O FANTASMA DO CAMINHONEIRO - CLTS 28

 

    A camionete seguia aos sacolejos na estrada de chão e, no volante, Tilazo. Uma contração de tio Lázaro, pois todos o tratavam por tio, não só os sobrinhos, e, em plena década de oitenta, goiano que falasse proparoxítonas era doutor ou professor – abóbora é abóbra, árvore é árve e Lázaro é Lazo; logo, Tilazo. Ele guiava com o olhar e a cabeça perdidos em cálculos e planos.

 

    Ao seu lado, estavam os dois tratoristas que iam começar a lida, Rolinha e Netão, de tamanhos proporcionais ao que os nomes sugerem. Um baixinho ligeiro e um grandão molenga. Ainda sonolentos, nem perceberam a sintonia do rádio se perdendo, até que Rolinha tomou mais um gole do café da garrafa que trazia consigo e quebrou o silêncio:

 

    — Pode mudar isso aqui, Ti? — Rolinha apontou para o toca-fitas.

 

    — Pode — disse Tilazo, finalmente reparando o som característico de rádio mal sintonizada que soava como ruído branco, desde que deixaram a currutela. Rolinha empurrou a fita cassete no aparelho, e o som da viola ecoou:

 

Catimbau mais que depressa

no seu bragado amontou

 

    — Vixe, eu não gosto dessa música, nem! — Netão reage como quem cura-se do sono, enquanto Rolinha canta junto:

 

Chegou a espora no macho

e a laçada ele aprontou

 

    — Essa moda é boa demais!

 

A laçada foi certeira

que o povo se admirooou, ai

 

    — Ah, nem, sô! Tira isso! — Netão insiste, já bastante amolado.

 

Catimbau foi infeliz

o bragado se atrapaiô

 

    — Deixa aí!

 

O laço fez uma volta

no seu pescoço enrolou

 

    — Não, moço! Tira esse trem!

 

Com o pealo que o boi deu…

 

    Click.

 

    Ao ver o desconforto de Netão, Tilazo desliga o aparelho de som. Na verdade, ele mesmo já estava incomodado. A música lhe dava arrepios: uma moda de viola que conta a história de Catimbau, um peão apaixonado por uma menina rica, que morreu tragicamente ao tentar mostrar sua valentia.

 

    Se fosse durante o dia, poderia até ouvir e cantar; mas os primeiros chuviscos de setembro, abrilhantados pela lua cheia, deram àquela noite uma atmosfera tenebrosa. As águas da tarde encontraram o noturno chão quente, do qual ainda saía a fumacinha do vapor d’água – subindo e gerando mormaço no cerrado cinza-marrom, típico do fim do inverno. Era meia-noite, horário em que trocavam os turnos. Correndo contra o tempo para o plantio, o trator não parava de arar até que terminasse.

           

    Tilazo era corajoso, mas até ele hesitava ir para onde rumavam: o chão da divisa. Pedaço de terra mais distante da fazenda de seu pai, onde ficava a velha gameleira – árvore conhecida pelos antigos funcionários. Vez ou outra, voltava alguém de lá relatando estranhos acontecimentos, como o som do caminhão que ligava do nada ou aumentava de volume sozinho, e a sintonia do rádio que mudava até sintonizar uma estação tocando moda de viola. Logo uma gameleira… Árvore conhecida pelos antigos como um chamariz de espírito. Era justamente ali a parada.

 

    Ao chegar lá, Tilazo estacionou a camionete ao lado da árvore, solitária em meio ao extenso talhão de terra vermelha arada, direcionando os faróis para uma mata que ficava na divisa, trezentos metros aos fundos dali, deu sinal de luz e os tratores responderam. Ele desligou a camionete, mas manteve o farol aceso. Todos deixaram as portas abertas ao descer. Cada um acendeu um cigarro, enquanto esperavam Delo e Traíra chegarem em seus tratores. Rolinha deu um sorriso malicioso a Tilazo, como criança avisando que iria aprontar:

 

    — Ê Netão, cagão do tanto que cê é, vindo trabaiá aqui perto do cemitério, cê não tem medo, não?

 

    — Oxe! Onde é que tem cemitério?

 

    — Ali, uai! — Rolinha apontou na direção da luz de um dos tratores. —  Pertim da mata, depois daquela pontezinha abandonada.

 

    — Isso é verdade, Tilazo? — Netão estica o pescoço

 

    Era verdade. Antigamente não se levava todo morto para enterrar na vila, algumas fazendas tinham cemitérios próprios – era o caso da propriedade vizinha.

 

    — Pode isso Tilazo? Um homão desse, tem medo de cemitério.

 

    — Tenho mêmo, Deus me livre! Desde menino, quando minha mãe falou que viu o ispríto do meu pai.

 

    — Moço, sua mãe nem sabe quem é seu pai — Rolinha gargalha como moleque, Netão abaixa a cabeça e Tilazo se incomoda:

 

    — Quieta, Rolinha! Dá sossego!

 

    Pouco a pouco, o primeiro trator se aproxima. Era Delo. Parou, desligou o motor e desceu olhando para um lado e para o outro.

 

    — Que foi, Delo? Cê tá assombrado? — Tilazo questiona com um discreto sorriso.

 

    — Pior que tô! Vi uns trem esquisito!

 

    — Uai, quêqui cê viu?

 

    — Vi não, ouvi! Tilazo do céu… O povo que já trabaiô aqui nesse chão vivia contando história que escutava uns assuví quando passava perto daquela matinha… E hoje eu comprovei.

 

    — Assuví? — Netão e Tilazo perguntaram quase ao mesmo tempo, o primeiro erguendo as duas sobrancelhas; o segundo, apenas uma.

 

    — Moço, que trem esquisito! Parece que tem tipo um passarim cantando dentro da cabeça da gente, cê baixa a rotação do motor pra ouvir direito, aí o passarim para de cantar, cê aumenta, aí ouve de novo. Ouve não, sente. Iguali quando liga uma televisão sem som.

 

    — Creio em Deus Pai todo poderoso! Eu não vou arar aquele lado, mas é nem! — Netão titubeia assustado.

 

    — Isso é passarim, uai! — Rolinha desdenha.

 

    — Larga de ser besta, Rolinha! Onde já se viu escutar canto de passarim com o barúio dum trator desse?

 

    — Ah, Netão, tenha dó! Besta é ocê, um marmanjo desse tamanho acreditando nesses causo pra assustar menino.

 

    — Também não sou de acreditar nessas coisa, não — Delo intervém com semblante sério —, mas passarim eu garanto que não era. — Ele leva uma das mãos bem próximo à sua orelha. — Canto de passarim fica sempre repetindo uma coisa só. O que eu ouvi era assim, não. Parecia inté que tava imitando um ponteado de viola.

 

    — Que hora foi isso? — Tilazo pergunta enquanto tensiona os músculos para não transparecer o arrepio que lhe corre pelas costas.

 

    — Agorinha, depois que cê deu sinal de luz.

 

    — Antes da gente chegar, cê não ouviu nada?

 

    — Não.

 

    A conversa foi interrompida com o barulho do outro trator – a chegada de Traíra. Ele parou, desligou o motor e desceu rapidamente. Seus movimentos atabalhoados levaram o olhar de todos à verificação de sua face: a boca pálida entreaberta e os olhos mirando Delo.

 

    — Quêqui era aquele trem em cima do seu trator? — Traíra mantém o corpo estranhamente ereto como garantia de firmeza à voz.

 

    — Em cima onde?

 

    — Perto do escapamento.

 

    — Oxe! Vi nada, não.

 

    — Tinha um trem lá. – Traíra começa a desistir de manter o corpo erguido e sucumbe um dos ombros.

 

    — Trem? Que trem? — Delo bate o olhar no trator e retorna imediatamente para Traíra, verificando que a mudança de sua postura, conforme o andamento da conversa, se mostra ainda mais estranha do que a posição firme do início.

 

    — Sei não. Parecia um urubu, só que grande. Do tamanho dum homi.

 

    — Moço do céu, cê acha que se tivesse um urubu na minha frente, eu não ia ver? E outra coisa, se um urubu pousar perto do escapamento de um trator desse, que tá o dia inteiro funcionando, ele gruda as pata.

 

    — Eu sei, uai! Mas tinha um trem lá. Não tenho certeza se era um urubu, não.

 

    — Então era o quê, uai? — Netão quase grita.

 

    — Pra falar a verdade… — Traíra titubeou, diminuindo o volume e a velocidade da voz temendo a reprovação — Parecia um homi, mêmo.

 

    — Tá doido, Traíra? Cumé que ia ter um homi ali? — Rolinha sorri e balança a cabeça em negação.

 

    — Uai, eu também achei que não tinha como. Que diabo um homi ia tá fazendo em cima do trator? E outra coisa, quem? Cês tinha acabado de chegar na gameleira, tá só eu e o Delo aqui nesse fim de mundo. Por isso que eu falei que parecia um urubu. Eu sabia que ocês não ia acreditar, mas a verdade é que tinha um trem lá, isso tinha. E parecia um homi mêmo, todo de preto e com um capuz.

 

    — Então ou eu tô ficando cego, ou cê tá vendo coisa — Delo se esforçou para esconder a apreensão, não queria acreditar.

 

    — Ou então… — Tilazo suspira — a história que meu pai contava era verdade.

 

    — Que história, Tilazo? — pergunta Rolinha que, mesmo sendo o mais cético dali, já estava ressabiado.

 

    — A história do fantasma que sai lá do cemitério.

 

    — Oxe, que fantasma?

 

    — Meu pai contava que há muitos ano, numa noite de chuva, um caminhoneiro caiu nessa pontezinha aí. Morreu na hora, acharam só o corpo, a cabeça, o caminhão esmagou. O homi não tinha família, então enterraram nesse cemitério aí mêmo. Diz que esse cabra vivia cantando, assobiando, o som do caminhão vivia no úrtimo. Quando chega alguém na gameleira, ele vem cá.

 

    — V… vem cá… fazer o quê? —Traíra engole seco.

 

    — Ouvir música — Tilazo se virou para a caminhonete, os olhares dos outros o acompanharam.

 

    Um ventinho assoviou ao balançar as folhas da gameleira. Por alguns segundos, ninguém ousou sequer respirar – nenhum som deveria abafar qualquer ruído que sugerisse outra presença no local.  Enquanto ainda estavam com o ar preso nos pulmões, algo se esfregou no matinho ao pé da árvore. O barulho sutil se movimentou de lá para a caminhonete, até que cessou por completo.  Os cinco olharam fixamente para o veículo, que ligeiramente balançou, produzindo um rangido da suspensão.

 

    — Ele tá lá dentro! — de olhos arregalados, Tilazo balbuciou.

 

    Apesar do pavor que sentia, ele queria ver aquela lenda da qual ouvia falar desde criança. Caminhou lentamente em direção a camionete e notou algo se movimentando dentro da cabine, mas a pouca luz não o permitia distinguir. Ele avançava devagar, até que subitamente o farol se apagou. A lua cheia passou a ser a única fonte de luz ali, fornecendo apenas uma penumbra.

 

    — Oxe! Que diabeísso! — Rolinha se agitou.

 

    Tilazo, olhando para os outros petrificados, ordenou com o indicador em frente aos lábios:

 

    — Shhh! É o fantasma do caminhoneiro que tá aqui.

 

    Quando Tilazo se encaminhava à porta do passageiro…

 

    Click.

 

    A música volta a tocar na cabine:

 

Sua cabeeeça decepooou, ai!

 

    A viola repicou de novo. Dessa vez, no último volume. Os funcionários boquiabertos nem se moviam. Tilazo, mais à frente, deu um sobressalto, tensionou novamente os músculos e seguiu rumo à porta do passageiro, enquanto a batida de viola terminava para retornar ao dueto:

 

Trouxeram a cabeça dele

Rosinha nela pegou.

 

    Tilazo foi se abaixando…

 

Chorando desesperada

desse jeito ela falou

 

    Se aproximando…

 

Catimbau, prometi um beijo

receba agora eu te doooou, ai!

 

    Olhou a cabine rapidamente, e viu um vulto saindo pela porta do motorista e se escondendo atrás da gameleira.

 

Na boca do seu amado

tristemente ela beijou

 

    Vasculhou o porta-luvas.

 

Este é fim de uma história

Dando provas que se amou

 

    Encontrou uma lanterna, desligou o som, acendeu o farol e correu até a árvore iluminando-a, mas não viu nada.

 

    — Liga o som de novo aí! — gritou Tilazo para Rolinha, que chegou até a camionete e…

 

    Click.

 

Rosinha e catimbau

 

    Tilazo sentiu um vento frio soprando em seu cangote.

 

Aí que a mooorte separooou, aí!

 

    Ouviu um cantar ao pé do ouvido, duetando com Tião Carreiro.

 

    Petrificado por alguns segundos, Tilazo olhou ao redor e viu uma sombra se movimentar atrás do trator mais próximo.

 

    — Ele tá fugindo pro cemitério — Tilazo corre em direção à mata — Bora!

 

    Rolinha se empolga e segue o patrão, os outros três dão de ombros fazendo sinal da cruz.

 

    Os dois seguiram pelo chão vermelho, à luz da lua e da lanterna, clareando cinco metros à frente, além daí, apenas a penumbra. Era nesse limite que a sombra se mantinha. Quando aceleravam o passo, a coisa acelerava,  quando paravam, ela parava também, a luz nunca a alcançava.

 

    — Será que isso não é bicho, Tilazo?

 

    Esse então aponta a lanterna para o chão — Num tem rastro, uai!

 

    Foram tocando a sombra até chegarem na mata e se depararam com a entrada da pequena ponte de madeira que a atravessava. Notaram a sombra na beirada, como se olhasse o córrego,  dois metros abaixo.

 

    —Quêqui a gente faz? — Tilazo pergunta — Se nós andar, o trem foge.

 

    Rolinha pensa por alguns segundos, e então canta:

 

Tive lendo num romance

de um casal de namorado

 

    A sombra move a parte de cima em direção aos dois, e o som ecoa do outro lado da ponte:

 

De Rosinha e Catimbau

dois jovens apaixonados

 

    Tilazo ergue as sobrancelhas, Rolinha, após um longo suspiro, segue a cantoria:

 

Rosinha família rica — o eco ressoa a melodia da segunda voz — Catimbau era um coitaaado.

 

 

    Eles escutam um choro. A sombra vira-se para o outro lado, mas não se desloca. Tilazo se aproxima, o feixe de luz alcança a imagem: a silhueta de um homem vestindo uma capa de chuva com capuz, toda encharcada, mas nenhum pingo molha o chão.

 

    A voz chorosa continua:

 

Capataz de uma fazenda

mas trabalhador honrado.

 

    O homem começa a caminhar rumo ao fim da mata, Tilazo e Rolinha o seguem, mantendo-o sob o foco de luz.

 

Adomava burro brabo

No laço era respeitado

Um caboclo destemido…

 

    Quando chega ao fim da mata, o homem corre para o lado esquerdo, e some por detrás das árvores. Tilazo também avança nessa direção, até que encontra as sepulturas, pequenos morros de terra com cruzes artesanais nas extremidades.

 

    Ele as ilumina, mas não vê nenhuma movimentação. Rolinha passa à frente, caminha entre os túmulos, sob a luz da lanterna de Tilazo, olha de um lado e de outro, erguendo ombros e mãos, como quem diz: cadê? Só agora, Tilazo percebe que aquela sensação de TV ligada que Delo havia descrito estava presente desde a ponte, mas agora, não mais. E como se girasse lentamente o botão de volume de um aparelho, o pseudo-som foi gradualmente retornando.

 

    Tilazo vê, atrás de Rolinha, o homem vindo de frente, com o capuz encaixado sobre o pescoço sem cabeça.

 

Ai por tudo era admiraaado, aí

 

    A figura vem flutuando, até pular em uma das catacumbas, e como se houvesse um buraco ali, afunda e desaparece.

 

    Rolinha sentiu uma friagem nas costas e olhando assustado para Tilazo, perguntou:

 

    — Cê também achou que a voz lembra a do Netão?

Paulo Roberto Moraes
Enviado por Paulo Roberto Moraes em 14/08/2024
Reeditado em 22/08/2024
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