situação. Depositou o copo à sua frente e estalou a língua, satisfeito. Um sorriso bobo e confiante brotou-lhe nos lábios.
— Qual é a graça, bonitão? – disse ela, inclinando-se por cima dos cotovelos escorados na mesa, de modo a exibir o generoso decote do corpete.
— Você tinha baixa visão quando resolveu colocar estes implantes? – ele intimou, sem preâmbulos, direto, ignorando o modo erótico dela chupar a ponta da piteira eletrônica.
O questionamento não foi bem recebido.
— O quê? Qual é, cara? O que isso tem a ver com o nosso lance aqui? – respondeu irritada. Jogou o corpo para trás no encosto da cadeira, abriu as palmas das mãos para os lados, ainda segurando a piteira. – Tu tá maluco? Tu tá a fim de transar ou não? Tenho mais o que fazer.
Zender levou a mão ao queixo. Maneou a cabeça em desaprovação pelo atrevimento. Fez cara feia. Respirou fundo como se tentasse acalmar a fúria crescente, ainda assim não se conteve.
— Eu quero saber se você tinha baixa visão quando resolveu colocar a porra desses implantes? – berrou com raiva, de súbito, dando um murro na mesa. O copo pulou miúdo e derramou a bebida na toalha. – Responda!
Assustada, Lulu se pôs de pé imediatamente, entretanto a explosão de raiva do esquisitão não chamou a atenção dos outros clientes. Os dois seguranças perto da entrada não perceberem a encrenca. O barman, se ouviu alguma coisa, fez cara de paisagem.
— Senta aí, cacete – ele apontou a cadeira com rispidez.
Lulu sentou-se no mesmo instante colocando as mãos nos joelhos numa postura quase servil. Seus olhos postiços começaram a piscar emitindo pequenos "cliques" numa velocidade impressionante, porém não se desviaram dele. A sensualidade, que antes dominava sua expressão, agora havia sido substituída por surpresa e medo.
Ah, aí está, finalmente consegui o respeito que mereço, pensou Zender.
— É bom ver o mundo em resolução 4k, não é? – disse em tom sarcástico.
— Eu…
— Então, como é que é? Você tinha baixa visão ou não? Era cega, por acaso?
— Olha só, eu ...
— Ok, não precisa responder. Eu já sei. Você não precisava dos implantes pra enxergar melhor, não é mesmo? Lulu, você não passa de uma otaku ignorante, estúpida, assim como são os milhares de adolescentes desmiolados que vomitam esta cultura japonesa em nosso país há décadas. Você quer ficar parecidinha com a Sailor Moon, é? Grande coisa isso!
A garota se empertigou na hora. Fez pose de ofendida. Zender sorriu satisfeito. Ela até tentou se levantar para ir embora, contudo o olhar determinado dele a manteve no lugar, ou pelo menos assim acreditava. Antes de lhe jogar outro insulto na cara, Lulu tomou coragem e lhe devolveu o troco:
— Olha só quem fala. E você não passa de um xenófobo bem escroto, isso sim! Não tem moral pra falar de implantes, não, porra. Você tem um chip neural bem aí dentro desta tua cabeça confusa.
“Bip”
Algo ali estava errado. Como ela poderia saber do seu implante neural? Ora, aquilo era bem diferente. O chip sempre lhe oferecera suporte à sua dislexia. O dispositivo era ferramenta de trabalho. Portanto, aquela puta não tinha o direito de comparar um dispositivo neural auxiliar com melhorias estéticas de gosto duvidoso. Isso não era certo, não.
— Afinal, diz aí, qual é a tua? O que você quer de mim? – ela continuou, empinando o nariz em postura desafiadora.
Zender colocou os cotovelos em cima da mesa. Uniu as mãos levando-as embaixo do queixo. Em seguida, respirou fundo e se inclinou à frente. Estava com raiva. Muita raiva. Não gostou da petulância daquela vadia em querer lhe passar um pito assim, à vista de todo mundo. “Você não passa de um xenófobo escroto. Não tem moral pra falar de implantes”. Foi bem isso o que a ordinária lhe jogou na cara. Ah, mas ela ia ver só com quem estava lidando.
— O que eu quero de você é simples, minha querida. Eu quero é arrancar estes teus dois olhos azuis imprestáveis do meio da tua cara. Eu os coleciono, sabia?
— Não fale bobagem, você é da polícia.
— Pois é, veja só você como são as coisas… eles não entendem a minha cruzada contra as megacorporações que estão estragando a geração de hoje. Eu, sinceramente, não sei aonde vocês querem chegar com toda essa merda. Prostitutas, adolescentes, até marmanjos casados querem ficar parecidos com seus heróis de animações japonesas. Isso é um absurdo.
— Você é doido, cara!
— Aí é que você se engana, minha querida. A Megavox Hightech Implants, do grupo Google, já não vale muita coisa na bolsa de valores. E estes olhos da Sailor Moon, aí grudados na tua cara, não são mais prioridades no mercado brasileiro, sabia? Meu trabalho está desencorajando a aquisição dessas porcarias estéticas inúteis – ironizou apontado para os olhos dela.
Zender ouviu, desta vez, três bipes espaçados numa sequência rápida ecoando das profundezas de sua consciência e, com eles, mais uma porção de lembranças ocultas. A mente abriu-se para um novo patamar, quase como se uma epifania divina o envolvesse. O quadro geral começava a lhe fazer sentido.
Antes mesmo de saborear a própria façanha de realizar algo notável, sentiu uma presença ameaçadora no local. No entanto, diante das novas informações processadas, tal sensação pouco se lhe importava. Apenas sorriu, pois aquilo poderia ser até mesmo divertido. Achava-se um Deus.
Ele percebeu que Lulu voltou sua atenção para algum ponto às suas costas e se levantou depressa. Ela não parecia assustada; pelo contrário, exibia confiança inesperada.
— Onde estão os corpos das garotas? – questionou uma voz rouca bem conhecida.
Zender nem precisou se virar. Sabia a quem aquela voz pertencia. Só poderia ser do investigador Noah Morgado, do departamento de homicídios de São Paulo. Levantou-se devagar, virou-se, e se deparou com uma pistola apontada diretamente em sua direção.
Ah, realmente ia ser divertido.
Os clientes do bar, ao perceberem a cena, afastaram-se devagar com expressões preocupadas. Os dois seguranças apenas olharam indecisos sobre o que fazer. O barman, por sua vez, largou a garrafa de conhaque no balcão e desapareceu por uma porta lateral.
— Tu és mesmo um filho da puta! Quem poderia imaginar que um dos policiais mais simpáticos da corporação seria, ao mesmo tempo, o mais hediondo serial killer do Brasil – disse Noah com raiva, entredentes, mexendo nervoso o cabo da arma.
— Olha, não que isso tenha muita importância pra mim, Noah, mas diz aí como você descobriu depois de todo esse tempo? – perguntou, fazendo cara de pouco-caso, porque queria continuar aquele joguinho na intenção de ver até aonde ia a sua criatividade.
— Eu te perguntei onde estão os corpos das garotas? – berrou o policial agitando a arma, impaciente.
— As fotos na Internet enviadas às famílias não foram suficientes? Por que você quer saber onde estão os corpos? – Zender respondeu de modo cruel, quase em tom de deboche. – Então, diga-me lá, como você descobriu?
— Jamais entrei em contato com você na tua casa por videoconferência, mas ontem precisava te falar da pressão da Magavox em cima do nosso departamento.
— E daí?
— A câmera do teu monitor revelou a boina verde atrás de você, na prateleira da tua biblioteca.
— Existem milhares dessas boinas verdes pra vender no país.
— Sim, mas aquela tinha o nome “Emília” bordado na frente. Essa noite, quando você saiu de casa, eu revirei tudo até encontrar o porão onde descobri os implantes extraídos dentro de um vidro de conserva.
— Hum… realmente foi um vacilo meu. A boina! Que merda. Não resisti em ter sempre à vista uma lembrança da minha primeira princesinha estúpida.
Noah tomou aquilo como provocação e avançou três passos na direção do assassino. Encostou a arma na sua testa. Retirou as algemas de trás do cinto.
— Você está preso, filho da puta.
Zender só ofereceu ao adversário um sorriso debochado. O policial tolo nem sabia onde se encontrava, o pobre coitado. Estava na hora de dar um choque de realidade naquela figura patética. Tinha de admitir, modéstia à parte, a mente dele era extraordinária, porque conseguia criar o comportamento real daquele merdinha persistente, gerar aquele ambiente noturno em detalhes, elaborar as conversas de modo convincente.
— Olha só, Luluzinha, o otário aqui acha que pode me prender ou me matar dentro do meu sonho lúcido. Veja quanta idiotice.
— O quê? Sonho? Do que você está falando? Eu não…
Zender, numa velocidade incomum, aplicou um golpe de caratê no peito do detetive, jogando-o a vinte metros de distância por cima das mesas e cadeiras. Surpreso com o poderoso ataque, em meio ao caos de gente correndo para todos os lados, Noah tentou rapidamente se levantar. Apesar dos esforços, não fez mais do que se afundar no piso do salão, como se estivesse em luta desesperada contra areia movediça. Noah simplesmente foi absorvido pelo assoalho envernizado do Casablanca.
— Aqui… quem manda sou eu – disse Zender com orgulho. Contornou a mesa e parou ao lado da garota.
“Bip”
— Vamos embora, querida, está na hora!
Lulu nem sequer ofereceu resistência. Ele a arrastou pelo braço na direção dos fundos da boate e, como num passe de mágica, saiu sozinho pela porta de um casebre velho, em local ermo, distante a quilômetros da casa noturna. Era bem onde queria estar.
Observou atento o terreno tomado pelo capim alto, iluminado pela luz frágil oriunda de uma antiga lâmpada incandescente. Sabia que para além do círculo de luz, por trás da cortina escura da noite, havia plantações de milho a se perderem de vista nas distâncias do horizonte. Ele reconheceu logo o lugar: era o sítio da avó.
A velha, ao morrer, deixara-lhe a chácara como herança. Vinha ali duas vezes por mês na intenção de manter o lugar minimamente habitável, marcar presença, afugentar qualquer aventureiro que quisesse tomar posse da sua propriedade.
A trinta metros distantes de onde estava, Zender entreviu o contorno do velho poço artesiano. Havia tempo o poço secara por causa da estiagem e falta de manutenção. Elas estavam lá embaixo, bem no fundo, amontoadas feito bonecas esquecidas. Algumas eram velhas demais em relação ao tempo, já decompostas, fétidas, e das mais novas ele ainda podia contemplar, maravilhado, as faces esburacadas das quais arrancara os olhos postiços.
— Então é aqui que você escondeu os corpos! – Zender ouviu a voz embargada de emoção atrás dele.
— Sim, a Emília, a tua irmãzinha querida, também está lá – ele provocou, de mãos cruzadas às costas, apontando o queixo para o poço. – Você não tem chance contra mim aqui.
— Será mesmo?
Zender virou-se e viu Noah se afastar do umbral da porta. Desta vez, ele não puxou arma nem algemas, apenas o encarou com raiva contida e disse:
— Tu sabes que aqui o tempo é relativo, não é? Digo isso porque também possuo um chip neural.
— E daí? – deu de ombros. Não queria demonstrar preocupação. O merdinha também usava o mesmo dispositivo intracraniano que ele. Na verdade, pensando bem, a maioria dos policiais da corporação usava.
— Esse bip intermitente aí dentro da tua cabecinha doente não te parece estranho, não? – perguntou Noah enquanto cruzava os braços no peito. Zender detestou a confiança desagradável dele.
— O que você quer dizer com isso?
— Aaaahhh, tu não sabes de nada! Pois vou te passar a letra. Os médicos, infelizmente, dizem que tu tens uma boa chance de sobreviver, apesar do tiro que tomou no peito lá no Casablanca. É isso aí. Mesmo considerando o fato da grave concussão quando tu caíste com a cabeça na quina da mesa. Ahã, pois foi uma queda bem feia. Muito sangue, um horror!
— Isso é mentira, eu…
— Não! É a verdade. Tu estás em coma induzido há duas semanas, seu puto. De lá pra cá tens repetido a cena da boate muitas vezes. Pode ser o chip tentando recompor partes afetadas pela hemorragia nesta tua cabeça de merda, vai saber. Mas é a primeira vez que vem aqui. Finalmente!
— Isso é mentira – Zender voltou a dizer, dando dois passos para trás.
— Agora mesmo, fique sabendo, estou sentado num sofá bem ao lado da tua cama, no Centro de Terapia Intensiva – disse Noah abrindo um pequeno sorriso de satisfação. – O sono REM, como tu bem sabes, é fácil de induzir pelo chip neural. Estou conectado a tua mente pelo suporte de vida, via Wi-Fi Direct. Agora, presta atenção nos bips. Tu estás escutando? Estes são os teus sinais vitais, filho da puta.
“Bip… bip… bip”
Zender se contraiu de medo. Ele estava seriamente em perigo.
— O respirador artificial é o que está te mantendo vivo – continuou Noah, satisfeito em ver a cara de assustado dele. – As enfermeiras neste momento estão bem ocupadas, sabia? O policial responsável pela tua guarda, entediado, vive percorrendo os corredores do hospital pra cima e pra baixo.
— Tenho direito a um julgamento justo! – Zender disse disfarçando o medo.
— Você sempre soube que a Emília era a minha irmã, não é? Mesmo assim entrou pra polícia, infiltrou-se no meu departamento e, claro, estava sempre a um passo à frente das investigações. Queriam me afastar da tua cola por causa dela. Prometi não levar o trabalho para o lado pessoal, mas…
— Mas o quê?
— Você não merece viver!
“Bip… bip… bip”
Zender viu, estarrecido, o corpo de Noah desaparecer gradualmente.
— Não, você não pode fazer isso – urrou virando-se para todos os lados em pânico. Depois, começou instintivamente a andar depressa em direção ao poço. – Eu quero viver! Tenho transtorno mental. Quero um advogado. Preciso de tratamento médico. ELAS SÃO MINHAS! Minhas, seu desgraçado!
Antes de chegar perto do poço, o mundo de Zender apagou-se de súbito e, em meio à escuridão do vácuo eterno, ele ainda pôde ouvir por alguns segundos os últimos sons da vida real se escoando lá fora.
bip… bip… bip…
biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…
Tema CLTS 28: Cyberpunk