DROGAS NEM MORTO - CLTS 28
DROGAS NEM MORTO
“...me encheste, mas me deste trabalho com os teus pecados, e me cansaste com as tuas maldades.” (Isaias 43, 24)
Não sei quanto tempo passei na floresta escura aguardando. Caminhando entre as árvores, angustiada, minha alma se sentia tão solitária. Alguma coisa me indicava que ele viria até mim naquela noite sem luar. O vento soprava as folhas nos galhos e corujas e outros animais noturnos faziam um alarido angustiante.
O som da moto e a luz do farol despertaram minha atenção. “Seria ele mesmo?” O veículo parou na beira da estrada, o homem de jaqueta de couro retirou o capacete. “Ele não podia me ver”, fiquei escondida atrás de uma árvore com uma vista privilegiada. Entrou na mata cambaleando, devia ter bebido. Mais perto pude ver seu rosto, “eu poderia reconhece-lo em qualquer lugar.” Nunca aguentou beber, com uma latinha de cerveja ficava logo trocando as pernas. Estava bonito e atraente, como no dia em que nos conhecemos naquele carnaval de 1994. Não era mais um garoto, mas ainda tinha aquele brilho no olhar.
“O Velho Marinheiro – Samuel Taylor”
Como alguém que, solitário numa estrada,
Costuma andar com medo e pavor,
E, que depois de para trás olhar, avança,
Sem novamente a cabeça virar;
Porque sabe que um demônio assustador
Vem logo atrás, pisando em seu calcanhar.
***
Quando nos conhecemos, ele tinha acabado de entrar na marinha, "homens vestindo farda sempre me atraem". Achava-o bonito, o início do nosso namoro era como um jardim repleto de flores. Já fumávamos e bebíamos desde o começo da nossa adolescência. Anos antes, eu havia perdido a minha virgindade com outro cara, meu futuro marido assumiu ter sido meu primeiro homem para amenizar a fúria do meu pai. “O amor é assim, sempre nos leva a tomar decisões estranhas e absurdas”. Antes de engravidar da nossa primeira filha, eu já fumava maconha. O uso da "erva" sempre me deixava tranquila e depois com uma fome terrível.
Homens são animais visuais que pensam que as mulheres são um pedaço de carne para ser penetrado. Somos mais que um par de seios e um quadril largo. Eles não nos respeitam e duvidam da nossa capacidade intelectual. Se bem que existem algumas mulheres que não são muito espertas e aceitam qualquer coisa desses canalhas, praticamente se vendem e não sabem o valor que têm.
Percebi isso logo na adolescência, quando meu corpo escultural e minha beleza sempre chamavam a atenção dos rapazes. Usei isso para meu benefício, com a experiência ao longo do tempo fui colocando cada um daqueles seres desprezíveis aos meus pés.
Consegui ficar camuflada dentro da mata, Seu comportamento mostrava muita ansiedade, suas mãos tremiam, com muita dificuldade acendeu um cigarro e sentou-se em uma pedra. Falava sozinho coisas que eu não conseguia entender completamente, como: "eu me odeio! Como pude ser tão cruel". Ao presenciar aquela cena, eu chorei por dentro profundamente. Seus cabelos encaracolados agora estavam parcialmente brancos, seu rosto começava a enrugar, a sobrancelha grossa, os olhos negros e a pele parda, o rosto bem barbeado sem bigode, sem muitos pelos no corpo parecia um índio. Enquanto fumava, mantinha um olhar distante: "Será que estava pensando em nós?".
Quando engravidei da nossa filha, foi um momento em que fiquei muito sozinha, eram longos períodos de ausência com suas viagens pela marinha, tendo visitado a Argentina, Venezuela, Uruguai e outras cidades do nosso país que não me recordo. Sempre quis viajar com ele, meu sonho era poder conhecer outras culturas. Depois que nossa filha nasceu, a rotina virou de ponta cabeça. Descobri suas traições, resolvi me vingar e comecei a ficar com outros homens. Deixava minha filha com minha mãe e saia a noite nos fins de semana.
O que mais me incomodava no comportamento do meu marido era sua obsessão por livros, quando se deleitava com suas leituras praticamente esquecia que existiam mulheres no mundo.
O ciúme e a loucura me levaram a tomar atitudes drásticas, meu marido tinha que ser só meu. Procurei um pai de santo de um terreiro perto da nossa casa, que me ensinou umas técnicas para prender aquele salafrário. “Paguei a informação com o que sabia fazer de melhor.” Aprendi vários feitiços e simpatias com aquele homem místico. Não posso afirmar que as bruxarias foram bem-sucedidas.
Retirou uma garrafa de cachaça da jaqueta de couro, tremendo sem parar e tomando alguns goles no gargalo, limpando seus lábios e derramando lágrimas de seus olhos, algo inédito para mim aquela cena. Muito diferente do jovem e forte que me recebeu em seus braços com tanto vigor. Agora era uma sombra atormentada por seus devaneios e pecados.
Usando maconha por tanto tempo, a “erva” foi perdendo a graça. Comecei a cheirar cocaína, quando estava grávida do nosso segundo filho. Meu marido já estava no posto de sargento e o dinheiro não faltava. Ele e suas viagens intermináveis e eu com dois ou três amantes. Ficava tão eufórica e explosiva com aquele pó branco. No sexo, ficava agressiva, mordia e arranhava. Passado o efeito, ficava inibida e me retirava para o subsolo das minhas angustias, experimentando uma abstinência terrível e obscura. Fantásticas visões geradas pela cocaína, esvoaçavam, como sombras, à minha frente. Era terrível quando o efeito do entorpecente cessava, trazendo consigo a ausência. Comecei a me relacionar com um traficante, conseguindo um desconto e até presentes. Faltando dois meses para o parto, parei... Tive medo do bebê nascer deformado ou coisa pior. Graças a Deus nosso filho nasceu saudável e bem.
Depois de quinze anos de casamento, nossa união tornou-se insuportável, imaginar que ele tinha outra mulher me enlouquecia. Em uma madrugada sonhei que o pilantra estava me traindo novamente. Fui até a cozinha e peguei uma faca de serra. Dormia como uma pedra e até sorria. Encostei minha arma na garganta dele, dava para sentir o gosto de sangue. Perdi a coragem e não consegui matá-lo. Quando acordou eu olhava fixamente para o seu rosto, já havia guardado a faca. Ficamos uma semana sem nos falar. Ele nunca soube e nem questionou o porquê do meu comportamento naquele dia.
Meu marido não era agressivo comigo, era muito teimoso e sistemático, fazia de tudo para ser um pai carinhoso mesmo ficando tanto tempo ausente, minhas atitudes resultaram em uma mudança significativa em sua personalidade, a bebida e o cigarro também fizeram um estrago na vida dele.
Já era amante do traficante há cinco anos, então resolvemos nos livrar do sargento “Martins” (nome de guerra quem meu marido usava na marinha). Não suportava mais aquele casamento, com ele morto e o dinheiro da marinha só para mim teria toda a liberdade para fazer o que quisesse. Quando retornou de uma viagem ao Egito, tudo estava bem planejado, íamos dar fim na sua vida em uma armadilha, porém nem tudo é do jeito como desejamos. Meu amado traficante foi assassinado em um tiroteio. Me senti como uma viúva. Minha paixão pelo traficante era intensa. Lembro até das palavras que escrevi pensando nele em meu diário.
“Meu pensamento por meu traficante é uma loucura e agita o demônio dentro de mim: desejando vê-lo, às vezes, decidida a abandonar o mundo e suas desgraças para sempre, consumida por uma paixão ardente que só meu amado poderia saciar. Não podemos nos separar. Sou solitária a desgraçada. “
Depois dessa perda, me envolvi ainda mais com aquelas substâncias amaldiçoadas, agora era hora de experimentar a heroína.
Depois de um longo tempo sentado naquela pedra, o “amor da minha vida” depois de muito fumar e beber retirou algo da sua cintura e eu pude perceber claramente que era um punhal...
***
“Minha papoula da Índia
Minha flor da Tailandia
És o que tenho de suave
E me fazes tão mal...”
(A Montanha Mágica – Legião Urbana)
***
Fui extremamente agressiva com meus filhos, sendo muito rígida na educação deles. Meu comportamento ansioso crescia cada vez mais. Após uma semana sem dormir direito tive taquicardia, comecei a ter crises de pânico em seguida veio a depressão. Fui ao psiquiatra e comecei a tomar antidepressivos. Quando meu marido voltou, fiquei mais controlada. Ele nunca desconfiou de nada. Quando voltava de viagem encontrava em mim uma verdadeira atriz e totalmente submissa.
Ao riscar o isqueiro para acender outro cigarro seu transtorno era de meter medo, tremia a olhos vistos, levantando se dirigiu ainda mais para o interior da mata e fui atrás dele sem ser notada como uma sombra.
“Elevo meus olhos para os montes: de onde virá meu socorro?” (salmos 121, 1)
Tive uma overdose de heroína e vi a morte diante de mim. Parei com todos os excessos e decidi ir à igreja. Meu marido demonstrou certa relutância em ir, nunca foi um homem de muita fé, tudo parecia melhorar até que percebi que as intenções do nosso pastor para com minha filha não eram as melhores, então, decidi deixar a igreja. Meu marido não entendeu nada, “dos males o menor”, foi melhor assim, ele teria matado aquele canalha parasita sugador do dizimo alheio se soubesse da verdade.
Voltei a fumar e beber, a abstinência estava acabando comigo. Achei que estava controlada naqueles dias sem drogas pesadas. “Tudo pode piorar é só uma questão de tempo.” Descobri que estava grávida do nosso terceiro filho, depois de um parto difícil uma criança aparentemente dentro da normalidade nasceu, até que no seu segundo ano de idade em diante apareceram os sinais de autismo. Foram tempos difíceis, veio a pandemia e ficamos perdidos sem saber o que fazer, o nosso bebê ficou sem fazer terapia e ir à escola. Depois de quatro anos de espera finalmente começou seu tratamento no serviço público.
Acompanhando meu marido pela mata, sem ser notada, chegamos a um lugar mais sombrio, onde havia um poço abandonado perto de um casebre desabado. Devia ter sido um antigo sítio. Reconheci o local... Sentado nas pedras da beirada do poço, meu amor estava prostado. A loucura e o desespero tomaram conta dele. De maneira rápida e inesperada pegou o punhal e o cravou no peito, em direção ao coração. Gritei alto...
Um fim de semana depois da comemoração dos nossos 25 anos de união, estávamos em casa à noite na cama, nossos filhos estavam na casa dos pais dele. Ele me beijou como não fazia a muito tempo e me propôs uma fantasia inusitada de fazer amor numa floresta. Fiquei receosa num primeiro momento, mas a curiosidade e a excitação falaram mais alto. Fomos de moto e entramos na mata até o poço perto do casebre. Tudo ia bem, até que vi seu olhar mudar. Puxando uma pistola da cintura mudou completamente. Fiquei chocada sem compreender nada, então, ele disse o que eu não esperava:
– Eu sei de tudo! De todos os seus amantes e dos seus excessos. Pra mim chega, Patrícia! Matei seu amado traficante. É hora de terminar o serviço.
O tiro atingiu meu peito. Estava viva e com a respiração ofegante quando me beijou pela última vez, depois me pegou em seus braços como no dia do nosso casamento e jogou meu corpo no fundo do poço.
Fui correndo entre as árvores. Quando cheguei perto do seu corpo morto, meu espanto e horror aumentaram quando percebi que seu espectro ia se erguendo e finalmente ele pode me ver. Ficou petrificado e incrédulo quando me viu.
– Patrícia! Você está viva?
– Não! Estamos mortos. E nossos filhos, o que você fez com eles?
– Nada! Nossos filhos estão bem. Estão na casa dos meus pais.
– Que alivio. Telly, meu marido! Agora sei porque eu estava aqui te esperando. Era pra te conduzir até do Inferno. Venha comigo querido, pegue minha mão. O caminho é por ali...
É uma pena eu não ter prestado atenção as propagandas antidrogas dos anos noventa. Estou profundamente arrependida.
Caro amigo, que escreveu esta carta psicografada, solicito sinceramente que transmita essa mensagem aos meus filhos e a outros jovens.
Drogas nem morto!
TEMA: DROGAS