A BÍBLIA INVERSA CAP. I - "O CHEIRO DE CASA NOVA"
– Então é isso. – Disse a velha senhora… – Sua casa na verdade é até AQUI. Esse porão é impossível de ser mexido. Deve ter a idade da cidade, deve ser mais velho que eu (risos)!
– Ah, não, não… Essa porta vai ficar fechada. Aliás, eu devo até pôr a geladeira na frente dela. Pra esquecer que ela existe… Só a casa com dois quartos e esta sala maravilhosa, pelo preço que a senhora me fez, já me deixou feliz. Por mim eu já me mudava HOJE mesmo.
A mulher o olhou sorrindo. De repente seu sorriso não parecia o sorriso de uma mulher muito idosa. Parecia o sorriso de uma menina de oito anos quando esconde alguma uma bomba de São João dentro dum boeiro. Era um sorriso com malícia. César a encarou sentindo a estranheza. De repente sentiu um frio repentino.
– Nossa, o dia aqui muda mesmo, hein? – Eu estava sentindo calor até alguns instantes.
– Em Lençóis… A depender de suas escolhas. Você vive o céu ou o inferno. – Ela disse, agora com um olhar pensativo… Como quem consegue ver as nuvens no céu mesmo com o telhado da casa. – Ah! SIM! Não precisa esperar a caução para se mudar. Pode se mudar quando quiser, até mesmo hoje… você é quem sabe.
Era tudo que César queria ouvir… a casa era mobiliada. Ele só precisava comprar comida, lavar algumas roupas e nada mais. Ligar a TV e o notebook. E pronto. Tudo que queria era curtir sua (merecida, em sua concepção), solidão.
César tinha saído de um relacionamento que terminara mal pra ele. De repente ela passou a gostar de esportes e de acordar muito cedo e sair aos domingos. Dizia que era ajudava com sua depressão. Ele, que não era ciumento e dormia muito, sempre até tarde… Certa vez recebeu uma ligação de sua mãe precisando de sua ajuda com uns documentos. Era domingo. Eram seis da manhã. César fez um café e distraidamente foi até a janela da frente. A encontrou descendo de um carro, vestindo um maio e beijando um homem na boca. Ela o viu, e ele também.
Enquanto ela subia as escadas correndo (César podia ouvi-la quase tropeçando nos degraus do prédio de três andares), ele já tinha arrumado boa parte de suas coisas, que não eram muitas. Sempre tinham brigas sobre ele nunca querer exatamente “sair” da casa mãe. Ele nunca pegava todas as suas coisas. Ficava trocando. No fundo tinha algo em seu cérebro, ou espírito, ou inconsciente… Que dizia à ele: “não deixe suas coisas aqui. Você acha mesmo que vai aguentar viver com ela pra sempre?!”. Independente da traição, eles brigavam o tempo inteiro e César já estava exausto. Isso facilitou pra ele… e pra ela.
Ela abriu a porta ofegante, cheia de explicações em voz alta. E até mesmo uma leve tentativa de culpá-lo. Tanto por seus hábitos notívagos, quanto pela falta de sexo que já durava alguns meses. César a interrompeu com um severo olhar, bem dentro dos olhos, enquanto fechava o ziper da mochila. Era um olhar que dizia “Não. Não tente isso. Por favor, não.”. E ela se calou e simplesmente ficou seguindo-o pela casa, chorando. César era escritor e um grande poeta. Entendia muito a alma humana. Estava numa má fase, depressivo, desempregado. Afastado dos amigos. De repente… Assim, bem de repente. Veio-lhe à cabeça que ela era o motivo de toda aquela sucessão de desgraças. “Quando foi que eu pensei em outras pessoas?”. Pensou.
Já com tudo arrumado, ela lhe pediu pra sentar por uns instantes. Pessoas tóxicas querem ter razão sempre. Então ela simplesmente queria dar-lhe as últimas palavras.
– Bem, como você viu, eu estou amando outra pessoa. – César fez um inevitável “pff…” de risada quase incontida. – Ela continuou…
– E eu acho que a gente não deveria se ver mais…
Nesse momento ele se levantou, subitamente. Ela se assustou um pouco. Mas César não era um homem violento. O único sinal de ódio que ele emitia estava num tremor involuntário em seu lábio inferior e olho esquerdo.
– Você não está terminando comigo. Eu estou terminado com você, porque você está TENDO UM CASO. Você… Que foi traída praticamente todas as vezes, em todos os relacionamentos que teve, o que te levou a uma depressão que quase lhe levou ao suicídio. Na verdade só esperava o momento de estar “do outro lado” desta moeda, que não faz com que você não valha um centavo. Você agora não pode mais falar mal dos seus ex… Você pode sair com eles, beber com eles, jogar dominó com eles. – Isso César não dizia parado em sua frente… Ele dizia enquanto andava, enquanto pegava tudo que era seu. E enquanto se dirigia até a porta.
– Nós nunca mais nos veremos… Porque nunca tivemos motivos para nos ver. A vida tem dessas coisas. Provavelmente você vai me render um livro novo. Ou fará minha vida mudar completamente. A isso, agradeço.
César realmente nunca mais a viu… Estava agora há seis anos morando numa cidade a pouco mais de quinhentos quilômetros da cidade e não a procurava. Não procurava saber dela, nem nas redes sociais. Ela não chegava a ser um capítulo mal escrito ou introdutório. Ela era um papel jogado fora. César deu umas voltas pela casa nova pela primeira vez. Seu coração batia forte de felicidade. “Venci!”, pensou.
Mas existem na Terra, forças muito mais maléficas e estranhas… Existem coisas que na verdade nem pertencem ao bem ou ao mal. Elas simplesmente ficam enterradas e não devem ser mexidas por lado nenhum. E essas forças eram piores que doenças mentais, vícios, mulheres confusas, e traições. Eram mais complicadas que desemprego, velhice, noites em claro. Eram coisas que vagavam entre dois mundos e eram prejudiciais aos dois. De repente César encarou a porta de madeira vermelha, velha, com um trinco que o separava do porão. Ele sentiu como se lá houvessem todos os vícios e gozos.
E que tudo aquilo, agora, era dele.
[CONTINUA NA PARTE II]