Sentado na porta da sua cabana, no alto de uma montanha, Marc observa a viração dos ares. O horizonte se pintou de um vermelho vivo que vai ganhando mais espaço a cada momento em que ele olha para o céu. Antes era apenas uma pequena mancha alaranjada que parecia uma espaçonave voando em direção ao planeta. Mas Marc logo viu que não se tratava de um OVNI, nem de um cometa ou qualquer outro corpo celeste que tivesse entrado na atmosfera da terra. Era Azrael, o anjo da morte, também chamado de Samael.

Sim. Marc era religioso e gostava de dar nomes pomposos ás coisas. O livro sagrado da sua religião o ensinou a fazer isso. Dava nome a todos os fenômenos da natureza, chamando-os de deuses bons ou maus. Azrael era o Anjo da Morte. O livro sagrado dizia que ele costumava visitar o planeta de vez em quando para executar penas punitivas a grupos de pessoas más. O livro listava várias civilizações que já haviam sido riscadas da História em consequência de seus pecados e vícios. E sempre que isso acontecia, era sempre o Azrael, o Anjo da Morte, que executava a sentença. 

Marc era religioso, mas não era ingênuo. Ele sabia que todas as histórias do livro sagrado eram metáforas urdidas por cronistas habilidosos no manejo da palavra. Eles criavam imagens fortes para descrever os fenômenos da natureza, de uma forma que a mente das pessoas, principalmente as mais simples, ficassem impressionadas e tomassem suas ideias como verdades inquestionáveis. Não se questiona aquilo que não se entende e o medo sempre foi a melhor ferramenta para se implantar uma crença na cabeça das pessoas. Assim, os cronistas dos livros sagrados tinham criado uma multidão de deuses maus para fazer o povo acreditar na existência dos deuses bons. E que para obter o beneplácito dos deuses bons era preciso também ser bom. Os deuses bons protegeriam as pessoas boas dos deuses maus. Era a estrutura dialética da História, que sempre foi muito bem manipulada pelos líderes religiosos, mancomunados com os políticos, para manter o povo num redil espiritual e sociológico. 

 

Era uma boa filosofia. Se não fosse esse medo as pessoas seriam bem piores do que são, pensava Marc. Mas nada disso fora suficiente para evitar a vinda de Azrael novamente. E desta vez seria definitivo. Ele estava vindo. O pontinho alaranjado que saíra do sol tinha se alargado como um borrão feito por uma lata de tinta derramada no chão. Tinha agora ocupado todo o horizonte visível. Logo, aquela intensa luz que ele irradiava chegaria á atmosfera do planeta, queimando todo o oxigênio. O calor aumentara tanto nos últimos dias, que se tornara insuportável. Nenhum ar condicionado aliviava. Aliás, os aparelhos de ar condicionado nem funcionavam mais, pois a energia elétrica já havia desaparecido em muitos locais da terra, em consequência da explosão das usinas e do rompimento das barragens. Milhões de pessoas já haviam morrido em consequência disso. A temperatura das águas dos mares havia subido vários graus. As marés altas já haviam coberto a maior parte das terras secas. Havia poucos lugares no planeta onde ainda se podia viver. Sua cabana na montanha era um desses lugares.
      Há muito já se sabia que o sistema de vida que a maioria das pessoas adotara estava matando o planeta. Era um sistema que exigia a queima de combustíveis fósseis para a produção de energia. Essa queima indiscriminada de combustíveis emitia gases tóxicos que foram se acumulando na atmosfera do planeta, contaminando a camada de gases que filtravam a luz solar. Pouco a pouco essa camada gasosa foi perdendo a qualidade filtrante e o clima do planeta foi mudando. O regime de chuvas perdeu a regularidade e os ecossistemas se desequilibraram. Chuvas demais em regiões tradicionalmente secas e secas prolongadas nas regiões onde se chovia regularmente. Regiões que em outros tempos eram produtivas se tornaram desérticas, outras se transformaram em pântanos, geleiras derreteram fazendo os mares subirem, engolindo cidades, ilhas, terras e populações inteiras. Tsunamis, furacões, ciclones, vendavais terríveis varreram países inteiros, prenunciando o começo de um fim anunciado. 

O ser humano era engraçado, pensava Marc. Só acreditava no que queria e lhe interessava. Um dos livros sagrados da sua religião falava exatamente desse fim anunciado. “ E o sétimo anjo derramou a sua taça pelo ar, e saiu uma grande voz do templo, de um trono no meio dele que dizia: Está feito. E seguiram-se relâmpagos, vozes e trovões, e houve um grande terremoto, tal como nunca houve desde que os homens foram criados (...) ”, dizia o livro.  E todo mundo conseguia acreditar que Deus havia mandado seu filho ao planeta para salvar os seres humanos de seus pecados, mas não conseguiam acreditar que seu planeta também podia morrer como eles. E agora o planeta estava á beira da morte. 

 

Essa fora a grande luta de Marc. Passara toda a sua vida batalhando pela implantação de um sistema de vida sustentável, onde os recursos naturais imprescindíveis, como a água, por exemplo, fossem utilizados de forma adequada. Ele, que era engenheiro ambiental, sabia que o planeta não sobreviveria se um programa desses não fosse adotado. Por isso desenvolvera dezenas de planos para gerenciar adequadamente os resíduos, reduzi-los, reutilizá-los, reciclá-los, reduzindo o perigo que todo aquele lixo tóxico representava. E se esforçara tanto para ensinar a população a não consumir produtos que gerassem impactos socioambientais irrecuperáveis... 

No entanto, para sua tristeza e decepção, nem a administração pública quis dar ouvidos ás suas propostas. Os políticos e os empresários não se importavam com os problemas ambientais. Só tinham olhos para a economia, para os índices do chamado Produto Interno Bruto, que media a eficiência com que uma sociedade conseguia produzir e consumir. 

Produzir e consumir. Cada vez mais. Sem pensar que para produzir é preciso matéria prima e energia. E que matéria prima e energia são coisas que fazem parte do acervo natural do planeta. Mas na natureza nada se cria nem se perde, mas apenas se transforma. E a pessoas transformavam óleo e madeira em gases ao queimá-los para produzir energia. Devastavam as florestas para plantar monoculturas. Poluíam os rios para se livrar dos detritos e dos resíduos que produziam, na sua sanha de ganhar cada vez mais dinheiro e consumir cada vez mais e viver com suntuosidade. 

E agora a natureza estava cobrando com fúria as agressões sofridas. Nos últimos anos, dezenas de catástrofes naturais haviam ceifado a vida de milhões de pessoas. Tsunamis, secas prolongadas, chuvas torrenciais, frio e calor desproporcionais, haviam transformando todo o ambiente do planeta.  A poluição, as doenças consequentes do acúmulo de resíduos nas grandes cidades, a destruição da camada de ozônio, a diminuição das florestas, tudo isso fez com que a taxa de imunidade de todas as espécies vivas ─ e principalmente dos seres humanos ─ contra as pragas e as doenças, caísse a um nível insuportável. E assim, as epidemias começaram a dizimar populações inteiras. 
     A poluição provocada pelos veículos tornou a vida insuportável nas grandes cidades. As pessoas mais vulneráveis a contrair doenças relacionadas com a alta concentração de poluição, como crianças, gestantes, idosos, pessoas com dietas inadequadas e os portadores de doenças crônicas como diabetes, asma, pressão alta, começaram a morrer em grande escala. 

Logo o custo com o tratamento de doenças provocadas pela poluição ambiental aumentou tanto que passou a consumir praticamente todas as rendas da economia, em todos os países. Então bateu o desespero. As pessoas, na luta pela sobrevivência começaram a ficar cada vez mais egoístas, mais intolerantes, mais maldosas. Aumentaram os assassinatos, os roubos, as defraudações, as pilhagens, os estupros, a corrupção e a libertinagem. Era, como dizia o livro sagrado, o tempo da Besta. A Besta estava solta no mundo.
    
      Marc sempre dissera aos políticos e aos empresários ─ que na verdade eram as classes que mandavam no planeta ─ que a agricultura era uma atividade extremamente vulnerável às mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, contribuía para essas mudanças, pois na medida em que não eram adotadas práticas agrícolas sustentáveis nas atividades de produção, distribuição e comercialização, ela passava a ser um fator de mudança climática importante. Pois quando se destruíam florestas inteiras, que hospedavam ecossistemas necessários á manutenção da qualidade ambiental, para se plantarem monoculturas cujo único propósito era a obtenção do lucro, o planeta estava praticando o próprio suicídio. Marc cansou de avisar que as formas de produção, planejadas somente para atender demandas de consumo, estavam indicando que os limites de utilização dos recursos naturais estavam no fim. Mas ninguém o ouviu. Chamaram-no de alarmista, arauto do apocalipse, corvo agourento e coisas parecidas.

Então vieram as grandes crises: queda na produção, pragas, fome, guerras, comoções sociais. Mas mesmo todas essas catástrofes recorrentes, nem os grandes cataclismos ambientais foram suficientes para provocar a mudança de um sistema que não estava dando certo. Pois o consumo voraz, o desperdício e o egoísmo das pessoas não davam campo para novas atitudes. Na esteira desse desvario veio o aumento do estresse social, a violência, a corrupção, a fome, a sede, a miséria geral e todos os indicadores de qualidade da vida caíram a praticamente zero. E por fim, as pessoas deixaram de crer em Deus. Foi o início do fim.

Mas mesmo ás portas da morte, os habitantes desse infeliz planeta não se mostraram dispostos a sacrificar o luxo e substituir seus produtos por outros cuja produção fosse menos agressiva ao ambiente. Não procuraram racionalizar o uso da água, pensando que ela jamais acabaria; não desenvolveram formas de produção de energia mais barata, a partir de recursos renováveis; consumiram suas florestas nativas sem renová-las; usaram produtos que continham matérias primas tóxicas ou nocivas à saúde; não procuraram desenvolver sistemas eficientes de reciclagem de resíduos, preferindo soluções mais barata como enterrá-los em lixões ou despejá-los nos rios e oceanos.     .
   
     Marc dera milhares de palestras, escrevera centenas de artigos e vários livros conclamando ás pessoas a fazerem coisas simples como apagar as luzes quando trocassem de ambiente; tirar os aparelhos da tomada quando não estivessem sendo usados; utilizar papel reciclado; usar pilhas recarregáveis, em vez de unidades descartáveis. Deu centenas de conselhos a esse respeito, mas tudo foi em vão. 

A seca que transformou o planeta em um deserto poderia ter sido evitada, pensava Marc, se os responsáveis pela administração pública tivessem seguido seus conselhos. Quantas vezes ele não advertiu que a água potável estava acabando, que os lençóis freáticos estavam sendo contaminados, que a poluição ambiental estava comprometendo os ecossistemas, que o regime de chuvas estava diminuindo e que era preciso poupar água e aprender a usá-la de forma responsável.

Ah! mas tudo foi em vão. Agora, Marc, lá da sua cabana na montanha, único lugar do planeta onde a natureza ainda resistia, em seus últimos suspiros de vida, olhava para o céu e via a última onda de calor se aproximando do planeta. Dentro de poucos dias o planeta seria uma imensa bola alaranjada, deserta e sem vida, a girar no espaço. Como uma laranja da qual se chupou todo o suco. Logo aquele seria mais um planeta morto. 
                             
     Mas essa não era a principal preocupação de Marc. Ele sabia que alguns homens haviam desenvolvido tecnologia suficiente para escapar do planeta. E eram justamente aqueles que o destruíram que tinham recursos suficientes para comprar a fuga. Eles se salvariam enquanto o resto de todas as espécies vivas iria perecer. E que naquele justo momento eles estavam voando em suas espaçonaves em direção ao terceiro planeta do sistema solar. Um lindo planeta azul, cheio de rios e florestas. Esses homens iriam plantar lá suas colônias. Iriam disseminar naquele planeta o seu sistema de vida predador e irresponsável. Logo aquele lindo planeta estaria todo poluído também. E depois, quem
sabe, os demais planetas que tivessem condição de hospedar vida humana.

Azrael, o Anjo da Morte, estava chegando. O seu mundo ia acabar. Mas Marc estava tranquilo. Ele fizera a sua parte. Se fosse mesmo verdade o que o livro sagrado da sua religião dizia, ele será contado entre os justos quando vier o juízo final. Quanto à espécie humana, preservada por aqueles homens naquelas espaçonaves que desaparecem no céu alaranjado e viscoso, ele espera que um dia ela deixe de ser os vermes de si própria.